Entre vídeos e anarquismos: uma conversa com Vik Birkbeck 

Conheci Vik Birkbeck cavoucando acervos na internet à procura de imagens das manifestações de rua protagonizadas por mulheres no Brasil dos anos 1980. De vídeo em vídeo, me deparei com uma vasta produção da realizadora, com filmagens preciosíssimas de contextos de um Brasil que explodia em desigualdades sociais ao mesmo tempo que esperançava novos ares democráticos.

Vik, que é inglesa, chegou ao Brasil em um navio há 50 anos, passou pelo Teatro Oficina de Zé Celso, viajou bastante pelo interior, e fundou, junto com Ras Adauto, a Enugbarijo Comunicações, produtora independente que possui pelo menos 30 vídeos editados, e um incontável material bruto. 

Com a câmera na mão, Vik acompanhou os recém-criados movimentos feministas, indígenas e negros, registrou encontros e marchas, captou contradições de uma sociedade atravessada por opressões de gênero, de classe e de raça. Em uma ilha U-matic, ela experimentou linguagens, criou e recriou uma estética própria, por vezes anarquista, marcada por colagens heterogêneas, cortes rápidos e trilhas sonoras decisivas. 

Em 20 de junho de 2022, tive a oportunidade de entrevistá-la, como parte da pesquisa desenvolvida por mim e por Cláudia Mesquita, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCom-UFMG). Na conversa, falamos sobre sua trajetória como videasta, sobre aspectos da conjuntura dos anos 1980 e sobre os processos de produção de seus vídeos.¹

Larissa Costa [L.C.]: Sei que você chegou ao Brasil em 1975. Como foi seu encontro com o vídeo?

Vik Birkbeck [V.B.]: Antes de fazer faculdade, eu meio que fugi de casa e fui de carona para a Índia. Aí deu um monte de confusão, porque eu estava em fase experimental de tudo. E quando voltei fiquei internada um tempo, primeiro numa clínica psiquiátrica e depois num convento, porque eu voltei viciada em morfina. Aí consegui, ao fim disso, fazer faculdade de Antropologia na Escócia. Mas eu estava muito revoltada com a Inglaterra – eu sentia aquele peso da cultura muito antiga. E comecei a minha adolescência no meio dos anos 1960, um momento de muita mudança. Então, virei para-raio daquilo tudo. Fiz a faculdade de Antropologia e falei: “ah, agora eu vou embora de novo... Bom, fui para o Leste, agora vou para o Oeste”. Como tinha feito Antropologia, eu estava pensando em encontrar os índios (risos). Era tudo meio vago, não tinha uma noção muito forte da América Latina. Eu não viria especificamente para o Brasil – por acaso descobri que a maneira mais barata de chegar à América Latina na época era por navio. Aí peguei um navio em Barcelona, que passou pelo Porto e veio para o Brasil. Navio de travessia mesmo – era o fim de uma época. Acho que, pouco depois, o avião dominou a coisa.

Eu não falava português, falava francês e inglês. Eu tinha feito muito latim na escola. Eram duas semanas de viagem. Eu comecei a me sentir muito frustrada de não conseguir me comunicar, porque eu fui na cabine mais barata, com um monte de mulher falando espanhol e português, e eu não falava nada. Quando chegou ao Rio, resolvi ficar um tempo para aprender a língua. Comecei a me envolver com a cultura, comecei a jogar capoeira, fui fazer aula de teatro na Martins Pena, fiz aula com o Hélio Eichbauer no Parque Lage – tinha Lélia Gonzalez, que também dava aula no Parque Lage... Não lembro se conheci a Lélia nessa época. Acho que conheci depois.

Mas, em 1978, fui para São Paulo e conheci o Teatro Oficina. Eu vi eles se apresentando no meio da rua e com muita insistência (risos) eu consegui entrar para o grupo. Tinha um grupo de teatro, que estava se formando. O Zé Celso tinha acabado de voltar do exílio, aí ele foi juntando pessoas nesse grupo. Ele não me queria de jeito nenhum. Ele falou que eu tinha mentalidade de bandeirante (risos) – me rejeitou total –, mas insisti tanto que acabei entrando no grupo. Era um grupo muito diverso, porque na verdade quase ninguém era ator. Tinha um casal de atores do Sul, o Joaquim e a Soraia, depois tinha dois mineiros, o Adyr Assumpção e o Helinho [Helio Zollini]. Do Rio, tinha a Stella [Oswaldo Cruz Penido], que era socióloga, e a Martinha [Sattamini], que já tinha atuado na Graciás Senhor, antes da Oficina ter sido fechada pela ditadura. Tinha o Adauto [Santos], que era do Rio também, poeta do Nuvem Cigana e aluno da Heloisa Buarque de Holanda. Tinha o [Ademar] Papaléguas, que era do Maranhão, um rastafári, e o Godo, baiano e pai de santo. Era a maior mistura. Aí acabou se formando esse grupo e a gente começou a viajar pelo país. Enquanto estava em São Paulo, era a maior luta para conseguir uma plateia, mas a gente conseguiu uma verba e começou a viajar, e lotava: onde a gente ia, lotava. Era o maior sucesso.²

Essa é uma coisa que tu podia levantar, interessante. A Stella [Oswaldo Cruz Penido], que foi uma das integrantes do grupo, trabalhou anos na Fiocruz, fez um filme chamado O coro do Te-Ato (2023)³. Ela descobriu que o Serviço Nacional de Informações (SNI) ficou caçando a gente, tinha um documento de 70 páginas. Porque era muito subversivo (risos) aos olhos deles, aquele bando de gente: tinha pai de santo, tinha filho de fazendeiro do interior de São Paulo. Era a maior mistura de gente, e todo mundo tinha cabelo enorme. Eu lembro, tinha uns lugares que a gente foi, Uberlândia, Anápolis... A cidade parava para ver. A gente fez muito sucesso em Brasília. Quando a gente saiu de lá, vieram os filhos dos generais atrás, e eles ficaram encantados. Aí ferrou. Prenderam a gente em Aracaju. O grupo foi cassado.  Não foi o trabalho que foi proibido, foram as pessoas, aquelas pessoas juntas. A queda foi no início de 1980.

Quando não deixaram a gente trabalhar mais junto, eu e Adauto fomos para o interior da Bahia. Rachou. As pessoas foram para várias direções, a Stella foi para o Araguaia. A Soraia foi para o Maranhão. Eu e Adauto, no interior da Bahia, ficamos fotografando muito e fazendo um pouco de teatro. Eu tinha conseguido uma máquina 16mm, mas a gente nunca tinha grana para revelar o filme. Eu tenho até hoje esses pontos que a gente filmou e nunca foram revelados (risos). As latas estão todas despedaçando. Eu queria muito, mas agora não tem mais ninguém no Brasil que faz isso, revelar. Aí não sei se ainda existe alguma coisa, algumas imagens.

Eu e Adauto ficamos nove meses no interior da Bahia. A gente voltou para o Rio, aí a gente dividiu apartamento com dois estudantes de Medicina paulistas. E um deles ganhou uma câmera de vídeo dos pais. Aí estava lá – ele nem tinha tirado da caixa. A gente ouviu no rádio que o Glauber Rocha tinha morrido e estava sendo velado no Parque Lage. Aí eu falei: “ah não, a gente tem que pegar isso”. A gente era fã doente do Glauber Rocha. A gente raptou a câmera do menino. Foi o primeiro vídeo, o velório do Glauber Rocha. Meses depois, aliás, acho que anos depois, encontrei com a dona Lúcia, a mãe do Glauber, e falei que eu tinha essas imagens. Ela falou: “destrua, destrua. Acaba com isso”. Ela não queria nenhuma imagem dele morto. Aí sumiu, o vídeo sumiu. Ela jogou uma macumba muito forte e essa fita desapareceu (risos). 

E daí a gente não parou mais. A gente estava muito ligado no movimento negro, no Instituto de Pesquisa de Cultura Negra (IPCN), no Rio. O Adauto é filho de baiano, de Padre Miguel. E a gente foi entrevistar o Abdias do Nascimento. A gente registrava tudo. A gente ficou ligado em todos os movimentos, protestos, movimento popular. A gente filmava direto, subindo morro, descendo morro. A gente começou a editar, assim, tipo, pegando os movimentos. A gente tinha toda a formação do [Teatro] Oficina; Adauto tinha uma formação em Literatura; eu tinha um pouco em Antropologia... Então, quando a gente começou a editar, a gente não conseguia editar uma coisa careta, de documentário. A gente ficava misturando tudo. Lei dentro, lei fora⁴ é um dos vídeos mais temáticos, que fica numa coisa só. Mas, mesmo assim, é meio subversivo. Você viu outras coisas?

L.C.: Vi. Fui filtrando pelos temas, que têm a ver com os movimentos de mulheres. Aí eu vi As Kineastas, As divas negras do cinema brasileiro e alguns registros que vocês fizeram, como o Encontro de Mulheres Negras e o Encontro Nacional de Saúde.

V.B.: Sim. Esse é legal. O primeiro Encontro de Mulheres Negras, eu fiz com uma equipe – eu não lembro mais o nome de todo mundo. Tinha a Mali Garcia, que morreu há pouco tempo... Eu juntei uma equipe de mulheres negras para fazer esse vídeo, porque era um encontro só de mulheres. Agora, o de saúde... Não me lembro se Adauto foi. Acho que foi em Itapecerica da Serra. Foi muito forte. Um outro encontro de mulheres que foi muito forte foi o encontro das mulheres latino-americanas e do Caribe⁵. Esse foi incrível. Foi internacional e tinha um ônibus, cheio de mulheres negras, amigas, que foram do Rio. Era em Bertioga. Elas ficaram entusiasmadas com a ideia e não estavam inscritas, mas conseguiram um ônibus e foram. E o encontro estava sendo organizado por um grupo de paulistas, meio de elite, e não deixaram as mulheres negras entrarem. Era uma coisa assim, uma contradição total. Aí eu fiz um vídeo sobre isso. Esse eu tenho que procurar, porque teve uma hora que o Adauto foi para Alemanha e eu fiquei aqui sozinha com milhões de fitas. Cheguei a ficar meio desesperada, sem saber o que fazer com isso tudo. Aí, por volta de 2000, o Filó⁶, agora do Cultne, apareceu com uma verba. Eu, simplesmente, botei todos as fitas na mão dele. Nem registrei muito bem. A gente conversa sempre, mas ficou um caos. Tinha uma coisa do YouTube que era o tempo limitado a dez minutos, então ele foi picotando um monte de coisa e colocando na internet.

Tem um vídeo que Filó postou outro dia, Tenho coragem de andar igual a Lampião, que é o maior barato. Esse vale a pena tu ver. As mulheres que falam nesse vídeo são desse encontro latino-americano – eu fiz entrevistas com muitas camponesas. E na edição eu misturei com um monte de outras coisas: tem um amigo capoeirista baiano fazendo um discurso no meio na rua, tem cena da barragem de Foz do Iguaçu, uma mistura. Era sobre a briga da terra e tem todas essas vozes no meio.

L.C.: E tem algum encontro de mulheres indígenas?

V.B.: Não especificamente de mulheres. Eu tenho feito isso mais recentemente, nessa época não. A gente fez vários registros de encontros indígenas. Nessa época não tinha encontro de mulheres indígenas... O primeiro Encontro das Mulheres Negras foi em 1988. Antes não tinha esses movimentos separados, essas definições. Das mulheres indígenas, especialmente, porque quem falava eram os homens – as mulheres não falavam. A mulheres negras, eu lembro... Anos de IPCN. Demorou para dar voz a uma mulher. Eu, no IPCN, por exemplo, entrava muda e saía calada (risos), não emitia uma palavra. Tanto que há uns tempos atrás eu encontrei com um cara que disse: “nossa! Que bom que você ainda está aí... Ah eu lembro, a gente tolerava você no IPCN porque a gente pensava que, se não tolerasse você, não teria o Adauto”. Aí eu falei: “é mesmo?! Que interessante!”. A vontade era dar um tapa na cara.

L.C.: E você veio da Europa, em um momento em que o feminismo lá era mais elaborado do que aqui no Brasil, muito por causa da ditadura e da nossa história colonial. E você chega no contexto de organização das mulheres brasileiras. Como você avalia o movimento de mulheres no Brasil comparado a essa influência europeia, ao mesmo tempo considerando nossas diferenças?

V.B.: Olhe, eu lembro que eu meio que rompi com o movimento de mulheres aqui quando fui em um encontro de mulheres, em Petrópolis, e as discussões eram muito centradas na sexualidade, como as mulheres gozavam, umas coisas assim. E nesse encontro tinha uma participante que levou uma mulher negra para cuidar dos filhos dela enquanto ela estava fazendo uma oficina discutindo o prazer sexual. Quando eu vi a moça negra, acho que ela estava até de uniforme, não lembro. Mas eu achei tão absurdo aquilo, tão contra tudo o que eu pensava. Aí pensei que não queria mais saber desse movimento, que esse movimento não fazia nenhum sentido para mim, sinceramente. O outro momento que eu lembro, que foi muito forte, foi no início do PT. Eles faziam muitas reuniões no Teatro Oficina. Tanto que a gente, em grupo, esteve no grande Primeiro de Maio, que foi a consagração do Lula – uma multidão. Foi mais ou menos na época que o Leon Hirszman fez o filme dele⁷. Mas eu lembro de uma reunião do PT, no Oficina, e a gente perguntou: “e aí, como que é a visão de vocês sobre a mulher nesse novo partido que vocês estão fazendo?”. Aí eles falaram que as mulheres eram muito importantes – elas fazem a comida, cuidam dos filhos, as mulheres mantêm as famílias (risos). É possível isso? O novo partido político que supostamente... Foi muito chocante. Eu lembro de incidentes, porque eu sempre fui meio anarquista. Não era muito de movimento organizado. Uma vez, no Rio, me baixou uma revolta tão grande. Eu fui numa banca de jornal – na época tinha coisa pornô em banca de jornal – e eu fui rasgando um monte de revistas. O jornaleiro ficou olhando e não entendeu nada.  

Eu ficava muito chocada no Brasil – essa coisa de homem dizer “quero te chupar toda” na rua. Era assédio constante. Eu era muito loira, aquela loirinha europeia. Aí era um assédio sem parar. Eu brigava. No transporte, eu sempre estava brigando. E eu fiquei muito chocada com a falta total de solidariedade, que eu brigava e ficava a louca sozinha. Ninguém chegava junto. Na época da Lúcia Arruda⁸, eu fiquei muito envolvida na campanha dela, mas foi tão louco, porque a gente fez aquele movimento todo a favor do aborto legal, o Brizola até assinou, e veio o cardeal e sentou em cima. Parecia uma coisa muito arbitrária.

Não parecia que tinha muito movimento no Brasil. Eu não sentia. Tinha esse movimento em torno do aborto, da maternidade, muito em cima da saúde. Mas acho que tinha uma ruptura muito grande, realmente, dessa ideia de movimento feminista de tipo importado. E isso é uma coisa que eu sempre fiquei muito impressionada, com o fato de que no Brasil as pessoas mais de classes altas, de dinheiro, que tiveram acesso a esses outros lugares e informações, se deram o direito de fazer uma reinterpretação, importar e vender para as pessoas que não tiveram esse acesso. Vi isso muito na música, mas também no movimento feminista, que acho que foi importado uma coisa que não tinha nada a ver com as condições daqui. Ignoraram completamente, tanto que surgiu o movimento das mulheres negras. Eu lembro de uma amiga, do movimento das mulheres negras, falando que as brancas vinham na luta pelo direito de trabalhar, e as negras, desde sempre, estão na luta por férias, por parar de trabalhar em algum momento. E é muito contraditório. Essa coisa de Bertioga foi, assim, sintomática, brutal. Ver aquelas mulheres, que com muito esforço conseguiram ir do Rio de Janeiro até Bertioga, aí chegaram lá e não entraram porque não estavam registradas. É muito estranho. Mas não se pode dizer que isso é coisa só daqui, porque não é. A história feminista fora do Brasil é complexa pra caramba.

L.C.: Você acha que hoje a gente avançou um pouco no sentido de resolver essas contradições?  

V.B.: Se a gente está avançando? Eu estou vendo uma coisa bastante separada. Na verdade, eu não tenho muito contato. Eu não sei se ainda rola um movimento feminista branco. Eu desconheço, porque tenho uma ligação com o movimento das mulheres negras. Ano passado eu fui na marcha das mulheres indígenas, em Brasília. Também fui a um encontro das mulheres Guarani Kaiowá. Mas, com o movimento feminista geral, eu perdi contato. Acompanho coisas como o Geledés, a Sueli Carneiro⁹, mais o movimento das mulheres negras. Tem a Schuma [Schumaer]¹⁰, que é uma figura interessante e que fez essas pontes. Mas tem umas pessoas que eu nunca mais ouvi falar, tipo a [Jacqueline] Pitanguy¹¹... Eu sempre fui meio a par, meio ao lado, nunca fui central em movimento nenhum.   

L.C.: E eu gostei de você se identificar como “meio anarquista”, porque, em alguma medida, você passou um pouco por tudo.

V.B.: Sim. Foi uma década em que eu e Adauto ficamos juntos e trabalhando juntos. E essa década a gente ficou mais ligado ao movimento negro, mas foi a época também que eu fiz mais coisas dentro do movimento feminista, do movimento da saúde da mulher e do encontro latino-americano em Bertioga. E o movimento indígena dessa época era representado por homens, é só mais recente que tem a Joênia [Wapichana], a Sônia Guajajara...

L.C.: Hoje em dia, tem muitas cineastas e realizadoras negras que têm contado e recontado as histórias dos movimentos negros, em ficção, documentário, em diversos formatos. Em alguma medida, desde o Cinema Novo, a cultura negra foi algo muito abordado por homens brancos e, posteriormente, como nos anos 1980, por mulheres brancas. Como você avalia essas questões?

V.B.: Eu tenho uma vivência estranha, porque venho de uma família inglesa, tipo uma aristocracia rural. E na Inglaterra as pessoas são imediatamente identificadas pela maneira como elas falam. Se você abre a boca, você já é carimbado. Eu sempre senti dificuldade na Inglaterra de circular entre as pessoas, pelo jeito como eu falava. Uma das coisas que achei interessante quando eu cheguei no Brasil foi que eu fui bem recebida em todos os lugares. Com o Adauto, a gente subiu muito morro. A gente ia em um monte de lugar. Teve esse cara do IPCN que disse que me tolerava. Mas isso é classe média. Nas áreas de povão eu sempre fui mega bem recebida. Onde eu cresci, na Inglaterra, era completamente branco. Eu só me dei conta dessa relação quando fui para a Índia. De repente, me achei em um lugar onde as pessoas me tratavam como se eu fosse uma coisa meio mágica, como se eu tivesse poderes especiais, pelo fato de ser branquinha e loira. E ao mesmo tempo, a Índia te dá uma sensação da sua insignificância total, porque é tanta gente que você some, desaparece.

A coisa do racismo... Quando eu fiz Antropologia, em Edimburgo, não lembro o título dessa obra... Ela falava como o Brasil era um dos poucos países do mundo onde tinha se resolvido completamente a questão racial, que era uma democracia racial entre os três povos. Quando eu cheguei, foi um choque. Especialmente a relação com Adauto. Ele nasceu no Morro do Andaraí e ele tinha essa noção muito forte. A gente ia a lugares onde Adauto era o único negro do lugar. Lembro de andar na rua – ele tinha cabelo grande na época – e as mulheres segurando a bolsa. Era muito forte isso. Eu fiquei revoltada. Aliás, quando eu tinha sete anos, meu pai foi trabalhar no Quênia – a família toda foi de navio. Eu lembro que a gente parou na África do Sul, e tinha bancos da praça para negros e bancos para brancos. Eu não entendia nada. Fiquei perguntando para minha mãe. Eu acho que minha família, minha mãe, especialmente, tinha uma confusão com a questão racial, tanto que, quando eu e Adauto nos casamos... Na verdade eu não queria casamento, mas a gente tinha acabado de ser preso com o grupo de teatro, aí eu fiquei com medo de ser expulsa do Brasil. Aí a gente tirou umas fotos legais, mandei para ela. Minha irmã contou que toda vez que eu ia visitar a minha mãe botava as fotos na casa. Aí, quando eu saía, as fotos sumiam de novo (risos).

O que me fez ficar no Brasil foi a cultura. Eu fiquei fascinada, principalmente com a cultura negra e a cultura indígena. Eu consegui a permanência no Brasil muito antes de conhecer o Adauto. Eu dava aula de inglês particular do Rio para aquela burguesia que fala que o Brasil não tem cultura, que o povo é ignorante, que tira férias e vai para Nova Iorque, para Paris. Aí em pouco tempo eu saquei que eu sabia mais do Brasil do que essas pessoas. Quando a gente foi para a Bahia, a gente pegou a balsa em Pirapora e fomos até Juazeiro pelo Rio São Francisco. Tinha aquelas mulheres no barco... Eu perguntava quantos filhos elas tinham, elas falavam que tinham “nove, cinco vivos e quatro mortos”... A gente encontrou famílias, crianças que me contaram que elas comiam lagartixa, que tinham que cozinhar a lagartixa duas vezes, depois fritar. Na Bahia, a gente ficou em uma casa de pau a pique sem água. Eu tinha ficado com um problema na coluna, não conseguia ficar de pé. A gente ficava pegando água na cabeça, lata d’água, aí eu fiquei retinha (risos) de tanto carregar água. A gente tinha um lampiãozinho a gás. Baixou uma roda de caboclo na casa – elas ficaram rodando o lampião da gente... Com essa cena toda, com esse candomblé diferente lá do sertão, tinha Ogum da Serra, tinha Iemanjá que batizava as pessoas no Rio São Francisco, que falava “João batizou Jesus no Rio Jordão. Eu batizo você em nome de Iemanjá no Rio São Francisco”. Todas essas coisas... Uma cultura tão rica. 

L.C.: E você teve muitas parcerias de pessoas negras, companheiras mulheres negras.

V.B.: Eu moro em Santa Teresa, e o Adauto morava aqui comigo. A Lélia Gonzalez era vizinha. Quando ela fez o grupo Nzinga de mulheres, ela me convidou e eu fiquei no grupo. O Filó tinha uma produtora na mesma época, nos anos 1980 – ele vem lá de trás, dos anos 1970. Aí eu e Adauto tínhamos a Enugbarijo Comunicações e o Filó tinha a Cor da Pele. O início do Cultne foi a junção do acervo nosso com o acervo da Cor da Pele. Aí o Filó continuou esse movimento de fazer cobertura de evento, sem parar. 

Sempre tive parceiros, amigos, muita gente amiga. Teve o festival Olhos Negros, que a gente fez em 1989 e em 1990, que era uma parceria com a Agnes, que é londrina-caribenha, mas morava aqui. Teve a Vera do grupo Agbara Dudu¹². Teve um momento que a gente fez o grupo Carolina Maria de Jesus, que era eu, Joana Angélica e Joselina.

L.C.: Era um grupo de produção de vídeo?

V.B.: Era para ser um grupo de produção. Elas não eram do vídeo, só eu. A Joselina é mais acadêmica – acho que agora ela está na Candido Mendes. E a Joana era da Cruzada São Sebastião, do Rio, depois foi morar na Rocinha – ela era mais da parte social. Tanto que até hoje dirige o Centro de Mulheres de Favela e Periferia do Rio de Janeiro (CEMUFP). Acho que a gente escrevia coisas. Fizemos alguns encontros, mas eu não me lembro muito. Mais uma coisa que se foi.

L.C.: Agora, sobre os filmes, de forma mais geral, como era o processo de produção? Você já comentou que Lei dentro, lei fora se difere um pouco dos demais.

V.B.: Eu não lembro, mas, de repente, a Lúcia Arruda deve ter dado algum apoio para Lei dentro, lei fora. Mas, de modo geral, a gente não tinha apoio nenhum. Primeiro a gente tinha a câmera raptada do menino – é meio vergonhoso, mas a gente só devolveu um ano depois (risos). Depois o meu pai deu uma força e a gente conseguiu montar uma ilha de edição VHS. Na época só tinham cinco no Rio. A gente tinha a associação de ilhas de edição VHS. A gente começou a fazer coisas comerciais, documentar algumas coisas. Mas, de modo geral, era muito por acaso. As pessoas chamavam para alguma coisa, ou alguém comprava uma fita, ou botava gasolina no carro. Umas coisas assim. O único investimento mesmo foi o das Divas negras, que a gente ganhou o roteiro da Fundação Ford, que fez um edital para fazer vídeos sobre a abolição. Daí a gente ganhou o prêmio de roteiro e, com isso, a gente comprou uma ilha U-matic. Mas a gente já estava brigando muito e, em 1991, a gente rachou e ficou cada um de um lado. Eu sempre continuei gravando, filmando, mas sem editar, tanto que eu tenho um acervo imenso de coisas que não estão editadas. Fui várias vezes a Burkina Faso, que tem o Fespaco, Festival Pan-africano de Cinema, e fiquei filmando lá bastante. Fui no encontro chamado Outros 500, no ano 2000, com 3 mil pessoas de povos indígenas, no Sul da Bahia. 

Então eu continuei, mas ao mesmo tempo eu comecei a trabalhar no Festival do Rio. Fiquei 20 anos como curadora e programadora – gastei muita energia com isso. Porque ia todo ano para o Festival de Berlim, o Festival de Cannes. A década que a gente produziu pra caramba, criou produtos, foi a década de 1980. A produção forte foi essa parceria com Adauto. A última coisa significativa, que me lembro de editar nessa época, foi o Sync, que era um vídeo experimental, que tem um monte de coisa junto. Depois de editar, trabalhei bastante, fiquei muito amiga da Carmem Luz, que é uma coreógrafa e cineasta negra. Filmei muito os trabalhos dela.

L.C.: E quantos filmes foram produzidos pela Enugbarijo?

V.B.: Ah, deve ter uns 30 editados. A gente nunca consegue fazer isso, mas eu tinha que sentar com o Filó e ver, porque tem coisa editada que ele não conseguiu reconhecer. Porque o Filó não é anarquista (risos), e ele não conseguiu identificar – achava que era acidental, ia modificando as coisas, sei lá. Tem coisa que eu queria recuperar. Por exemplo, a marcha de 1988, nos cem anos da abolição. A gente editou, chamava A marcha e a farsa. Tinha coisas assim, tipo uma ceninha do Adauto pisando em cima da imagem da princesa Isabel; tinha uma parte que fiz dos soldados marchando com uma menininha no meio gritando... Ele tirou isso tudo (risos). Você tem que ver o Tenho coragem de andar igual a Lampião – esse é legal. Aí tem Aquário. Nesse Adauto filmou uma amiga indígena e eu. A gente se pintou e saiu às ruas entrevistando as pessoas, perguntando o que eles achavam dos índios. É bem engraçado também (risos). O Filó acabou de colocar esse online inteiro, porque só tinha pedacinhos. Tem o vídeo que a gente fez que chama Mulher negra e TV, que tinha a marcha do 8 de março – tinha a Benedita da Silva no meio da rua, a Adélia, várias amigas, mais mulheres negras. Não sei se ele postou esse inteiro. Quando a gente criou o Cultne, a gente recebeu uma verba da Benedita, que era secretária de direitos humanos, para criar o site. O Filó criou um programa semanal do Cultne para a TV Alerj, mas nunca conseguimos um investimento específico para o acervo, então tem muita coisa que não foi digitalizada.

L.C.: Quantos anos você tem?

V.B.: 70.

Notas

[1] Na edição, acrescentamos algumas notas informativas.

[2] Vik se refere à caravana "Ensaio geral do carnaval do povo", capitaneada por Zé Celso Martinez Correia, que percorreu o Brasil no ano de 1979.

[3] Título do documentário atualizado durante a edição.

[4] O vídeo, de 1985, registra a segunda votação do Projeto de Lei 832, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, que obrigaria a rede estadual de saúde a prestar atendimento médico às mulheres nos casos de abortos legais.

[5] Trata-se do II Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe, realizado entre os dias 31 de julho e 4 agosto de 1985, em Bertioga (SP).

[6] Mais conhecido como Dom Filó, foi um dos mentores e protagonistas do Movimento Black Rio, nos anos 1970. É responsável pelo Cultne – o maior acervo virtual de cultura negra da América Latina –, que reúne mais de 3 mil horas de conteúdo audiovisual, correspondente a mais de 40 anos de registro e memória do Movimento Negro no Brasil.

[7] Vik se refere a ABC da greve, documentário que acompanha a efervescência do movimento sindical no ABC paulista no final dos anos 1970, com a mobilização dos metalúrgicos em torno das primeiras grandes greves no Brasil desde 1968.

[8] Fotógrafa, foi a primeira deputada estadual eleita pelo PT, aos 26 anos, e também a primeira mulher a se declarar feminista na tribuna da Alerj. Elaborou o Projeto de Lei 832/1985, que estabelecia a obrigatoriedade, pela rede de serviços de saúde do estado, do atendimento médico para a prática de abortos previstos no Código Penal.

[9] Fundado em 1988, o Geledés é uma organização política de mulheres negras que tem por missão institucional a luta contra o racismo e o sexismo, a valorização e promoção das mulheres negras, em particular, e da comunidade negra em geral. Filósofa, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Sueli Carneiro é diretora-executiva do Geledés.

[10] Pedagoga, pesquisadora e educadora social. Ativista feminista antirracista, tem longa experiência em políticas públicas para as mulheres e em projetos sociais e culturais.

[11] Socióloga, presidiu o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher durante a Assembleia Constituinte.

[12] Bloco afro criado na quadra da Escola de Samba da Portela, em Oswaldo Cruz, tendo como referência o primeiro bloco afro do Brasil, o Ilê Aiyê, de Salvador (BA).