Entrevista com Vincent Carelli 

Entrevista realizada no dia 25 de novembro de 2021 durante o 25o forumdoc.bh. Nesta edição, Vincent Carelli apresentou a “Mostra Desaparecimento e Reaparecimento dos Povos e das Imagens - 35 anos de VNA (Vídeos nas Aldeias) e 25 anos de forumdoc.bh”.¹

Paulo Maia: Depois de ver a instalação [de fotografias do Vincent no forumdoc.bh, 2021], a gente queria buscar uma ponta por onde começar uma conversa e pensamos em puxar a fotografia como um mote. A gente começaria, Vincent, perguntando sobre qual é o lugar da fotografia no seu percurso? Se ele já começou com seu trabalho de indigenista? Ou se tem um antecedente em relação a isso? E se você poderia também falar um pouco sobre seu equipamento fotográfico, desde o primeiro. Porque, a gente acredita que isso tudo despertará uma memória afetiva em relação a essa coisa e depois a gente vai seguindo.

Roberto Romero: Só emendando, até acho que isso remete a sua adolescência, a chegada aqui [no Brasil] e nas aldeias. Você mesmo comentou na noite do debate que o primeiro equipamento que tinha, quando nem existia o vídeo ainda, era a câmera fotográfica. Mas qual envolvimento você, antes de chegar nas aldeias, tinha com a fotografia? Se é que teve algum? 

Vincent Carelli: Comecei a fotografar cedo e só fotografava bichos. Eu ia para o zoológico e adorava ficar fotografando bicho. O meu pai falava assim: “você não gosta de gente”. É, e não gosto mesmo! e tinha minhas razões. 

A fotografia mesmo começou na aldeia. Não era só fotografia, era fotografia e gravador. Ttinha herdado um Urer de rolo. Então, eu fazia registros sonoros, fotografia, por prazer, enfim, fotos mais afetivas. E, quanto à câmera, eu sempre tive Pentax, que era a câmera nerd daqui. Eu acho que eu tive várias. E depois eu tive uma Nikon, que me trouxeram de fora do país, e que na primeira viagem caiu na água. Acontece. Mas um irmão louco lá de São Paulo, que era representante da Nikon, desmontou e remontou tudo.

Quando comecei a fazer vídeo, abandonei a fotografia. Não dava para fazer as duas coisas. Depois comecei a fazer uma fotografia mais de making of, de referência. Em 2010, sei lá, quando comecei a dar oficina, onde tudo que eu não podia fazer era filmar, eram eles que filmavam, comprei uma cybershot da Sony e voltei a fotografar com esse negócio, que eu adorava. Gosto inclusive de câmera que a qualquer momento você “tum”... Mas era muito problemático, era muito caro, meio difícil de realizar. Acho que tem material que está antes daquele momento e que você gostaria de bater a foto. E a qualidade caía bastante. 

Perdi muita foto, eu ia por longos períodos para a aldeia e muita coisa foi perdida por causa da umidade. Eu ainda tenho alguns negativos, todos manchados. Era branco e preto basicamente. E depois eu até fiz outras coisas, fiz uma viagem para o São Francisco. Enfim, eu gostava de fotografar. Mas nunca me engajei em nenhum negócio de fazer exposição. Foi tudo meio autoproduzido, dinheiro do bolso e era limitado. Na época era tudo rolo de filme, caro, tudo caro. Eu rebobinava os filmes. Tanto é que comecei a fotografia, por exemplo, Xikrin, onde eu comecei, era tudo em branco e preto. Só em 1990 e tanto, 95, 96, quando voltei, aí eu já fazia cor. Mas nos meus primeiros tempos de Xikrin, foi tudo branco e preto. Por razões óbvias.

Paulo Maia: E positivas... 

Vincent Carelli: É, e... trabalhei como fotógrafo, quando fui para São Paulo também, desempregado, arrumei um emprego no Jornal Movimento. Trabalhei um pouco como repórter fotográfico e depois fiz algumas reportagens com o meu mestre paraense [quem?]. Nós fizemos a primeira reportagem sobre a guerrilha do Araguaia, no tempo em que o Hugo Abreu, o general dos paraquedistas, era candidato a presidente. Fiz algumas reportagens, o número zero da Isto É, e mais algumas coisas. Depois eu consegui me colocar no ISA (Instituto Socioambiental), montamos o CTI. Saí dessa área de jornalismo, que era uma questão de sobrevivência mesmo, e entrei nesse negócio da fotografia. Foi um momento muito legal.

Paulo Maia: Pensando nessa primeira leva de fotografia, logo que você chegou no mundo indígena, você tinha uma expectativa de mostrar esse material? Ou era uma coisa do tipo vou mostrar para os meus parentes? Ou usava ele para divulgação? E a questão da revelação? Era você que fazia também? Isso levava um tempo, imagino? Esse material já circulava de volta? 

Vincent Carelli: Não, esse material circulou muito pouco. Eu fazia como um registro, porque eu achava que não podia deixar passar a oportunidade. Nunca me organizei para fazer mostra, enfim, são coisas que ficaram... servirão para o futuro. Enfim, um registro. Não fiz nada, assim, não fiz nenhuma exposição. Era um registro porque era impossível não fazer. Era necessário fazer. Deixar essas coisas passarem em branco era meio que dizer: “eu vou ser o único a ver esse negócio? Não é possível! Eu tinha que ter um registro. Isso provavelmente vai desaparecer ou mudar muito”. E tem os registros sonoros também.

Nunca tive bolsa, eu fiz um ano de USP (Universidade de São Paulo) e inventei um projeto sobre cultura oral Xikrin, e ali fiz gravações. É um mundo sonoro vasto de gritos, de cantos, de partida para a caça, de volta da caçada, fora todos os rituais, as falas cerimoniais. Era um universo bastante interessante. Outro dia eu até achei uns papéis, umas anotações. Mas eu queria ir pro mato, caçar, entende? Mas fiz muitas gravações que depois de muitos anos recuperei lá no ISA, que emprestei para Bel, filha da Lux [Vidal], que sucedeu ela lá nos Xikrin. Então essas duas coisas, os registros sonoros (os cantos...) e as fotos. Mas você vê que eu fotografava meus parentes próximos da aldeia, são coisas mais intimistas.

Roberto Romero: Essa relação com a fotografia, especialmente nesse momento que você não podia revelar e mostrar, e num momento que... Imagino que provavelmente já tinham passado outros fotógrafos, muito mais antigos do que a sua chegada lá. Isso criava alguma situação? Você achava curioso? Eles achavam muito curioso? O próprio equipamento? Porque é uma coisa meio misteriosa...

Vincent Carelli: Não, já tinha passado. O René Fuerst passou lá nos anos 1960, inclusive eles não estavam nem nessa aldeia. Eles estavam na boca do Cateté, numa situação muito complicada que os regatões passavam, prostituíam os índios, todo mundo estava com sífilis. Lá ele fez um belo registro para o Museu de Genebra. Cláudia Andujar tinha passado lá como fotógrafa de moda, da Life. Não sei bem que revista era, mas cheguei a ver essa revista. Os bonitões se pintaram e tinha as manequins com as roupas e tal... Então, tinha passado gente lá. Mas tinha esse negócio de roubar a alma e tal. Uma criança pequena, de colo, não dava para fotografar, era muito protegida. 

A partir do dia que fiquei sozinho lá, foi uma virada, assim, de relação. Os índios nos tratavam muito bem. Realmente fui adotado e achei minha função. Era ainda muito frágil a situação deles em termos de saúde. Uma gripe acabava numa epidemia de malária e acabava morrendo gente. Então, eu estava lá e aprendi a fazer os tratamentos. Eu era enfermeiro, virei enfermeiro, assim na marra.

Paulo Maia: Isso em que ano? 

Vincent Carelli: 1972. E tinha essa relação. Agora quando voltei, depois de décadas, o cara virou pra mim e falou assim, “ah, você tá voltando? Então, você tá velho. Você tem que vir pra cá! Você tem que morrer aqui, porque você é daqui”. Falei, “bom, tudo bem!”. Então, teve essa relação... Até pensei em mudar o título do filme, que chama Djunuá, por uma outra frase que foi dita lá, “Você é o nosso branco”. Quando foi o encontro de Altamira, eu estava nos Xikrin e fui com eles para Altamira.

Eles ficavam me apresentando para os outros Kayapó, falavam: “ó, esse menino aí, foi nós que criamos, sabe?” Então criou essa relação boa... Quando eu voltei, teve todo aquele rito do choro. Tive que ir parente por parente. Os choros cerimoniais... Então, a fotografia pra mim ali era liberada, ninguém estava nem aí. Fora esse detalhe das crianças pequenas, que ainda tinha esse negócio que vai roubar o mekaron, que vai prejudicar. 

Eu era muito jovem e para fazer uns retratos daquele velho chefe... Eu tinha medo dele. Ele tinha um braço seco, diziam que era tiro, ninguém sabe o que era... Eu lembrava que ele andava sempre com um 38 cano longo, daquele com cabo de madrepérola branca. E para eu chegar nele e fazer uma foto, precisava respirar fundo. 

A partir do momento em que eu fiquei só, esse negócio de bravo, do Xikrin que pede, exige, cobra, essa relação meio guerreiro e meio predador, isso sumiu. Os caras eram uns doces na relação de intimidade dentro da aldeia.

Paulo Maia: E você estava lá, você era funcionário da FUNAI? 

Vincent Carelli: Não, não. Eu fui duas vezes, passava as férias, as férias grandes [de verão], a primeira vez. A segunda que eu voltei ainda estava no colégio.

Roberto Romero: Por conta própria?

Vincent Carelli: Por conta própria. A coincidência, foi que, na verdade, o padre, o frei José era um dominicano, um cara especial, assim do que se chama de vocação tardia. Acho que ele virou padre já. Ele veio para dar aula de filosofia lá no Convento das Perdizes dos dominicanos. Os dominicanos tinham uma grande base em Conceição de Araguaia. Ele foi lá visitar, em 1961, os Gavião, no local do contato. E tava uma puta epidemia e ele já andava com seu kit de antibióticos. Os índios têm muito essa memória. E o meu irmão queria ser padre... Esse padre foi o guia dele. Em 1968, ele levou o meu irmão e o meu professor de matemática do colégio, que fez inclusive o super-8 que, depois, ele deu para o padre. Esse super-8 que eu tô usando como o material mais antigo, que tenho desde 1968. 

O meu irmão não me contou nada. Mas esse padre fazia audiovisuais e mostrava na Aliança Francesa para arrecadar fundos. Fiquei fascinado com as imagens dos caras. Eu falei “Padre, eu quero ir!”. No ano seguinte, ele falou “vou te levar”. Coincidiu que a Lux tinha uma filha, que inclusive era colega de colégio do meu irmão, que morreu num acidente trágico. A Lux estava meio abalada e era professora de inglês. Ela estava começando o curso dela de antropologia e resolveu ir. Meu irmão falou com o padre que convidou a Lux para ir nessa mesma viagem. (Entrevistei a Lux, inclusive, para esse filme, que eu não vou fazer). E ele falou, “olha, você está nesse trauma, nesse luto, vou te levar para a aldeia. Lá tem muitas mães que perderam muitos filhos”. Fiz duas ou três viagens com a Lux. Depois virei o parceiro dela e enquanto ela ficava trancada lá com o chefe do Bemoti, que era o cara que sabia tudo, eu ia para as caçadas. De vez em quando ela me dava umas informações das descobertas dela, tal. Depois eu fiz um ano de USP.

Paulo Maia: Ciências Sociais? 

Vincent Carelli: Ciências Sociais. Nessa época eu já tinha lido muito da etnografia da época, principalmente, tinha aquele projeto Jê...

Paulo Maia: Do Brasil Central? 

Vincent Carelli: É, do Brasil Central, Melatti, da Mata, toda essa turminha, Terence Turner. Eu já tinha lido. Fiz o curso básico e participava do curso de pós-graduação. Dei até um seminário lá e não sei o quê. Chegou no fim do ano, falei, “puta merda, gente. Eu não quero ser intelectual, gente. Puta!”. E eu vivi de dar aula para os colégios do Liceu Francês de física, de matemática e fazer o troquinho. Porque a minha mãe foi embora para a França e eu fiquei sozinho em São Paulo. Aí encheu o saco, falei, “quer saber de uma coisa? Eu vou pra aldeia, vou morar lá”. E fui! Era meio a transição, o padre já tinha abandonado, voltado para a França e tinha deixado um padre meio maluco lá, um polonês, que acabou arrumando confusão lá e tinha ido embora. Os índios estavam abandonados, já estavam na responsabilidade da FUNAI, mas o cara morava em Belém. Então, fiquei sozinho lá. Tinha um médico que passava ano em ano, deixava a farmácia equipada, um médico lá de São Paulo. Então tinha vários compêndios medicinais, ficava nome de remédio, como é que usava. Eu ficava lá, quando pintavam um caso grave... Então, fiquei lá e foi maravilhoso ficar só com eles. De repente pintou os cursos de indigenista e resolvi fazer. 

Paulo Maia: Esse oferecido pela FUNAI? 

Vincent Carelli: É! Teve uma interação grande através do antropólogo baiano que se chama Olímpio Serra. Foi um cara muito importante nesse momento. Ele foi assessor do general Ismarth, que era o presidente da FUNAI. A FUNAI era esculhambada, era a época dos projetos de desenvolvimento comunitário. Isso só dava merda, só dava merda. E o Olímpio convenceu o general, “pô, vamos deixar os antropólogos coordenarem os projetos, que tal? Vamos ver se dá certo. Eles que metem tanto pau.” Então, isso era até uma isca. Falaram, “esses porras desses antropólogos, que só criticam!”. E bolou um mega negócio! Eram uns seis ou sete projetos coordenados pelos antropólogos.

Eu fui colega do Gilberto Azanha que fazia pós-graduação onde eu frequentava e a mulher dele. Eu sei que... caiu logo, porque entre os antropólogos, tinha vários antropólogos estrangeiros, era o David Price, era aquele inglês que foi para os Makú.

Paulo Maia: Silverwood-Cope 

Vincent Carelli: Isso, teve o João Pacheco nos Tikuna, nos Yanomami tinha o Kenneth Taylor e a Alcida Rita Ramos. Tudo isso era zona de fronteira e os militares não suportaram, acharam uma péssima ideia. E, claro que tinha problemas, enfim, como tudo. E quem mais que tinha? Ah, tinha a Iara Ferraz que depois virou minha companheira, que é o projeto que deu certo. Tinha o Melatti, que um ano também fracassou. Ele mandou um monte de semente para os índios. Eles comeram todas as sementes, não plantaram nada. Ele coordenava o projeto pela Rádio Nacional, por recados de Brasília. O Gilberto assumiu o projeto Krahô. Era a área que a gente tinha pesquisado com os Canela. Ele me chamou. Porque quando eu acabei o curso, você tinha que marcar lá onde você queria trabalhar. 

Eu marquei lá. Tinha saído com compromisso com os Xikrin que ia morar lá. Só que cheguei lá e o coronel Nogueira, que os Kayapós chamam ele de Coronel Noket, aquele que não enxerga, mandou me chamar. Daí ele falou, “olha, você não vai para os Xikrin. Não dá para você ir para os Xikrin”. “Qual é o problema?”. “É porque você é amigo dos índios”. 

Eu já tinha arrumado uma confusão, porque tiveram vários acidentes. Uma vez um cara levou uma machadada, abriu a perna...

Eu fui no rádio, eu não tinha nem esse direito de ir no rádio. Porque eu não tinha nem esse... o CAPA, não sei o quê, todos aqueles códigos, QR1... Mas eu consegui contato e falei, “olha, a situação aqui é dramática! Preciso retirar alguém...”. Se eles poderiam pedir para os americanos vir buscar, porque eles têm helicóptero. Era perto, Serra dos Carajás, era dos americanos, chamava Serra Norte, que era recém-descoberta a mina a céu aberto de ferro de Carajás. E os caras não atenderam. Eu sei que a gente deu um jeito, enfaixou. Pouco tempo depois, de repente pinta um avião de americano lá, para bater foto. E ainda trouxeram uma caixa de fumo de rolo. Daí eu falei, “esse fumo tá podre”. Daí, puta, eu perdi as estribeiras! Tentei falar com a base em Belém, não consegui. Expulsei aos berros os americanos de lá. E o coronel, claro, tinha ficado puto. Pô! Mas para quê que eles servem? Na hora que a gente precisa de ajuda os caras não ajudam. Depois vai fazer turismo e leva presente de merda para os índios! Foi por isso que ele não me deixou ir. 

Daí fui para os Asuriní, era 73, 74, não me lembro mais. O [Antônio Soares] Cotrim tinha acabado de sair de lá, 71. Quando o Cotrim saiu, dizendo que não queria mais ser coveiro de índios, ele tinha feito contato com o Asuriní do Médio Xingú. E ficou revoltado, todo o contato que ele fazia morria muita gente, não tinha cobertura nenhuma. Ele pediu demissão e partiu de lá. E eu sucedi esse abacaxi! Cheguei lá e, em poucos dias, me chega uma indígena, uma equipe de caçada, uma índia jovem, branca, mal, sangrando na vagina. Eu não tinha informações ainda sobre o quê que estava acontecendo. Eu sabia que tinha tido uma mortandade. Lá não tinha remédio nenhum! Tinha enfermeira, mas não tinha remédio. Tinha um soro. Eu vou dar um soro nessa menina, nessa moça. Depois entendi que aquilo tinha sido um aborto, eles faziam um aborto mecânico. Mas, na hora, eu não sabia o que ela tinha, o que tinha acontecido. Dei-lhe esse soro, botei ela numa canoa e mandei o Timbira: "desce pra Altamira!”. Mas era, sei lá, 8 horas da noite. Meia hora depois eles voltaram e enterramos a menina. Eu falei, “caralho! Eu vim suceder ao Cotrim aqui nessa merda”. E, na verdade, eles passaram dez anos sem ter filho, fazendo aborto sistemático. É um povo que resolve... O trauma foi muito grande. Depois, para eles voltarem a ter criança, foi muito depois que eu desci. E, de novo, eu era um enfermeiro.

Eu fiz uma sequência de fotos desse enterro, bem à distância, porque eu não tinha intimidade nenhuma. Era um momento triste, mas era bonito. Eles estavam construindo uma maloca tradicional que dá, em termos de sofisticação, de dez nos símbolos. Até as palhas eram por encaixe. Acertavam as palhas. E eu trabalhei nisso...

Uma vez um cara maluco que chegou lá fez uma competição de tiro... Ele fez uma denúncia caluniosa contra mim. Com essa denúncia, eu entrei numa sindicância e fui tirado de lá à força. Havia uma situação complicada lá que envolvia o “cunhadismo”, que o Darcy tão bem definiu. Eu cheguei, a situação estava lá. Quem era eu para me intrometer no negócio que o pai de uma menina tinha decidido, pô? Eu sei que isso aí acabou numa sindicância... Eu nunca lia o relatório. Mas, enfim, fiquei de castigo seis meses em Belém e tinha que bater-ponto lá, e tinha ali um depósito de relatórios. Falaram: “você fica organizando essa papelada aí”. Que era essa papelada que depois foi para o Museu do Índio. Tinha relatórios datilografados do Fernando Meirelles, do Fernando não, do Chico Meirelles. Enfim, tinha material lá do SPI, eu fiquei rolando lá. Foram seis meses ótimos em Belém.

Eu tava assim, fiquei assim, dilacerado. Cheguei em Altamira, eu tava tão mal, e ainda tinha que almoçar com o Carvalho, que era "o Carvalho"! Sabe quem é o Carvalho? O Fidel Castro do indigenismo. O Carvalho esse que morreu, que trabalha lá no... que resgatou o Pinto lá dos Waimiri, o herói do sertão, Porfírio Carvalho.

Paulo Maia: Ah, Porfírio já é um nome conhecido.

Vincent Carelli: Esse cara me perseguiu por 10 anos. Mas eu tinha que almoçar, eram os aposentos da base. Eu para conseguir... eu ia no bar e enchia um copo desse, aquele copo de plástico, de cachaça e tomava assim vrum... para conseguir me segurar.

Paulo Maia: Para dar uma estabilizada.

Vincent Carelli: Enfim, foi uma experiência muito dolorosa. 

O Gilberto assumiu o projeto do Melatti e falou, “pô, Vincent?! Vamos trabalhar junto aí, vai?”. Eu fui para os Krahô que foi uma experiência maravilhosa. O problema do Krahô, é uma região rica, mas semiárido, cerradão, era a fome. Fome, dispersão. Ir nas fazendas para fazer farinha de meia, com a plantação dos vizinhos. 

A gente resolveu falar: “tudo bem, vamos... É o seguinte, nós não vamos dar semente para ninguém! Nós vamos plantar junto com vocês.” E nós plantamos, sei lá, um número absurdo de roça! Uma semente muito boa, arroz ligeiro, arroz de terra firme. Em três meses, cara... Em três meses teve uma fartura que foi uma loucura, que os caras não conheciam há 80 anos. As pessoas começaram a voltar, a reconstruir as aldeias. Nosso trabalho lá ninguém podia saber, mas era financiar a festa. Porque é assim que se recompõe um povo. Era o que a gente fazia lá.

E era um coronel também, chefe em Goiânia, o coronel Baioque. Esse cara sequestrava, porque lá tinha a GRIN [Guarda Rural Indígena] e quem pagava os salários era a PM de BH, de Minas Gerais. 

Roberto Romero: Que foi onde surgiu.

Vincent Carelli: É, então era 30 salários que ele fazia? Ele retinha o salário. Nesse tempo tinha uma inflação, sei lá, de 40% ao mês, aquela loucura. Ele segurava 3, 4, 5 mil, quanto ele pudesse, aplicava, ficava com a grana e finalmente liberava. O cara tinha uma herança do SPI muito forte. Se por um lado o Rondon tinha mandado o exército para defender eles, era a época que teve o massacre dos Canela, teve confusão lá nos Krahô também. O chefe de posto, o Gilvan, era também daqueles como o cara que tinha lá nos Gavião. Era chefão, chefão dos índios, sempre com um 38 na cintura, A autoridade. Então, a relação era muito perniciosa, tudo se fazia escondido do chefe. 

A gente entrou pra arregaçar! “Ô, vamos plantar junto, vamos tal...” “Cachaça?” “A cachaça é problema de vocês, tá? É vocês que têm que controlar. E outra coisa, é melhor beber na aldeia do que ficar caído na sarjeta lá no Itacajá!” 

Então, era um processo de desconstrução mesmo da nossa autoridade, da autoridade da FUNAI afinal.

Tinha também a fazenda do SPI, o gado do SPI. Então, uma das primeiras medidas, Gilberto... fomos lá na fazenda do SPI, chamando todas as aldeias. É, falou, “ó, cada aldeia tira o seu, leva, come, faz o que quiser”. E acabamos com a fazenda do SPI. Já que tinha esses salários... E eram caras bacanas, esses da GRIN, jovens, muito alfabetizados. Então, convertemos eles em professores. Tinha uma equipe de professores, assalariados com dinheiro.

Terminamos todas essas revoluções, fartura, não é? Quando você descomprime um negócio desse, eu estava no posto e de repente entrava um índio com uma garrafa de 51 destampado e botava assim na minha mesa. Eu estava olhando para ele e... Testava assim...

Mas foi muito bom, foi muito incrível essa grande virada. Mas é claro que a gente denunciou o Baioque, que era o nosso grande inimigo. E corria todas as fofocas dos pequenos funcionários para a delegacia, para denunciar que a gente fazia tráfico de cachaça, tráfico de mulheres, não sei o quê. 

Roberto Romero: Pra Goiânia? 

Vincent Carelli: Pra Goiânia.

Teve uma hora que, um ano e meio depois, eu falei, “puta, eu não aguento mais esse negócio!”

Os índios estavam na nossa. Mas tinha um velho, pajé, o Marcão, o temido Marcão, feiticeiro. Ele tinha uma aldeiazinha e foi o núcleo da nossa oposição. Tinha um sobrinho dele, para ver como o cara era maquiavélico. Um dia era aniversário dele, e o Marcão mandou um presente, um portador com o presente, que era uma garrafa de cachaça. O cara que estava em guerra aberta com o avô-tio lá, o grande Marcão, então ele mandou esse litro de cachaça, o cara tomou o litro todinho e deu um tiro na testa.

Então, teve momentos dramáticos! A coisa estava ficando assim, tinha os pró-FUNAI, que eram os caras que tinham os benefícios, que não queriam alterar as coisas. E aí eu resolvi sair. E logo depois também o Gilberto e a Marilisa saíram. 

Paulo Maia: Da FUNAI, que você fala? 

Vincent Carelli: Saíram do projeto. Eu não saí da FUNAI, eu fui... voltei então para Brasília. E os caras arrumaram uma portaria para mim no Alto Purus. Eu não sabia que o inferno que era o Alto Purus, é a região mais difícil em termos de... 

Roberto Romero: Ecológicos. 

Vincent Carelli: É, de pium. Putz! Aliás, os Asuriní também, ali tinha muito. Mas a técnica dos índios é o escurinho. Eles fecham a casa, fica tudo escurinho e o pium não vem. Era o Alto Purus... Daí eu cruzo com o Carvalho no corredor. E o cara: “-Vou anular a tua...” Ele tinha acabado de ser nomeado chefe do núcleo do Acre. “Eu vi a tua portaria, eu vou cancelar tua portaria agora! Você devia estar preso, não sei o quê, não sei o quê...” Foi lá e desmanchou a minha portaria. 

Aconteceu um negócio nos Xakriabá, que era o Célio Horst, que era um antropólogo meio esquisito, que estava chefiando lá e os fazendeiros meio que metralharam o posto, a porta, tudo, lá nos Xakriabá. Eu falei, “ah, então, me dá uma portaria pro Xakriabá!” Puta merda, eu já não aguentava mais. Tomei um ônibus para Belo Horizonte, cabeça quente e no meio da viagem eu decidi, “quer saber de uma coisa? Eu vou cair fora desse negócio!” Desci do ônibus na rodoviária, fui pro guichê, comprei uma passagem de volta, subi no outro ônibus e voltei para Brasília. É que eu era meio... eu tinha um cabelo meio grande. Era uma pessoa meio exótica, era a época dos hippies. 

Roberto Romero: Isso já era final dos anos 70? Ou metade ainda? 

Paulo Maia: Já nos anos 80, não?

Vincent Carelli: Nem lembro mais. Eu só trabalhei dois anos e meio na FUNAI. 

Roberto Romero: Porque é período da GRIN e a GRIN acaba mais ou menos em 76, se não me engano. 

Paulo Maia: Então é bem antes.

Vincent Carelli: Mas eles não estavam mais lá. Ela acaba como instituição e acabam os salários. Mas os índios já estavam nas suas comunidades. Era antes do fim da GRIN. Então, rolava esse salário que custeia todo o projeto de educação.

Eu, de mochila e tudo, entro na sala do coronel Joel, que era o chefe de pessoal. “Coronel, eu tô fora desse negócio, tchau.” “Então senta aí e pede tua demissão.” 

Eu sei que a sindicância foi ótima! Seis meses depois, o parecer da sindicância... 

Roberto Romero: Lá do Pará?

Vincent Carelli: É lá do Pará. Era uma carta que dizia... era uma repreensão por se identificar demasiado com os costumes indígenas. “Obrigado, bicho”.

Paulo Maia: Essa era uma premissa do indigenismo dessa época, não é? 

Vincent Carelli: Eu caí fora! O Gilberto também saiu. De repente, chega uma comissão de Krahô, em São Paulo, atrás da gente. Chegando lá, falando, “escuta, nós viemos buscar vocês! Porque o negócio lá voltou tudo para trás. Voltou tudo para trás, queremos vocês lá.” “A gente não tem condições, mas a gente pode dar um apoio.” É isso que gerou o CTI [Centro de Trabalho Indigenista]. 

Paulo Maia: Uma demanda direta.

Vincent Carelli: Isso que gerou o CTI. É. Tinha essa Noemi Dias Martins, que era uma especialista em Guarani, falava bem em guarani, exilada política. Até aquele pastor Jaime Wright, que dava um salário para ela, que era companheiro do Dom Paulo Evaristo Arns. E a Noemi fala, “Olha, gente, eu conheço os canais de cooperação, vamos fazer uma ONG para a gente trabalhar.” Deu meio que o caminho das pedras. A gente fundou, em 1979, o CTI. 

E é tão gozado, porque décadas depois, nós fomos, já numa outra era, lá para aldeia do avô do Ariel [Ortega], lá em 25 de maio, lá em Missões. E aí a gente descobre que a Noemi tinha trabalhado lá e que um dia ela chegou com o namorado dela e na entrada da aldeia do Tamanduá tem uma ponte e um riachinho bem forte. E eles resolveram se banhar e o cara se afogou lá no rio... Puta que pariu! Agora nós demos uma volta... 

Eu sei que aí fundamos e descolamos uma grana justamente para derrubar o Baioque. Então era uma grana... Eu viajava, viajei para a área. Fiquei fora da reserva e mandei portadores com um bilhetinho. “Ó, vamos pra Goiânia e tal, fazer a queixa do Baioque.” Os emissários foram convidar e começaram a aparecer os índios. Só que a merda é que um dos chefes não sabia ler e foi pedir para o chefe de posto ler para ele o bilhete.

Paulo Maia: Nossa, entregou tudo! 

Vincent Carelli: Entregou! Eles se comunicaram com o Baioque. Baioque mobilizou a polícia federal rodoviária. Na Belém-Brasília, eu já estava com todos os índios, a gente estava embarcando. Me abordaram, falaram “Vincent Carelli, é o senhor?” “Sou eu mesmo.” “Então pode subir!”. Fui preso, me levaram algemado do norte de Goiás. Quer dizer, ele fez...

Paulo Maia: Se você estivesse na terra [indígena] teria sido bem pior? 

Vincent Carelli: É, sei lá! Como era uma área muito perto da zona que tinha sido da guerrilha, pertinho de Xambioá. Então, o coronel fez meio que um elo.

Paulo Maia: Juntou as duas coisas. 

Vincent Carelli: “É um subversivo!” Um dos caras que tinha feito curso comigo. Só que quando você é preso, você tem o policial mal e o policial bom. Um que tenta na força e o outro não e tal, não sei o quê. Me levaram algemado até Goiânia, um dia de viagem. Eles paravam para almoçar, me botavam na cadeia local, iam almoçar, traziam uma quentinha. Quando eu ficava só no almoço numa cadeia... 

Roberto Romero: Só você que tava com eles? 

Vincent Carelli: Só. 

Paulo Maia: Os indígenas ficaram? 

Vincent Carelli: Ficaram. Mandaram todo mundo de volta para a aldeia. O delegado desta cidade, não me lembro o nome da cidade... Eu tinha que prestar contas. Então, eu tinha as notas fiscais de todas as despesas do bolso. Me revistaram, tiraram [as notas]. “Tá vendo ele trabalha pra alguém!” Encontraram minha Pentax. “Aqui, equipamento estrangeiro!” 

Paulo Maia: Todas as evidências!

Vincent Carelli: Todas as evidências de que eu era um terrorista teleguiado... 

Paulo Maia: Mas você tava com medo? Ou você tinha esse humor já naquele momento? 

Vincent Carelli: Não, eu estava angustiado, estava angustiado. 

Roberto Romero: Sem nenhum contato! Não fez nenhum contato. 

Vincent Carelli: É. Tinha uma antropóloga, a Isa Rogedo, acho que era casada com um cara importante, braço direito do Olympio Serra, que dava a maior cobertura para gente. Aí um dos policiais: “Você não tem ninguém em Brasília pra te ajudar?” E eu dei o telefone da Isa. Eles ligaram para ela. Depois ela contou, “Não, eu recebi um telefonema que eu não entendi. Depois desligou.” 

Eu sei que eles me trancaram lá na Federal de Goiânia. Era uma prisão secreta, não me comunicaram, eu não podia ligar para ninguém. Era um sequestro. Eu não fui para uma cela. Sabe debaixo da escada que tem um quartinho? Que você bota as vassouras e tal? Eu tinha uma cama. Eles me algemaram na cama e eu fiquei três dias lá. E aquele terrorismo do cara que trazia comida e falava: “Parece que hoje eles vão resolver teu caso”. Você passa o dia naquela expectativa e de noite o cara: “Parece que não, acho que ficou pra amanhã.” Os interrogatórios, o Baioque participava. E no fim, o cara da Federal entendeu, “Pô, esse cara! Esse menino não tem nenhuma ligação... Relaxaram a prisão, eu corri, liguei e voltei para casa. Mas tive que voltar para lá, para mais depoimentos. Sequestraram minha máquina, o filme, as fotos que eu tinha batido: “Não, isso aí é parte do processo.” 

Quem me ajudou foi aquele Luiz Eduardo, Greenhalgh, que era advogado de presos políticos, a gente tinha feito a primeira reportagem da Guerrilha do Araguaia. Quem era advogado do Genuíno era o Luiz, então a gente acabou ficando amigo. No dia que o Genuíno foi solto, ele ligou pra gente e falou, “ó, ele vai estar em condicional, está sendo solto, agora é o homem de vocês.” A gente passou bastante tempo entrevistando ele, lançou o livro da guerrilha. 

Quando aconteceu isso, eu procurei o Luiz que me deu assistência. Pagou a passagem dele e a minha para voltar para Goiânia. Quando eles viram que, pô? Eu tinha advogado profissional no meu caso, morreu o assunto. 

“Pô, Luiz? Não dá pra você recuperar minhas fotos?” “Não, é parte do processo. Não sei...” Eu acho que um dia ele recuperou essas fotos e eu perdi. 

Paulo Maia: Vincent, você estava falando que essa teria sido, vamos dizer assim, a primeira ação do CTI. E ao mesmo tempo você ainda tinha que prestar a conta dessa viagem. 

Vincent Carelli: Claro, porque era um fundo evangélico. Um evangélico lá, um crente de periferia, o Fundo Samuel que deu a grana pra viagem. Enfim, a Operação FUNAI acabou aí. Daí que eu fui trabalhar no ISA, que era CEDI [Centro Ecumênico de Documentação e Informação]. 

Paulo Maia: Mas ainda estou curioso. Porque parece que essa narrativa, essa história que você tá contando, é um pouco dessas ONGs, tipo CTI, entrando dentro dos territórios indígenas, um pouco à revelia da FUNAI e numa disputa. Depois disso, o CTI está aí até hoje... 

Vincent Carelli: Porque ONG nesse momento era diabolizado, era coisa de comunista. Depois que teve a Constituinte, acho que a FUNAI ainda levou mais uma década para reconhecer o direito dos índios de ter uma associação e de ter seus advogados. Coisa que a gente já fazia nos anos 1970, porra! Então, era coisa do diabo ONG nessa época no Brasil.

O CEDI era um negócio de trabalhar opinião pública, banco de dados. Eles achavam que... eram os professores que fizeram a... como é que chamava? A Comissão Pró-índio, os antropólogos professores estavam lá e os doidos dos alunos, que éramos nós, em campo. O Beto Ricardo foi a primeira vez em campo comigo pra filmar a Festa da Moça [1987]. Eu pedi demissão do CEDI depois. O Beto ficou chateado. Falei, “não, mas agora eu quero voltar”. Eu não aguentava mais esse negócio de mexer com dados. Queria estar na aldeia!

Roberto Romero: O Beto também estava na USP quando você abandonou Ciências Sociais?

Vincent Carelli: Ele era da Unicamp. Ele foi professor da Virgínia Valadão. 

Então, nós éramos os malucos. Mas, a gente ia pra campo mesmo. 

Paulo Maia E a Fany Ricardo? A Fany já devia ter um papel também sempre muito articulador dessa galera toda que fazia a rede.

Vincent Carelli: É, na verdade o Beto era assessor da Igreja, do CIMI. 

Paulo Maia: O CEDI era o Centro Ecumênico?

Vincent Carelli: É. Dos evangélicos de esquerda que durante a ditadura acolheram esses projetos todos. E que começou, estava pensando em fazer o Povos Indígenas no Brasil. 

Paulo Maia: Povos Indígenas no Brasil, publicação anual.

Vincent Carelli: E nessa onda, você tem, “pô, o cara é fotografo!” Eu assumi o negócio da fotografia nas enciclopédias. Começou a publicar, acho que publicou uns três números e depois parou. Arrumei esse emprego, que foi a minha salvação, porque eu cheguei em São Paulo com uma mão na frente e outra atrás. 

Paulo Maia: E cansado, imagino.

Vincent Carelli: Foi essa aventura que eu contei, das fotos e dos arquivos e desse momento de articular essa rede. Então, cada um entrava com um capital de relações para convencer as pessoas a participarem. Entre missionário, antropólogo, indigenista, era tudo um caldeirão de acusações e ressentimentos, vamos dizer assim. 

Quando começou o Vídeo nas Aldeias, eu falei, “Beto, eu vou seguir o meu...” O Beto falou, “olha, Vincent, você tem certeza?” Então, eu falava, “eu... tenho certeza.” 

Roberto Romero: Isso logo após a Festa da Moça? 

Vincent Carelli: É! Quando eu vi que, “pô! Olha, isso aqui vai dar samba...” 

Paulo Maia: E aí que você volta pros Gavião e pros Krahô? 

Vincent Carelli: Não, durante esse tempo, quando eu tô nos Krahô...

Paulo Maia: O Azanha e a Ladeira tão no acervo, não é? A gente os viu num pedaço dos filmes ali. Os dois aparecem, eles aparecem, não? Eles não tão juntos ali naquela época?

Vincent Carelli: Não, não. Não, isso foi bem mais tarde. 

Paulo Maia: Foi bem mais tarde? Mas eles não estão de volta com você, depois, nessa região não?

Vincent Carelli: Não, não. O Gilberto continuou também com a cooperação, montaram em Carolina um projeto que se chama Frutasan, de frutos do cerrado para fazer polpa. Ganharam um projeto da Comunidade Europeia para fazer isso, desenvolveram uma máquina. Todo um negócio que eles continuaram com um trabalho alternativo lá. 

Enquanto eu estava no Krahô, a Iara estava no Gavião, fazendo a revolução dela, que foi também uma loucura. O general Ismarth ofereceu para ela coordenar um projeto de independência, de autonomia dos índios. Mãe Maria era o maior castanhal da FUNAI. Produzia 2 mil, 3 mil hectolitros de castanha por ano. Isso financiava muita coisa na delegacia. E o mandato que a Iara ganhou, falou, “não, você não precisa se remeter à delegacia de Belém, você fala diretamente comigo. Você fala direto comigo.” Então, ele criou um atalho ali. 

Roberto Romero: Ele, em Brasília? 

Vincent Carelli: É, como presidente. “Você vai preparar os índios para eles gerirem a castanha.” Porque eles só recebiam o salário de peão, de coletador. Na verdade, a área era uma doação do governo do Estado para o povo do Gavião. Foi criada essa reserva antes de fazer o contato. Isso foi criado em 1951, o primeiro contato com os Gavião foi no final de 1956. Mas eles foram jogando todo mundo lá. Na verdade, os índios eram proprietários e foi essa loucura, a grande virada. 

Um [membro] da família Mutran, que são os árabes grandes exportadores de castanha do Pará, tinha acabado de chegar de Paris. Um irmão mais novo, que tinha uma base lá, tinha um telex! O negócio da castanha era você vender no momento certo. 

Paulo Maia: Na bolsa?

Vincent Carelli: É! Ele acompanhava e dava o sinal.Não, segura, segura, segura!” Eles empenhavam um tanto e, no final, já estava faltando e o preço ia subindo. A Iara tinha esse aliado lá em Marabá que dava a cotação. Foi uma operação bem exitosa. Os índios vibraram com o negócio! Passaram a administrar mesmo o negócio. Eles passaram a contratar os peões. De empregado, eles viraram patrão. O cara do SPI vai embora. Isso vai acontecendo ao mesmo tempo. 

Vincent Carelli: Nessa época, quando me demiti da FUNAI, não fui para São Paulo. Fui para os Gavião. A gente já namorava. Então, eu vou ficar aqui. 

Paulo Maia: Ah, você ainda tinha uma... a sua parceira. Você voltou pra lá, então?

Vincent Carelli: É, porque a gente se visitava, ela ia para o Krahô, eu ia para o Gavião. 

Roberto Romero: A Iara.

Vincent Carelli: A Iara. 

O delegado, o coronel, mandou um cara pra me expulsar lá dos Gavião. O cara que tinha sido também delegado de Altamira. 

Paulo Maia: Tudo gente boa!

Vincent Carelli: É, só gente boa, que fechou milhões de contratos de madeira. “Os grandes defensores dos índios”. 

O capitão manda me chamar. Quando entro na sala dele, tá lá o Salomão, dizendo que “eles tinham mandato para me retirar da área, que nesse radiograma aqui me incumbindo dessa missão...” (Quando eu surto, eu surto mesmo!) Ele com o radiograma e eu “vupt”! Peguei o radiograma, piquei na frente dele. Falei com ele, “meu filho, quem manda aqui é o Capitão. Se o Capitão quiser que eu saia, eu saio. Agora, vocês não mandam nada aqui!” Salomão teve que se recolher. O Capitão ficou na dele. Depois de uns dias a gente foi lá no Capitão, “Capitão, acho que eu vou embora! Porque vocês estão na boa aí, não estou a fim de misturar a minha história com a de vocês”. Não queria causar problema e era tempo que a Iara também estava voltando. Nós voltamos pra São Paulo. 

O negócio da minha memória com datas assim é meio flow [vago], mas eu sei que aí eu comecei a ir para o Mato Grosso, para os Nambiquara. Mudei de nome, passei a chamar Roberto. É que o meu nome é Vincent Robert. Falei, “vou usar Roberto agora!”

E eram meus queridos amigos que fizeram curso comigo. Era o Silbene Almeida, não sei se vocês conhecem, o Silby, o Ariovaldo dos Santos. E o Marcelo pintou, já no quinto curso, ele também e o David Price tinha sido demitido. Eu fiquei lá, ajudando eles, fotografando. Fiquei bastante lá nos Nambiquara. Até voltar para São Paulo e eu acabei indo para o CEDI. 

Depois a passagem na guerrilha, que foi também adrenalina pura! Essa reportagem da guerrilha do Araguaia, porque ainda era uma área de segurança nacional. Todo aquele sul do Pará... Ninguém tinha revelado, a censura manteve a notícia da guerrilha a sete chaves. Tinha saído uma matéria, uma vez, no Estadão dando algum furo. Meu amigo Palmério Dória, que é um jornalista paraense... Inclusive, quando eu estava lá em São Paulo, eu reunia os amigos, mostrava os slides, as fotos e Palmério apareceu lá. Tinha umas fotos do Suruí, que foram implicados diretamente na questão da guerrilha. 

Outro dia o Palmério foi lá e disse, “Vincent, eu queria te fazer uma proposta. Vamos lá para o Sul do Pará fazer uma matéria sobre a Guerrilha do Araguaia?” “Bora!” “Você vai de fotógrafo.” Era surreal porque ele tinha um amigo de infância com quem ele jogava bola e tinha apresentado a namorada, que depois virou a mulher do cara, do capitão Cleto. Sabe aqueles que usavam um Ray-Ban? Que era o chefe da PM da região e um dos chefes da tortura. E a gente sabia. Mas o Palmério tinha essa relação com o cara. A gente foi lá e se apresentou por cara, o capitão Cleto, diretamente. “Ah tá, legal!”. Ele tinha concedido inclusive um carro oficial do DNER [Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte], com assessoria de justiça do Governo lá em Belém, para dar cobertura. Botaram a gente na Casa Azul, que era uma casa do DNER, que depois a gente soube que era o espaço da tortura. Eu sei que o negócio era complicado lá, porque todo dia a gente tinha que fazer um relatório com o Capitão Cleto. “Aonde vocês foram?” 

Roberto Romero: A reportagem era através de qual veículo?

Vincent Carelli: Não, era independente. 

Roberto Romero: Independente? Mas, eles autorizavam fazer uma reportagem? 

Vincent Carelli: Não, mas a gente não estava fazendo matéria sobre “a Guerrilha”! A gente tava fazendo uma matéria sobre desenvolvimento amazônico. Te digo, quando não tinha Google, você podia passar qualquer teatro, pô! O que a gente fazia o tempo todo. A gente fez assim, com o cu na mão, às vezes a gente falava, "Puta!”. Tinha um tal do telefone vermelho, que todas as instituições de repressão tinham essa ligação. E uma hora a gente achou que o jogo ia virar com a gente. A gente escondia as fitas cassetes, tudo gravado em fita cassete, os depoimentos. Eu sei que foi incrível. 

Fizemos e publicamos. Esperamos o Genuíno sair da cadeia. Ele deu o serviço todo, entrevistando também o Jarbas Passarinho e algumas pessoas mais. Acho que até o General Abreu e o Passarinho também, que era um... não sei se ele era senador do Pará? O Jarbas... não, Passarinho. Eu sei que a gente publicou uma revista pra banca de jornal. 

Paulo Maia: Ah, vocês fizeram a revista? 

Vincent Carelli: É. Não, com um judeu, Fernando Mangariello. Ele tinha uma editora que chamava Brasil em Debate, um negócio desse. Ele bancou o negócio. Primeiro, a gente brigou com ele, porque como estava tendo a campanha para a presidente do general Abreu, dos paraquedistas, todos eles estavam implicados na história da guerrilha. O cara rodou e segurou. A gente puto, falava, “porra, o cara é candidato! Esse é o momento!” Ele segurou, segurou. Ele tinha medo porque na época o exército ia para a gráfica e apreendia a edição. Ele não queria ter esse prejuízo. A gente brigou com ele. Depois ele acabou lançando e vendeu 25 mil exemplares em 15 dias em bancas de jornal. 

Roberto Romero: E vocês assinaram? 

Vincent Carelli: Assinamos, claro. A gente chamou o Buarque, um outro jornalista, e o Jaime Sautchuk também, que tinha feito uma outra reportagem. A gente agregou tudo isso. Mas a gente nunca foi pago. Porque a gente brigou com o cara também. Ele fez uma segunda edição também.

Paulo Maia: Essa história tem uma cara de revista Realidade...

Vincent Carelli: Era a turma da revista Extra Realidade Brasileira, o Hamiltinho... Eu escrevi um livrinho sobre os Nambiquara, Mão branca contra o povo cinza. Quem redigiu, botou a forma foi o Myltainho que também era dessa equipe. Depois eles fizeram o Extra Realidade. Era esse grupo de jornalistas e de vanguardas e foi meu aprendizado em jornalismo investigativo. Foi uma aula. 

Vincent Carelli: Depois a gente fez uma matéria para o número zero da IstoÉ, que o Mino Carta, que tinha saído da Veja e estava fundando a IstoÉ. De novo o Palmério brigou com o Mino, daí ele não assinou a matéria. Porque Mino tinha interferido no texto: “o exército salomonicamente, tinha salvado um conflito fundiário.” O Palmério não gostou, esse “salomonicamente...” Porra, toda matéria dava briga. 

Depois a revista 3 se chamava? Eles estavam lançando... Paulo Patar também era um dos jornalistas formados lá. Quando foi a Revolta do Sul, dos índios do Sul? 78? Talvez. Quando mataram o Ângelo Kretã [cacique Kaingang]. Teve tudo isso, a rebelião, teve uma insurgência. 

A gente rodou 5 mil quilômetros, todos os estados do sul. O exército ocupou alguns. A gente foi primeiro no Paraná, Laranjeiras do Sul, que estava ocupada pelo exército. Começamos a reportagem por lá. Tinha um cara que ficou, um índio, que ficou observando a gente, o que a gente conversava... No final, ele falou, chamou a gente num canto e falou, “olha, vai ter um negócio lá no Rio Grande do Sul e tal”. Era o Ângelo Kretã. “A minha aldeia é lá em Mangueirinha, depois vocês vão lá me encontrar”. A gente ganhou um passe e foi até o [Nelson] Xangrê [cacique Kaingang de Nonoia]. Essas fotos eu tenho, dessa viagem, porque eu fui como fotógrafo. As fotos, depois eu dei... A matéria... já tava o print teste e aconteceu não sei o quê e caiu a matéria. E uma outra matéria, que aconteceu de repente, tirou a nossa matéria. Eu tinha os prints, depois eu dei pro filho do Kretã. Como é que ele chama? Kretãzinho, lá de Mangueirinha que tinha aquela grande questão das araucárias. 

Ainda trabalhei nesse negócio de jornalismo um tempo, com o Palmério. Depois eu arrumei esse bico lá no CEDI. 

Roberto Romero: No CEDI que você disse que teve todo o contato com esse arquivo também. 

Vincent Carelli: Com os arquivos e com as aldeias. Teve várias expedições. As expedições para os livros. Então, com a Dominique, a gente fez todo o Oiapoque. 

Paulo Maia: Isso já pro PIBão? 

Vincent Carelli: pro PIBão.

Paulo Maia: Ah, então vocês iam mesmo! Eu tinha uma impressão de que era assim, porque você tinha uma rede. E essa rede já estava disponibilizada. Você também fazia, tipo, uma cobertura na área, já com o interesse de cobrir certo evento, todo o trâmite... 

Vincent Carelli: Então a gente fez uma longa viagem por todas as aldeias, inclusive na Guiana do Oiapoque. Depois com Paulo Santilli, que era Roraima. Também os padres me emprestaram uma toyotinha, uma toyotinha e rodamos, rodamos. Acho que um mês nas aldeias...

Paulo Maia: Tudo película? Tudo 35 mm, nessa época? 

Vincent Carelli: Foto, branco e preto. O que mais que nós fizemos? Esses livros saíram, os primeiros. O Oiapoque saiu, sim. E barrou lá no Kayapó. 

Paulo Maia: Ele mudou, não é?

Roberto Romero: O livro não era geral, era por região. 

Paulo Maia: Antes ele era por região, depois ele começou a ser por décadas. E dentro de cada década você tinha as regiões, dentro de um mesmo tema, tanto que ele vira...

Vincent Carelli: Era o mesmo recorte. 

Roberto Romero: Tem até o mesmo design.

Paulo Maia: Era o mesmo recorte. Só que ele não era separado, ele passa a ser uma compilação da década sobre os povos das macrorregiões. Porque antes você teve a primeira publicação dessas macrorregiões. 

Vincent Carelli: O conteúdo do que era enciclopédia virou virtual, virou site do ISA, do Povos Indígenas no Brasil. Continuou, mas a ideia da enciclopédia impressa morreu e ficou essa compilação de matérias de jornal e comentário, textos analisando as regiões.

Paulo Maia: Era tipo uma espécie de clipping para mídia, por um lado. Por outro você tinha tipo textos de apresentação, por exemplo, a malária na década de 80... 

Vincent Carelli: O suicídio dos Guarani. Os grandes temas tratados... 

Paulo Maia: Esses arquivos fotográficos, eles estão todos lá no ISA, no Acervo? Com essas imagens todas que você fotografou durante esse período. E não tem nada disso na sua casa? 

Vincent Carelli: Depois eu retirei, acho que eu retirei os negativos. Mas, eles têm tudo, eles têm tudo. Porque quando eu vim embora para Recife, porque eu estava de luto também, a Virgínia tinha morrido. O Betão foi lá e falou, “Vincent, eu posso dar uma geral aí no teu arquivo fotográfico?” “Ah, pode. Tira o que você quiser aí.”. Eu sei que ele me deu um rapa. 

Paulo Maia: E ele sabe! 

Vincent Carelli: Ele me deu um rapa. 

Paulo Maia: Porque ele pensa na frente, não?

Vincent Carelli: “-Esse Vincent maluco... Não tem nem casa! Cada dia mora em um lugar...” O que foi bom, porque às vezes tem foto que eu não tenho, ligo lá para o ISA, falando, “você tem essa foto?” “Ah tá, a gente te manda”. 

Paulo Maia: Igual o Zezinho Yube o fazendo com você. Tipo isso, eu quero ter isso, eu quero ter um Beto Ricardo, que eu possa ligar pra ele, falar assim, “Por favor, você pode mandar aquela sequência de fotos do Xikrin de 57?” 

Mas olha só, vamos voltar um pouco... Claro que a gente não vai conseguir fazer essa história. Acho que, na verdade, isso aqui é uma boa entrevista e que a gente pode em algum momento fazer uma outra, porque eu acho que a sua biografia é incrível! Mas, só para voltar nas fotografias, porque na instalação, foi a primeira vez que a gente teve essa informação, que você teria 12 mil fotos. 

Vincent Carelli: E tem mais, teria uma parte que não está digitalizada ainda. 

Paulo Maia: Mas isso dá essa ideia do que seria uma coisa geral. E ali, no caso, você estava mostrando 300 fotos. 

Vincent Carelli: 350...

Paulo Maia: 300 e um pouco. Eu não cheguei a ver o looping inteiro. Ou seja, também essa informação falta na expografia, que é quais arquivos que estão ali. Eu vi que tem Rio Negro, vi que tem Kaiowá, Xikrin. 

Vincent Carelli: Eu fiz o negócio quase cronológico. 

Paulo Maia: É, porque tem as cartelas. 

Vincent Carelli: Comecei em 69, depois vou para o Nambiquara e assim por diante. Depois a ordem cronológica ficou confusa, porque tem fotos que fotografei lá atrás, depois eu retomei. Então, a cronologia ficou capenga…

Paulo Maia: Eu acho que esse detalhe a gente pode recuperar depois. Mas a minha pergunta era mais no sentido de que você, claro, quando a gente começou a conversar sobre essa coisa do acervo no ano passado... 

Vincent Carelli: Você falou em foto... 

Paulo Maia: É, tinha essa coisa toda. Tinha aquela coisa do seminário, mas a gente não deu o gás. E surgiu essa ideia, que eu achei que foi bem melhor, de trazer para o forumdoc mesmo, e aqui a gente começar a se aproximar em relação a isso. Mas você acabou tendo que ser forçado, de alguma maneira, a voltar para esse arquivo. 

Vincent Carelli: Foi fantástico! Agradeço muito. Porque na primeira proposta, achei que era fazer umas ampliações, tal, um espaço. Mas quando virou um slideshow... 

Paulo Maia: Te motivou. É isso o que eu queria dizer.

Vincent Carelli: É, é, foi fantástico pra mim. E mexeu muito comigo. Porque, puxa, eu revisitei minha trajetória através das fotos. Inclusive fiquei muito satisfeito de descobrir arquivos que, eu nem lembrava, quando eu vi, tinha trabalhado muito essas fotos, ampliado. Mas, não tinha a menor ideia se eu ainda tinha esse material. Tá em uns 4, 5 HDs. Passei uns 10, 15 dias lá, meio "ilhado": a Tita e o Fábio estavam ali dentro do aquário. Eles não estavam acreditando. Falando, “você está brincando, Vincent?” Eu falei, “não, eu tenho um compromisso aí.” 

Paulo Maia: Formulei isso um pouco nesse sentido, acho que isso deve ter sido uma experiência um tanto corporal para você. Supondo que lidar com essas imagens você tem uma reminiscência no corpo...

Vincent Carelli: Sim, sim, mexeu muito comigo.

Paulo Maia: ...da ordem do intensivo, bem mais do que... ou seja... que tipo de intensidade estava ali, uns flertes assim? Você poderia falar um pouco sobre isso? 

Vincent Carelli: Revi muitos momentos! As fotos nambiquara, tem umas coisas lindas, principalmente as mais antigas. Foi muito bom refazer essa viagem da minha trajetória. E foi aí que imaginei que teria que ser um negócio meio cronológico de 1969 a 2018. As primeiras fotos branco e preto. Eu sei que me emocionei muito fazendo essa viagem. Fiquei super satisfeito. Então, tudo foi meio precipitado, de última hora. 

O meu primo, que é fotógrafo, se ele visse, ficaria chocado. Acho que ele passa um dia para acertar a cor de um quadro. Ele fotografou todo o acervo de quadros do meu pai. Ele era o fotógrafo dele. Antes de meu pai morrer, ele mandou o filho dele, que errou, fez tudo em JPEG em vez de fazer em RAW. Tá tudo lá com ele! Ele não libera. “Eu tenho que refazer. Não posso fazer tratamento de cor no JPEG”. 

Paulo Maia: Seu vínculo é de uma ordem bem diferente, parece. Dá ideia, eu acho que mesmo no cinema e na fotografia, isso resvala muito, não é? Bem do que a gente poderia dizer, a materialidade das imagens, mas ela escapa um pouco, não teria muito... 

Vincent Carelli: Você vê como marcou bobeira! Qualquer coisa era interessante de ter. Como você é falho. Quanta coisa eu deixei de registrar, uma simples foto de paisagem, mas também outros registros sonoros que eu não fiz, que era a coisa mais maravilhosa. Mas era difícil. Quando a mulherada passava, todo dia, em fila indiana pra ir banhar junto, e voltava com os caldeirão de água. Elas tinham um rir, davam gargalhadas em conjunto. Uma começava “ah!! Uuuu!!!” Era lindo! Tanta coisa que... Por mais que tivesse vontade de deixar as coisas registradas, foi o mínimo que eu fiz, pelo que eu vi, pelo que eu poderia ter feito. 

Mas também tem, por exemplo, nos Krahô eu fotografei muito pouco. Porque a nossa atividade, o nosso envolvimento era total, não tinha descanso. Fotografar... Todos os povos com os quais eu fiquei envolvido com atividades, fotografei muito pouco, porque não dava tempo, sempre estava envolvido em outras coisas, mas é isso.

Não sei se você viu a foto de uns índios deitados na estrada? Dos Nambiquara.

Paulo Maia: Não, eu não vi a parte dos Nambiquara justamente. 

Vincent Carelli: É uma das partes mais bonitas. Nós fizemos muita campanha com essa foto. 

Roberto Romero: Deitados, dormindo? 

Vincent Carelli: Não, com cigarro, perna aberta, paulzão caído assim, vários deitados na estrada. Depois, quando a gente fez a campanha contra a estrada, a gente pegou um cara, como se ele estivesse dentro de um carrão, quase atropelando esses índios deitados na estrada. Essa foto virou um cartaz da campanha. 

Outro episódio maluco dos Nambiquara. Eu fiz um audiovisual na época. Eu e Virgínia, a pé, andando todo o Guaporé, entrevistando os primeiros colonos. A narrativa era todas as entrevistas de como as pessoas percebiam os índios. Quase no fim desse negócio, um dia, aterrissa, a gente ia dormir na fazenda, num barracão lá e, chega um teco-teco. Aterrissa lá na fazenda procurando por mim. Acho que eles estavam... vieram por alguma indicação... Era Dom Tomás Balduíno e a Ana Lang. Vocês conhecem a Ana Lang? Que foi também antropóloga da FUNAI, que tratava desse caso. 

O Dom Tomás chegou pra mim, “ó, vamos pra Roterdã! Você vai ser o testemunho de acusação do governo brasileiro do caso da estrada”. E eu falei, “não, Dom Tomás! Você tá louco!?! Nem carteira de identidade eu tenho, como é que eu vou arrumar, nesse prazo, um passaporte?” (risos) Eu deixei a Virgínia lá e o Silvino foi resgatar ela. Me botou no avião, ele e a Ana Lang. Ele falou, “Bora, bora! Eu vou te levar agora, para São Paulo, direto.” Fizemos escala não sei onde, para reabastecer o avião. Ele me deixou em São Paulo, consegui fazer o passaporte e fui lá. Fiquei já com as fotos dos índios, com as latas de desfolhantes químicos que tinham sobrado, era o agente laranja, na verdade, que tinha sobrado do Vietnã. Fui munido com bastante material fotográfico. 

É aquele [caso] que os militares não deixaram o Juruna ir e um advogado apresentou uma queixa no juiz. E o juiz disse “que os índios têm todos os direitos de um cidadão, além de seus os direitos específicos, tem todos os direitos” e liberou. O Juruna chegou atrasado lá uns dias. Foi um evento lá, foi muito incrível. Tinha a denúncia do Álvaro Tukano com o Márcio de Souza que repercutiu, foi em novembro de 80, como todos os salesianos eram sustentados pelos evangélicos, pelas igrejas da Europa e pegou super mal. E todos os internatos salesianos foram fechados como consequência do Tribunal Russell. (Tinha lá a turma da Guatemala, tudo de capuz, que tinham se refugiado na Embaixada da Espanha. Uma parte foi metralhada, aquelas coisas de Guatemala.) Foi um tribunal que teve repercussão. 

E a questão Nambiquara também, então o Banco Mundial exigiu condicionantes. Nessa época, a gente trabalhou muito com o Banco Mundial. A Virgínia virou assessora, então a gente fez muito essa triangulação de mandar provocar a retenção do dinheiro...

Roberto Romero: O Chico Mendes mesmo, naqueles filmes. Lembro que tinham feito essa coisa de ir... 

Vincent Carelli: Claro, acionar as coisas aqui, porque pesavam, os militares precisavam dessa grana.

Paulo Maia: E vocês tinham que fabricar um material que propusesse uma evidência disso, não é? E acho que as fotografias também, elas tinham esse papel fundamental. As campanhas, como você estava dizendo.

Vincent Carelli: Sim, claro, claro. A última operação que a gente fez foi barra pesada. Vou contar mais um caso aqui. Então, teve uma invasão garimpeira imensa no Sararé. A consequência do Russell foi que a gente conseguiu desenhar e fazer demarcar áreas contínuas dos vários povos, fora o Sararé, que era muito longe. 

Paulo Maia: Evitando a demarcação descontínua, em ilhas.

Vincent Carelli: É. E eu... com quem que eu fui? Ah, com o Fausto Campoli. Então, fiz um acordo com a TV Cultura, que pagou a passagem, fui lá pro garimpo. Chegamos em Pontes de Lacerda, que dali saía para o garimpo. Chegado lá... Correu um boato que tinha uma festa de um deputado, acho que até era deputado estadual, de Cuiabá, que ia fazer uma visita ao garimpo. E nós fomos pra festa. Ele convidou, “vamos com a gente!” “Bora!” O cara, ele tava indo com uma mensagem do Jair Campos, que era governador do Mato Grosso, que era pros garimpeiros ficarem, não saíram não. Filmei essa reunião. Ele tomava cachaça Jamel, e foi com a garrafa assim, na voadeira. Quando chegou lá, ele já tava falando mole. “Eu sou o representante do Jaime Campos. E nós vamos segurar vocês aqui. Pode confiar na gente...” e eu filmando. 

Paulo Maia: Deixa falar! 

Vincent Carelli: Claro! Eu tava adorando. E o negócio do afastamento da BR-364, era um mega empréstimo. A gente mandou o material para o Banco Mundial. Depois li a trama toda que um jornalista publicou em Cuiabá. O Jair Campos foi para o Banco Mundial liberar o empréstimo e a condicionante do empréstimo era que tivesse tirado os garimpeiros. E o Jair Campos chegou lá "Não, tá tudo tranquilo! Já tiramos todo mundo. Tá tudo ótimo.” Contou aquela mentira e os caras falaram, “ah tá, tá! Vamos aqui na sala de projeção que a gente quer mostrar um negócio para o senhor”. A cena do deputado falando em nome dele, dizendo que era para os garimpeiros ficarem. Cara, ele ficou maluco! 

Daí eu fui filmar o despejo. Ele teve que montar uma megaoperação policial, era tudo PM, para fazer o despejo na hora, “Ó, gente, pega a mala, desce aí”. Eu fui filmando eles retirando as pessoas e uma hora tinha um garimpeiro: “Pô, mas esse é o cara que estava filmando lá aquele dia!” E começou a juntar garimpeiro... E passou dois PM. Eu, “-psiu, vem cá, vem cá! Me tira daqui!” E o Fausto tava se cagando de medo. Fomos salvos pelos PM ali! Porque caiu a ficha, tinha saído a matéria que a filmagem do tal deputado foi mostrada para o cara. Então tava rolando essa... “Ai, puta merda! O quê que eu vim fazer aqui?” Ah, foi demais, foi bom, foi bom. Escapei, mas valeu. 

Paulo Maia: A última coisa que vamos te perguntar. As fotos que estão lá, por exemplo, dos Xikrin, você digitalizou agora? Ou elas já estavam digitalizadas?

Vincent Carelli: Não, só de negativo mesmo.

Paulo Maia: Pois é, mas você tirou do negativo e digitalizou agora.

Vincent Carelli: Antigamente eu ampliava.

Paulo Maia: É, exatamente. E tem outra parte que foi com a câmera digital, já com a CyberShot?

Vincent Carelli: O Xikrin não.

Paulo Maia: Não, não o Xikrin. Mas tem acervo digital já.

Vincent Carelli: Sim, tem bastante coisa. 

Paulo Maia: E não é só para esses dois balanços.

Vincent Carelli: Agora eu tenho uma 5D, tenho uma 7S, que romperam a barreira da luz. Um salto tecnológico.

Paulo Maia: Mas tem um acervo de película ali que foi digitalizado.

Epílogo

Vincent Carelli, novembro de 2023: Acervo só faz sentido se não for pra engavetar num museu que ninguém tem acesso. Isso é sequestro de acervo, não é? O único acervo que faz sentido com os povos indígenas é um acervo que eles tenham acesso. E a gente está nessa viagem… Nós estamos agora nos Nambiquara fazendo mais uma devolução e é absolutamente emocionante! Eles ficam revendo aqui a festa da moça, quando teve a furação de beiço, gravações feitas há 38 anos. Estou conversando com aqueles meninos que hoje são os velhos, revendo esse momento emocionante da vida deles. E pra eles é muito importante. Isso é que faz sentido em um arquivo. Um arquivo vivo e sobre o qual os índios não perdem o controle.

Currículo

Vincent Carelli

nascido em 1953, é indigenista e documentarista. Fundador do “Vídeo nas Aldeias” (1986), projeto dedicado a ações de fortalecimento das culturas e dos povos indígenas mediadas pela imagem e à formação de cineastas indígenas. Carelli recebeu reconhecimentos internacionais, incluindo o Prêmio UNESCO em 1999 pela promoção da diversidade cultural e busca por relações de paz interétnicas. Em 2009, a ONG “Vídeo nas Aldeias" recebeu “Ordem do Mérito Cultural” do governo brasileiro. Sua trilogia Corumbiara, Martírio e Adeus, Capitão foi premiada em festivais nacionais e internacionais. Em 2017, Carelli recebeu o Prêmio Prince Claus nos Países Baixos por sua militância pelo cinema indígena. Dedica-se, atualmente, à devolução e abertura do acervo constituído pelo VNA aos diferentes povos com os quais trabalhou durante toda a vida.

Notas

[1]Curada conjuntamente por Cláudia Mesquita, Júnia Torres, Luísa Lanna, Renata Otto e Ruben Caixeta de Queiroz.