Quando eu era criancinha
O anjo bom me protegia
Contra os golpes de ar.
Como conviver agora com
Os golpes? Militar?¹
Maria Teresa Porciúncula Moraes, a Tetê Moraes, é uma ativista. Talvez ela não se reconheça nesse termo, e essa seja uma maneira um tanto sumária de descrever uma carreira que se estende por quase seis décadas – do jornalismo ao cinema, da grande imprensa às publicações independentes, por entre vários países (Brasil, Chile, EUA, França, Portugal).
Essa trajetória de muitas faces, exemplar dos múltiplos engajamentos de uma geração – o jornalismo como ferramenta de intervenção política; os múltiplos exílios ao sabor dos golpes militares (ameaça que paira ainda hoje sobre os países da América Latina); a paulatina descoberta da mobilização política das mulheres –, carrega a marca de uma unidade profunda: a colaboração com movimentos de resistência e de transformação social e política, mesmo ao custo do risco pessoal. Tetê Moraes é, simultaneamente, testemunha e participante de uma geração de artistas e intelectuais empenhados, voltados à compreensão das tantas injustiças que permeiam nossa formação social, e narradora dedicada das formas de agência coletiva construídas pelos subalternizados.
Desde Aulas e Azeitonas (1976; codirigido com Aida Ferreira), realizado em Portugal no alvorecer da Revolução dos Cravos, registrando em Super-8 um experimento pedagógico em Cuba, vilarejo no Alentejo – região pauperizada e predominantemente rural deste país –, Tetê vem se dedicando ao registro das formas populares de organização coletiva (em geral, do campesinato), com especial atenção à atuação feminina. Aulas e azeitonas inaugura ainda dois postulados que terão continuidade na obra subsequente da cineasta: a atenção aos movimentos de base, ao protagonismo coletivo e à preservação de uma espécie de centelha revolucionária, presente no desejo de transformação radical das estruturas societárias, que sobrevive nos contextos de transição democrática.
No seu retorno ao Brasil, Tetê realizou Quando a rua vira casa (1981) conjuntamente à pesquisa que daria origem ao livro homônimo, coordenada pelo urbanista Carlos Nelson Ferreira dos Santos e pelo antropólogo Arno Vogel. Carlos Nelson era chefe do CPU (Centro de Pesquisas Urbanas) do IBAM (Instituto Brasileiro de Administração Municipal) e, enquanto tal, financiou uma série de documentários em cinema e vídeo, da qual Quando a rua vira casa fez parte. Registrando a interação dos pesquisadores-roteiristas com os personagens do bairro do Catumbi, no Rio de Janeiro, Quando a rua vira casa mostra os efeitos destrutivos de uma intervenção urbana “revitalizadora” no bairro em questão, em contraponto à observação do cotidiano, às formas de apropriação coletiva do espaço urbano – especialmente, àquelas voltadas ao lazer e ao convívio comunitário (contrastadas com um caso exemplar do que era visto pelos técnicos dos grandes projetos urbanísticos da ditadura como modelar).
Essa mesma fricção entre a gestão estatal da vida coletiva e as formas populares de organização é estruturante de Lages - a força do povo (1982), primeiro longa-metragem de Tetê, que se volta aos estertores do mandato do prefeito emedebista da cidade catarinense homônima, Dirceu Carneiro. Experiência de democracia direta e de participação popular, Lages conduziria o interesse de Tetê pelos movimentos de base mais diretamente à frente da disputa política, a qual se consolidaria, nos anos subsequentes, em sua relação com o ainda embrionário MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
Tendo conhecido o movimento feminista no exílio – tanto em leituras quanto nas práticas de grupos de mulheres em Washington D.C., Paris e Lisboa –, Tetê Moraes voltou ao Brasil, em 1979, trazendo o manuscrito de um livro organizado a oito mãos, reunindo testemunhos de brasileiras exiladas. A atenção às experiências das mulheres levou-a à proposição de um filme em torno de lideranças femininas no campo nordestino. No entanto, a emergência, em 1985, do primeiro grande acampamento do MST, na Fazenda Annoni (RS), fez com que ela mudasse de rota: o projeto, aprovado pela Embrafilme, foi deslocado para o Rio Grande do Sul, e o olhar para as mulheres se manteve. Em 1987, foi lançado Terra para Rose, provavelmente o filme mais conhecido de Tetê Moraes até aqui, ganhador de seis prêmios no Festival de Brasília e do prêmio máximo no Festival Internacional de Havana.
Registro pioneiro do acampamento como forma organizada de luta pela terra, o filme foi feito “junto com a história”, como afirma Tetê em entrevista para este catálogo, acompanhando a intensa mobilização dos sem-terra – marchas, acampamentos, atos, assembleias – para fazer “a reforma agrária sair do papel”. Tetê Moraes elabora o protagonismo das mulheres ao focalizá-las preferencialmente, dando suporte ao acampamento e aos filhos (o trabalho reprodutivo e de cuidados), mostrando-as atuando na mobilização coletiva e nos espaços públicos. As personagens nos mostram como a organização popular politiza o cotidiano – processo que, para as mulheres sem-terra, parece especialmente transformador, alcançando diferentes dimensões da vida. Algo que se nota na experiência e nas reflexões de Roseli Celeste Nunes da Silva, a Rose, jovem liderança sem-terra, que vemos no filme incansável e atuante, com um bebê no colo (Marcos Tiaraju foi a primeira criança a nascer no acampamento da Fazenda Annoni).
A aliança com as personagens de Terra para Rose – acompanhadas durante quatro períodos de filmagem, em 1986-1987 – se desdobrou em O Sonho de Rose, 10 anos depois, filme em que Tetê Moraes reencontra algumas famílias que conheceu no acampamento, assentadas em 1997 (em sua maioria) em diferentes pontos do Rio Grande do Sul. Em um momento em que o MST e sua militância eram alvo da mídia comercial, que insistia na marginalização e criminalização do movimento, O Sonho de Rose constata as inúmeras experiências positivas dos assentamentos (ainda que conflitos internos também apareçam). A “trilogia da terra” de Tetê Moraes se encerra com Fruto da Terra, curta no qual a cineasta reencontra Marcos Tiaraju, filho caçula de Rose, então militante do MST e estudante de medicina em Cuba em 2008.
A presente retrospectiva inclui ainda O Sol - caminhando contra o vento (2006), provavelmente o trabalho mais autobiográfico da cineasta. Reunindo depoimentos e imagens de arquivo, catalisados por uma “festa-filmagem”, O Sol rememora a experiência do jornal-escola do qual Tetê Moraes também participou, integrando a equipe de diagramação. Idealizado pelo poeta Reynaldo Jardim e sob o comando da jornalista Ana Arruda Callado, O Sol foi precursor, antes do AI-5, do jornalismo alternativo que iria contestar e resistir à ditadura militar em seu período mais sombrio – em veículos como O Pasquim, Opinião e Movimento.
No filme, Tetê Moraes alinhava as duas facetas principais de sua trajetória, nunca separadas em sua práxis documental: o jornalismo e o cinema. Sua atuação como jornalista constitui a base de sua prática documentária, enriquecida pelo tempo de convivência e de filmagem, e pelas alianças construídas com as pessoas filmadas, fruto de seu firme posicionamento político (junto àqueles e àquelas que resistem). Talvez isso lhe tenha permitido alcançar, como desejava Eduardo Coutinho, a possibilidade de “fazer do jornalismo uma das belas artes”. Ou, quem sabe, fazer do documentário uma arte engajada na história presente, construindo, junto às pessoas filmadas, “a propícia estação” para semear a luta.
Currículo
Cláudia Mesquita
professora do curso de graduação e do Programa de pós-graduação em Comunicação Social da UFMG, onde integra os grupos de pesquisa Poéticas da Experiência e Poéticas Femininas, Políticas Feministas. Pesquisadora do cinema brasileiro, com mestrado e doutorado na ECA-USP. Realizou pós-doutorado na Universidade Federal do Ceará (2018-2019), onde desenvolveu o projeto O presente como história - estéticas da elaboração no cinema brasileiro contemporâneo. Publicou, com Consuelo Lins, o livro Filmar o real - sobre o documentário brasileiro contemporâneo (Editora Jorge Zahar, 2008), e organizou, com Maria Campaña Ramia, El otro cine de Eduardo Coutinho (Cinememoria e Edoc, 2012), publicado no Equador.
Ewerton Belico
curador, roteirista, diretor e educador. Integra a equipe de programação do forumdoc.bh. Codirigiu e corroteirizou Baixo Centro, A memória sitiada da noite, Vira a volta que faz o nó, dentre outros. Foi curador das mostras Retrospectiva Geraldo Sarno e Léa Garcia - 90 anos, ambas realizadas no CCBB, dentre outras.
Notas
- CACASO. Na corda bamba. In: CACASO. Lero-lero. Rio de Janeiro: 7 Letras; São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 54.
- OLIVIERI, Silvana Lamenha Lins. Quando o cinema vira urbanismo: o documentário como ferramenta de abordagem da cidade. 2007. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.
- Memórias das Mulheres do Exílio (org. Albertina de Oliveira Costa, Maria Teresa Porciuncula Moraes, Norma Marzola e Valentina da Rocha Lima) foi lançado pela Editora Paz e Terra em 1980.
- Símbolo da luta pela reforma agrária no Brasil, Rose foi morta em março de 1987, vítima de um atropelamento criminoso nas proximidades do acampamento. Ela não chegou a presenciar a desapropriação da Fazenda Annoni, onde cerca de 450 das 1.500 famílias acampadas foram assentadas, sendo as demais conduzidas a outros locais do estado.
- Sobre a emergência das mulheres sem-terra como sujeitas políticas, ver nosso artigo sobre a “trilogia da terra” publicado neste catálogo.