Refletir (com) imagens

Em 2019, exibimos os dois primeiros filmes resultantes de oficinas ofertadas pelo projeto Vídeo nas Aldeias – encabeçadas por Vincent Carelli – entre os povos Awa Guajá e Tenetehara-Guajajara. Os filmes Virou Brasil, dos Awa Guajá, e Guardiões da Floresta, dos Tenetehara-Guajajara, trouxeram narrativas que vivificam modos de vida ancestrais e modos de resistência contra a invasão e destruição de seus territórios pelas frentes de expansão coloniais, frequentemente criminosas, mas também “legais”.

Naquele mesmo ano de 2019, Paulo Paulino Guajajara, um Guardião da Floresta, foi assassinado, emboscado por madeireiros invasores, no interior de sua T/terra – a Terra Indígena Araribóia. Paulo Paulino não foi um caso isolado. Ao contrário, em 2022, num único dia (3 de setembro), Janildo Oliveira Guajajara, outro Guardião da Floresta, foi assassinado com tiros que o atingiram pelas costas e um adolescente, que o acompanhava, foi baleado, perto da TI Araribóia; Jael Carlos Miranda Guajajara também morreu depois de ter sido atropelado por um veículo na cidade próxima ao município de Arame (MA), onde a TI Arariboia incide, e a polícia confirmou que se tratava de um caso de homicídio. Uma semana depois, no dia 11 do mesmo mês de setembro, Antônio Cafeteiro Guajajara, morador na TI Araribóia, foi assassinado com seis tiros, em uma estrada que leva a um povoado no município de Arame. Entre 2003 e 2021, a plataforma Caci, mantida pelo Cimi, registrou 50 assassinatos de indígenas Guajajara no Maranhão. Em 2015, um incêndio dilacerou mais da metade da floresta no interior da TI Araribóia: dos 413 mil hectares de floresta, 220 mil (53,2%) foram destruídos.

Em 2023, Sônia Guajajara, liderança indígena, nascida e criada na TI Araribóia, tornou-se Ministra dos Povos Indígenas. Todavia, mesmo que os casos de assassinato de pessoas guajajaras tenham arrefecido durante o atual governo, não conseguimos evitar invasões das suas terras por madeireiros, caçadores, criadores de gado, etc. No Maranhão, noutros Estados da Amazônia, ou fora dela, todas as TIs no Brasil estão sob forte ataque, seja por parte de invasores ilegais, seja por parte daqueles que legalmente deveriam protegê-las. Lembramos que a Lei n. 14.701 de outubro de 2023 foi aprovada e teve todos os vetos presidenciais derrubados pelo atual Congresso Nacional. Mesmo que coexista com ela uma “câmara de conciliação” instalada no STF, após o julgamento de inconstitucionalidade da tese do “marco temporal”, a Lei n. 14.701/23 está oficialmente em vigor. Ela inviabiliza a manutenção das Terras Indígenas, tal como existem hoje no país, não apenas porque acolhe a tese inconstitucional do marco temporal, mas porque desfigura outras definições do que seja uma terra indígena conforme o artigo 231 da CF de 1988 (notadamente, no que prevê o § 2º, quanto ao usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes; no § 4º, quanto ao caráter de inalienabilidade, de indisponibilidade das terras e de imprescritibilidade dos direitos sobre elas; no § 6º, quanto ao caráter de nulidade e extinção dos atos que têm por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas). Assim, tanto as TIs já regularizadas como as em processo de regularização estão todas, nesse momento, na mira desta Lei, e, até que ela seja julgada inconstitucional ou até que a CF seja alterada, seguimos num limbo jurídico administrativo que concede ainda mais fôlego para a “lei do mais forte”, tornada regra geral durante o governo da necropolítica de Bolsonaro. Isto não é exagero, e a recente condenação, a 10 anos de prisão, do ex-presidente da Funai, Marcelo Xavier, o comprova. Esta lei ordinária, aprovada pelo Congresso eleito na onda bolsonarista, visa acabar com as terras indígenas e tudo o que elas abrigam: modos de vida resistentes ao chamado anarcocapitalismo, alternativas econômicas e simbólicas de autonomia política dos povos originários, cosmopolíticas nativas de integração das pessoas humanas e não humanas, ontologias ameríndias contracoloniais, do mesmo modo que Marcelo Xavier e Jair Bolsonaro visaram acabar com a atuação e a vida do indigenista Bruno Pereira.

Pois bem, voltando à TI Araribóia, além de ela ser a casa-território dos Tenetehara-Guajajara, incluindo-se a ministra Sônia, é também a T/terra habitada por um coletivo de indígenas “isolados” do povo Awa Guajá. Seria mais apropriado dizermos que eles estão “encurralados”, “cercados”, “afugentados”, naquela TI, já que ela se tornou uma porção exígua do que sobrou de seu território. O antigo território awa guajá era bem mais vasto, mas, desde a década de 1980, foi cortado pela Estrada de Ferro Carajás, da Vale. A estrada e seus impactos separaram, em duas partes praticamente incomunicáveis, o território antigo, assim como as terras indígenas atuais, habitadas pelos povos Awa Guajá, a saber, TI Araribóia, TI Caru, TI Awá e TI Alto Turiaçu (todas no Maranhão).

O cenário de guerra contra os povos originários se faz especialmente cortante na TI Araribóia, e torna os Awa Guajá “isolados” habitantes nela o “povo mais ameaçado do mundo”. Mas o que sabem os Awa Guajá, habitantes nas terras indígenas Caru, Awá e Alto Turiaçu, parentes antigos dos “isolados” atuais (na TI Araribóia ou nas outras), sobre essas histórias? O que eles contam sobre sua própria trajetória, sobre seus parentes antigos, sobre seu território antigo e atual, sobre a vida que tinham antes, e a vida que passaram a ter depois do contato com o mundo dos não indígenas? O que eles pensam sobre os não indígenas? E como sustentam o céu para que não caia sobre nossas cabeças?

A presente mostra-seminário, acolhida neste forumdoc.bh, desdobra-se da disciplina Awa mumu’ũha tea (Histórias verdadeiras dos Awá), ofertada por professores awa guajá no âmbito do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG. Nesta disciplina, professores awa guajá refletem, junto com professores e alunos da universidade, sobre a construção de suas histórias, suas narrativas orais – antigas e atuais – e seus cantos e sobre suas relações com os karai, isto é, os não indígenas.

A mostra-seminário “Cine Takaja Awa Guajá: modos de inventar o passado-futuro” traz um pouco destas reflexões a partir de meios audiovisuais. Ela agrupa, por um lado, filmes constituídos sob a perspectiva de aliados não indígenas dos Awá Guajá, e instiga a refletirmos sobre como se criou uma tradição do imaginário selvático, prístino e arredio dos coletivos awa guajá “isolados” e “recém-contatados”. Por outro lado, seguramente mais importante, traz um pouco da perspectiva dos próprios Awa Guajá sobre suas histórias verdadeiras. 

Sabemos que os Awa Guajá foram, de modo geral (e alguns de seus coletivos permanecem sendo), construtores ativos de sua invisibilidade perante nossos olhos. Mas, hoje, exceto os que se mantêm em isolamento, ou seja, os Awa Guajá de recente contato, habitantes nas aldeias, têm sido ativos na construção de sua auto-mise en scène e querem ser ouvidos e vistos, assim como querem nos indagar a respeito de nós mesmos. A partir desta mostra-seminário, propomos uma pequena oportunidade para este diálogo. Propomos um presente que não se faça mais sem a presença dos Awa Guajá. Esta mostra-seminário traz ao forumdoc.bh alguns realizadores, professores e lideranças políticas do povo Awa Guajá para nos acompanhar na exibição dos materiais de cinema, vídeo e midiativismo digital realizados com e por eles. A mostra é composta de 15 filmes no total. 

Começamos pelo clássico Serras da desordem (2005), realizado pelo consagrado cineasta Andrea Tonacci, que contou com a auto-mise en scène do extraordinário personagem de Karapiru – que revive, no filme, sua própria saga de fuga e sobrevivência de um massacre contra seu povo. Karapiru é, portanto, representado por ele mesmo, quando está na sua situação contemporânea ao filme, e por um conterrâneo mais jovem (Mihaxa'a), quando o filme se remete ao seu passado. Serras é exemplar do que o dito progresso e desenvolvimento do Brasil reservaram aos povos indígenas, sobretudo naquela “década da destruição”, justamente quando os Awa Guajá foram oficialmente alcançados pelo Estado brasileiro. Serras é mais fundamental no contexto desta mostra-seminário pelo fato de que, comentando essa obra-prima do cinema brasileiro, estará outra vez junto ao forumdoc.bh sua montadora, Cristina Amaral. Ela que, gentilmente, nos trará parte do material não editado do filme para ser exibido e debatido com os próprios Awá Guajá. Evoé Tonacci, Evoé Cristina e a esta alvissareira retomada das antigas imagens pelos Awa. 

Outro filme que reapresentaremos é Virou Brasil (2019). Já dissemos que este filme foi originado numa oficina pioneira do VNA junto aos Awa Guajá das aldeias Awá e Tiracambu, na TI Caru. Virou Brasil traz saberes e fazeres dos Awa Guajá atuais aprendidos com seus antigos. Todavia, o filme não mira um passado paralisado, mas indaga o presente e futuro de um povo indígena que, a certa altura de sua trajetória, foi obrigado a conviver com a onipresença dos grandes empreendimentos. O filme percorre a trilha dos antigos caminhos de caça e coleta, bem como os caminhos de ferro da mineração da Vale. No meio, ele se depara ainda com a “pedra” dos projetos de mitigação e compensação ambiental. Virou Brasil se rebela contra essa armadilha. “Virou Brasil” é um título irônico que desvenda o enigma da intrusão extrativista colonial sobre o presente e o futuro de um povo habituado a viver na floresta, com a floresta e toda a vida que ela abriga. Virou Brasil responde à esfinge com flechas, pegadas, caçadas, mel, jabutis, sementes, cantos, vozes que se indignam e nos indagam, e que, enfim, não se dão por vencidas. A floresta existe ainda e o povo está de pé, habitando nela, alimentando-a e alimentando-se dela. 

De volta ao forumdoc.bh está também o filme Os donos da floresta em perigo (2019), com direção coletiva de cineastas do povo Guajajara, com a colaboração de realizadores não indígenas no roteiro e na montagem. O cenário do filme se passa na Terra Indígena Araribóia. O realizador, Fly Guajajara, ele próprio um “guardião da floresta” e midiativista, anda por seus caminhos tradicionais de caça em busca de provisões para sua festa mais importante. Inadvertidamente, ele se acerca de alguns membros do grupo de awa guajá isolados que frequentam também aquele mesmo território. Fly hesita. Um Awa sente seu cheiro. Os dois olhares estranhos se cruzam por um momento fugidio. Cada qual se retira dali para seu lado, mas guardam-se mutuamente na memória daquele encontro. Comprometem-se, doravante, a uma convivência distante e respeitosa. Contudo, para manter o compromisso, alerta Fly, precisam proteger sua terra-floresta, mantendo-a livre dos invasores bárbaros.

Outro filme concebido por parceiros dos Awá Guajá, nesse caso, pelos indigenistas do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) é Awá ka'apará (2007), um filme mais antigo e concebido no estilo documentário-denúncia. Aqui, o que se pretende relatar é a vida tradicional de um povo caçador-coletor, que anda pela floresta e dela depende para viver de forma livre e autônoma. Contudo, este modo de vida passou a ser ameaçado, seja por madeireiros ilegais ou madeireiras legalizadas pelo lobby, seja pelo padrão de assentamento adotado pela Funai a partir da década de 1970, que almejava fixar os grupos awa guajá nos arredores dos postos de atração e a incentivá-los a praticar uma agricultura de subsistência.

Já o filme dirigido por Mariana Fagundes, Nossa casa: Awá-Guajá (2015), também conduzido na perspectiva de uma aliada não indígena, situa uma reparação da justiça. O filme acompanha um momento-chave para a regularização da Terra Indígena Awá, única TI identificada para uso exclusivo do povo Awa Guajá (não compartilhada por outros povos indígenas). Homologada apenas em 2005, mais tardiamente que as demais (Caru, Alto Turiaçu e Araribóia), a TI Awá foi finalmente restituída aos Awa Guajá, em 2012, por meio de uma decisão judicial que obrigou o Estado a retirar os habitantes não indígenas de seu interior. A partir de uma bela fotografia, e de uma sensibilidade aguçada dos realizadores, o filme narra os dilemas dos Awa Guajá para viver na sua casa-floresta sob a pressão da indústria madeireira, da mineração e dos povoados de não indígenas, compostos, em sua maioria, por moradores muito pobres, uma vez que também eles foram espoliados pelos poderes devastadores do agronegócio. 

Nos últimos anos, de forma cada vez mais intensa e autônoma, os Awa Guajá têm produzido suas próprias imagens e ensaios fílmicos reflexivos sobre o seu passado e o seu presente, na busca de um lugar no futuro, mesmo que seja no meio do inevitável mundo dos brancos karai. A Mostra “Cine Takaja Awa Guajá” acolhe três filmes inaugurais dirigidos por cineastas awa guajá. Produzidos recentemente, a partir de 2018, e no contexto de atividades-oficinas em torno dos cuidados com a saúde e com o bem viver indígena, os filmes refletem sobre práticas alimentares, procedimentos de cura e modos de partejar tradicionais. Também refletem dilemas impostos pelas novas práticas advindas do contato com o sistema de saúde oficial dos não indígenas. Os títulos dessa série são: A doença de antigamente quando vivíamos na mata (2019), Cuidando da saúde do Itaí (2018) e Parto awá (2019). Todos estes filmes são fruto de uma roteirização dos realizadores awa guajá junto com seus parceiros indigenistas, a antropóloga Lirian Monteiro e o médico-comunicador-cineasta Vicente Furtado. Os três filmes demonstram um exercício de encenação que nos pareceu bastante peculiar por parte dos realizadores awa guajá (a invenção de uma tradição?). Eles exibem uma agilidade, ao mesmo tempo jovial e serena, no desenvolvimento da narrativa fílmica, uma maturidade no jogo cênico construído para o enquadramento da câmera, que, por sua vez, sustenta o contraste ou a colisão entre dois mundos. Esses filmes nos intrigam: feitos por realizadores tão neófitos, estarão compostos como narrativas dramáticas desenroladas ao modo mais tradicional?

Outro bloco de filmes realizados a partir de um protagonismo awa é aquele formado pela série produzida pelo coletivo Japua, awa Pape Mumu’ũhara wã, no âmbito do projeto “Awa mumu'ũhatea: contando a verdadeira história dos Awa” – numa produção apoiada pela iniciativa Salve a Floresta por meio do projeto “Direitos Humanos na Escola Awa”. Os professores awa guajá são os cineastas desses filmes feitos para construir e transmitir conhecimentos. Por meio dos filmes, os professores conduzem o interesse de seus alunos sobre diversos aspectos da sua socialidade: o modo como se espreita a caça e como ela é também espreitada pelo trem; o modo tradicional de envasar líquidos; o contraste entre bebidas nativas e bebidas industriais ou o impacto perverso (irreparável e impagável) causado pela Estrada de Ferro Carajás (e sua mais recente duplicação) na vida de seu rio. Os títulos dessa série são: O canto do capelão (2024), Copo da mata (2024), Líquidos e alimentação tradicional (2024) e Rio Pindaré (2024).

Por fim, a Mostra “Cine Takaja Awa Guajá” quis também trazer para o espectador os filmes-retratos produzidos no contexto do projeto coordenado pelo Museu da Pessoa, que procura registrar histórias de vida das mais variadas pessoas viventes no Brasil. Nesse caso, as histórias de vida de pessoas awa guajá foram narradas em sua própria língua, traduzidas e legendadas para o português e gravadas também por pessoas awa guajá, sob a orientação e o monitoramento técnico do já aclamado cineasta indígena Alberto Alvares. Em seus depoimentos, as pessoas awa contam a respeito de quem são, como seu mundo foi originado, como era seu modo de vida nos tempos antigos, como foram encurraladas pelos forasteiros – brancos karai – e como se viraram para sobreviver depois que tudo “virou Brasil”. Os dois filmes exibidos nesta série são resultado de uma montagem de trechos de algumas histórias pessoais awa guajá. Os títulos são: Guardiões da memória Imara Akwa Ha Pame Ikoha - Pensadores da oralidade da floresta (2022) e Guardiões da memória Ka’A Xakaha Imarakwa - Awá: resistir para existir (2023).

Todos esses filmes serão apresentados no forumdoc.bh.2025, seguidos de comentários ou de mesas-redondas, conduzidas pelos professores awa guajá, que deixarão suas aldeias no Maranhão, pegarão o trem da Vale até a capital, São Luís, e, por fim, embarcarão no avião para aterrissar nos Confins de Belo Horizonte. Nessa confluência de rotas de mineração e transporte monumentais de minério, e catastróficos crimes ambientais e muitas mortes sob a lama ou sob balas, os Awa Guajá do Maranhão trazem para Minas Gerais seu sopro quente de cura em forma de imagens, belas palavras, cantos e reflexões.

PS: A mostra “Cine Takaja Awa Guajá: modos de inventar o passado-futuro” foi produzida numa parceria entre o forumdoc.bh.2025, a Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG (disciplina “Cosmociências: Awa mumu’ũha tea: histórias verdadeiras dos Awá”) e o projeto financiado pela CAPES “Cuidados com a terra, o corpo e o espírito: estudos comparativos e compartilhados entre os povos Karib do Território Wayamu (Pará e Roraima) e os povos Tupi-Guarani do Pindaré-Gurupi (Maranhão)”.

Currículo

Renata Otto

antropóloga, integrante do coletivo Filmes de Quintal, doutoranda no PPGAS da UnB, indigenista na Funai.

Ruben Caixeta de Queiroz

antropólogo, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenador do Laboratório de Etnologia e do Filme Etnográfico. Realizador de documentários e coeditor da Devires – Revista de Cinema e Humanidades. Compõe a equipe de organização do forumdoc.bh, do qual é cofundador.