Diante de 433 inscrições na Mostra Contemporânea Brasileira, em 2025, selecionar um conjunto correspondente a 10 sessões, expressas em 22 filmes, configura um desafio. Concomitantemente, a satisfação de assistir ao acesso à produção audiovisual crescer, junto com uma diversidade de linguagens, formas e sujeitos, faz com que o trabalho seja gratificante, pois se entende que a curadoria e o ato de selecionar são um gesto do olhar coletivo, das pessoas que, diante dessas imagens, se debruçaram, foram afetadas por elas e se desafiaram a escolher.
Como fio condutor – muito ligado aos temas que atravessaram as diversas produções –, a relação com o ambiente, enquanto expressão de existência e ação no mundo, se torna urgente. Seja no âmbito da natureza, onde correm os rios que nos dão vida e as matas que produzem nosso ar, seja na importância de ter um pedaço de terra de onde se pode colher alimento. Encontrar no espaço familiar (ou não familiar) um lugar de fabulação, criação e circulação de afetos. Desvelar, no ambiente social, as estruturas e hierarquias de poder ligadas a gênero, classe e raça que nos desestruturam enquanto seres humanos.
Selecionamos, pois, imagens que nos convidam a reconhecer a urgência de olhar, reolhar, fazer e refazer esses espaços-ambientes, levando em conta a política do olhar de quem vive. Muitas vezes, não basta ser observador da cena: é preciso agir sobre ela. A ação que vem de dentro, por ser mais potente, ativa em nós, espectadores, novas políticas do olhar.
A sessão de abertura da Mostra Contemporânea Brasileira denota justamente o desejo da ação e reúne filmes de forte impacto que, todavia, adotam procedimentos de encenação bastante diferentes. Escudo apropria-se das discussões em torno de arquivo e contra-arquivo para dar a ver a violência policial na Baixada Santista. A direção é precisa ao partir de um pensamento cinematográfico que negocia constantemente o que mostrar e o que esconder. Uma vez que decide dar a ver, os diretores recorrem a grafismos, manipulação da cor e colagens visuais. Com isso, desestabilizam a ideia de paraíso que circunda a Baixada Santista, trazendo para o primeiro plano uma dimensão de horror que permeia as existências periféricas frente à presença da polícia.
Saindo da Baixada Santista e aportando na Amazônia paraense, Pau D’Arco também denuncia tanto a violência executada por agentes de Estado quanto a violência por ele acobertada. É emocionante a resiliência da diretora e dos trabalhadores sem-terra que, mesmo após massacres, intimidações e terrorismos, teimam em não abrir mão de seus direitos. A câmera não fraqueja em sua missão, e nós, os espectadores, como é típico de documentários que acompanham um território por muitos anos, nos apaixonamos pelos personagens e temos de nos preparar para as suas partidas traumáticas.
Em Madre, a realidade da imigração, com as dificuldades que se apresentam a todes que se veem distantes de sua terra natal, se torna fabulação, num relato som-imagético sensível e propositivo, que nos conduz à possibilidade de recriar um espaço, a princípio distante, tornando-o familiar. O longa que o acompanha nesta sessão, A Mulher Sem Chão, um “filme de aliança”, também nos sensibiliza a respeito de como é se sentir fora de casa em seu próprio país e de partir disso para um gesto político de afirmação de identidade e elaboração sobre o preconceito, numa parceria entre mãe e filha que a câmera dá a ver.
Em Palimpsesto, vemos no som e escutamos na imagem a decepção e o luto de perder peças arqueológicas milenares, resultado de um trabalho coletivo tecido ao longo de um tempo imemorial: os antigos que as guardaram ou deixaram pelo caminho, e a arqueologia que cuidou de resguardá-las, para depois perdê-las. Mais um museu queimado pelo descaso público, e a tarefa de dar a conhecer uma profissão e ciência importantes que muito pouco comunicam com o público geral. Junto dele, Afluente nos apresenta imagens de arquivo que documentaram o processo desenvolvimentista de construção da primeira hidrelétrica do Rio São Francisco – o quarto maior rio do Brasil e da América Latina –, contrapondo-as às vivências de pessoas, comunidades e “regiões culturais” ao redor do rio, que assistiram à transformação que operou a “redução da água em eletricidade” e a simplificação “da floresta em caminho para energia”.
Alguns dos filmes abrem caminhos para pensar sobre como corpos, territórios e memórias são atravessados por estruturas históricas de opressão e de exclusão e, mais do que isso, sobre como práticas e gestos de insubmissão produzem formas outras de existência e de pertencimento. Em Ainda escuto o céu embaixo d’água, a narrativa se concentra na experiência íntima de uma jovem travesti, cuja vida cotidiana e afetiva se confronta com os limites impostos por normas sociais e violências simbólicas – dentre elas a própria negação do direito de sonhar. Ao mesmo tempo, o filme articula corpo, desejo e coletividade enquanto territórios de resistência, mostrando como subjetividades marginalizadas recriam espaços coletivos de afeto e afirmação identitária, tensionando a dicotomia entre visibilidade e exclusão social.
Aqui Não Entra Luz desloca o olhar para os legados da escravidão, que continuam a moldar e a restringir possibilidades de vida. A partir de uma investigação que cruza memórias pessoais e pesquisa histórica sobre o trabalho doméstico no Brasil, o filme evidencia como o espaço material reproduz hierarquias e violências estruturais e como algumas mulheres se insurgem contra essas limitações. A obra revela a complexidade da relação entre memória social, território e agência, propondo uma leitura crítica sobre a construção de futuros possíveis em contextos historicamente opressivos.
Mar de Dentro adota uma abordagem poética e política da memória, presente no ato de recuperação de histórias silenciadas e na formulação de contranarrativas que ressignificam experiências individuais e coletivas. Ao entrelaçar o mar de fora e o de dentro como metáforas de passagem, deslocamento e resistência, o filme evidencia a incansável insubmissão de sujeitos historicamente invisibilizados que, em formas particulares de insurgência, criam trajetórias próprias de afirmação e liberdade.
Modos de resistência, protagonismo e construção de memória social são temas que também se fazem presentes em alguns dos filmes que voltam o olhar para trajetórias de mulheres negras e que atravessam gerações, territórios e condições históricas distintas. Em Laudelina e a Felicidade Guerreira, a militante e fundadora do primeiro sindicato de trabalhadoras domésticas do Brasil tem sua trajetória revisitada. Mais do que uma narrativa biográfica, o filme articula militância negra e feminista a processos históricos amplos, evidenciando tensões entre invisibilidade social e afirmação de direitos, entre corpo social e agência coletiva. A obra demonstra como o registro histórico pode atuar como gesto político, iluminando experiências marginalizadas.
Quem é Essa Mulher? põe foco em uma jornada intergeracional pelas estradas da Bahia, percorrida por uma jovem pesquisadora em busca de reconstruir a vida da primeira médica negra do Brasil. Articulando memória pessoal, genealogia e espaço territorial, o filme evidencia duas trajetórias individuais que se entrelaçam com processos históricos de exclusão e superação. Ao problematizar a relação entre história, identidade e pertencimento, a obra revela que a descoberta da ancestralidade não é apenas um exercício afetivo, mas também uma prática política de visibilidade, reconhecimento e reinvenção de narrativas históricas.
Memória, ancestralidade e identidade são temas que também surgem em Capitã Iracema, filme que registra a Festa de Nossa Senhora do Rosário em Urucuia, evidenciando o sincretismo entre o sagrado e o ancestral nas Guardas de Congado. Práticas culturais e tradições coletivas mantêm presenças simbólicas que conectam passado e presente, corpo e rito, comunidade e memória, tornando visível a continuidade cultural e a potência das formas de resistência espiritual e identitária.
A reconexão com a memória familiar, por outro lado, move a narrativa de Cais. O filme conecta experiência subjetiva, paisagem e fluxo hídrico em uma viagem de luto que transforma o deslocamento físico em metáfora existencial sobre perda, tempo, nascimento, vida e morte, memória e passagem.
O luto e a resiliência são também sentimentos muito presentes nos filmes feitos na região centro-oeste do Brasil. Essas terras foram mais intensamente invadidas pelos colonizadores não indígenas após o golpe militar de 1964, quando os governos promoveram a migração em massa de sulistas para a região e impuseram, sob violência extrema aos povos nativos, latifúndios de monoculturas para exportação. A chegada dos brancos veio acompanhada de uma grande devastação ambiental, empreendida por indústrias agrícolas, pelo uso intensivo de fertilizantes e agrotóxicos e pela criação de gado. Nesse contexto, os povos indígenas da região testemunham, desde então, o desmatamento crescente, o envenenamento das fontes de água e a contaminação generalizada pela pulverização aérea de veneno.
Os filmes Sukande Kasáká | Terra Doente e Anfitriões há meio século: a versão mỹky da história trazem as perspectivas indígenas em torno dos processos colonizatórios da região que hoje é o estado do Mato Grosso. Em Sukande Kasáká | Terra Doente, a imensidão da destruição da mata e das feridas das monoculturas ameaça a todo tempo as aldeias indígenas, pequenas ilhas de floresta em meio ao deserto. Ao mesmo tempo que nos sentimos perseguidos e acuados diante da aridez, a natureza pulsa viva e vibrante nas palavras, olhares e gestos dos Kisedje. O filme relata a saga desse povo para habitar seus territórios tradicionais, sempre perseguidos pela devastação ambiental e pelas monoculturas, que avançam cada vez mais rápido. Os Kisedje, que, desde a década de 1970, com a criação do Parque Indígena do Xingu, têm sido forçados a deixar suas terras tradicionais, resistem e insistem em retomar os territórios sagrados e em ocupar os lugares onde sempre viveram, ainda que pressionados pela agroindústria, por grileiros e pelo envenenamento do solo, do ar e das águas.
Situação semelhante vive o povo Myky, que vivia em isolamento voluntário até 1971, mas, obrigados a fazer contato, perderam grande parte de suas terras e de sua população. Hoje, esses povos nativos estão em constante luta pela retomada dos territórios tradicionais, e os filmes têm ajudado a revisitar lugares e memórias e a constituir documentação própria diante dos brancos.
Em Anfitriões há meio século: a versão mỹky da história, recontar a história exige também convocar a presença do homem branco invasor. Seja no fora de campo das imagens de arquivo ou em cena, em encontros tensos e diretos, os não indígenas sempre atravessam o filme e provocam um reposicionamento dos sujeitos da História. O filme acompanha de perto os sábios Myky em viagens pelos territórios tradicionais e testemunha episódios de violência e apreensão ao encontrar os brancos. No mercado da cidade, na câmara de vereadores ou no flagrante desmatamento da terra indígena, em encontros incômodos e diante do risco iminente, a câmera e o filme são também armas de defesa.
Em um sentido inverso, o filme Mopái Pjuta Ãkakje'y – a roça e os alimentos Myky se volta para os processos internos da aldeia e o fortalecimento dos saberes tradicionais. A partir de conversas em torno da autonomia alimentar, das colheitas na roça e das reflexões sobre os alimentos tradicionais, adentramos um mundo feminino que se apresenta não só por meio das mulheres e suas atividades, mas pela relação com a terra provedora – que tudo dá e permite, que provê toda existência e saúde. Cultivar alimentos tradicionais é fortalecer a ligação com a própria ancestralidade e com os seus modos de vida. São esses alimentos – plantados e cultivados das formas mais antigas – que permitem a saúde e a longevidade das pessoas, ao passo que os alimentos dos Kéwa (não indígenas) são fonte de doença e contaminação. Não só o plantio e a colheita são atividades coletivas, mas a alimentação é sempre compartilhada. Na vida comunitária, todo mundo sempre tem um pouquinho: “aqui ninguém come sozinho”, afirma uma mulher Myky. A caça é ritualizada e dividida coletivamente, pois não se mata um animal apenas para saciar a fome, mas para promover saúde coletiva por meio da espiritualidade e do compartilhamento. A roça, portanto, vai muito além do cultivo de alimentos: ela guarda sistemas de ciências ancestrais que promovem a saúde física e espiritual da comunidade.
Essa relação intrínseca entre a alimentação tradicional e a saúde integral também é evidente em Mitã karaí, realizado pelo coletivo ASCURI de Cinema Guarani e Kaiowá. Pelo filme, chegamos bem perto dos rezadores – aqueles que orientam a comunidade pelos cantos ancestrais e ajudam a promover a saúde. Assim como em Mopái Pjuta Ãkakje'y – a roça e os alimentos Myky, para os Kaiowa e Guarani, os alimentos tradicionais são imprescindíveis para a saúde física e espiritual da comunidade. A natureza fornece todo o alimento e o remédio necessários; o milho sagrado compõe o altar da casa de reza, e os cantos são acompanhados da alimentação tradicional. O filme nos permite adentrar certa intimidade da vida espiritual, aprender com os sábios e compreender que as rezas e as músicas orientam as pessoas para o bem viver e para a ligação com os saberes e modos de vida ancestrais.
Ainda sobrevoando o céu do Centro-Oeste, o filme Um Olhar Inquieto: O cinema de Jorge Bodanzky convida a revisitar o arquivo do cineasta que passou grande parte de sua vida filmando na Amazônia e no Cerrado brasileiros. Jorge Bodanzky propõe, com este filme, rever seus próprios materiais brutos, refletir sobre essas experiências e ainda devolver parte dessas imagens aos sujeitos filmados. O filme autobiográfico do cineasta retorna aos Cinta Larga para exibir imagens feitas há mais de 50 anos, na época dos primeiros contatos com os brancos. Esse gesto de devolução das imagens gera comoção entre os mais velhos e ainda revela a tristeza pela dizimação dos indígenas ocorrida após o contato. Um Olhar Inquieto: O cinema de Jorge Bodanzky se apresenta, ao mesmo tempo, como um meio de elaboração e reflexão em torno de uma vida dedicada ao cinema, mas também como uma oportunidade de encontros e reencontros com as pessoas e as imagens. O filme transita entre a força da vida de um cineasta e seus trabalhos pioneiros ao longo das últimas décadas, o adormecimento dos materiais brutos esquecidos, a morte de pessoas que o acompanharam e estão nas imagens, além de experiências e tecnologias que desapareceram ao longo dos anos.
Maira Porongyta – o aviso do céu cria um procedimento de filmagem simples e eficaz para que o recado do deus Itaarió seja ouvido com atenção. O mais poderoso entre os Mait, deuses do povo Kaiabi, reúne seus auxiliares para lhes avisar sobre as emergências climáticas que estão por vir. Itaarió está furioso com os seres humanos e não poupará esforços para lhes devolver aquilo que merecem: aumentará a temperatura da Terra e a tornará tão quente que será insuportável aos humanos viver. Não cairá mais chuva para refrescar a terra, e tudo se tornará árido. Diante dos iminentes colapsos ambientais que ameaçam toda a humanidade, é dos povos da floresta que virão os ensinamentos de como escapar. Maira Porongyta – o aviso do céu é uma grande oportunidade de escuta.
É ainda sobre a forma como nós, humanos, lidamos com o meio ambiente que versa o filme Guapi-Macacu. A lógica de pensamento extrativista, que trata a natureza como uma fonte de recursos a serem infinitamente utilizados e facilmente manipulados, leva à artificialização dos rios e dos cursos naturais de água. A junção forçada dos rios Guapimirim e Macacu cria o Guapi-macacu, que não é reconhecido nem mesmo por aqueles que sempre navegaram por aquelas águas. Ribeirinhos e quilombolas nativos da Baía de Guanabara nos mostram suas formas tradicionais de relação com a natureza, seus modos de vida nas águas doces e salgadas da região e a riqueza que elas oferecem. Em Guapi-Macacu, o filme, conhecemos um outro lado da Baía de Guanabara e da Baixada Fluminense, em que tudo é regido pelas águas.
Na sessão que conjuga o curta O mapa em que estão meus pés e o longa Vasta natureza de minha mãe, transborda o olhar afetuoso sobre aquilo que se ama e o pensamento sobre como esse amor guia o olhar.
No curta alagoano, percebe-se uma consonância com obras do cinema brasileiro que, nos últimos quinze anos, têm entoado a vida de pessoas anônimas numa espécie de epopeia do cotidiano. Sebastião é tanto um ser imaginado quanto um avô que poderia ser meu ou seu. Não se trata de um documentário; todavia, as experiências vividas pelo personagem são tão verdadeiras quanto os relatos ficcionais do geólogo de Viajo porque preciso, volto porque te amo. A direção de Luciano Pedro Jr. mergulha o filme em tons oníricos, construindo um personagem que, tal como na canção eternizada por Fagner, tem um coração “dividido entre esperança e razão”.
No longa goiano, também está presente um olhar intergeracional. Porém, embaralha-se a separação entre aquele que olha e aquela que é olhada. O que poderia ser um filme de um filho sobre uma mãe constrói-se como um exercício contínuo de feitura compartilhada e de negociação da imagem, no qual a operação “eu te vejo × você se mostra = filme” toma caminhos mais especulativos. A ternura e a curiosidade ditam o tom da direção compartilhada de Aristótelis e Inez, filho e mãe.