A família de Elizabeth Teixeira: a história reaberta

Com o lançamento de Cabra marcado para morrer em DVD (IMS, 2014), as relações de Eduardo Coutinho com moradores do Engenho Galiléia e com Elizabeth Teixeira (e alguns de seus filhos) foram retomadas com o cinema. Os extras A família de Elizabeth Teixeira e Sobreviventes da Galileia registram uma série de reencontros e de novos encontros, atualizando o projeto de Cabra e permitindo estender o arco do filme-processo de Coutinho até a atualidade. De 1964 a 2013, são quase 50 anos de história inscritos no filme e nas duas sequências que ele motivou. Coisa muito rara e preciosa, o cinema como abrigo de múltiplas experiências e memórias, interceptadas, emaranhadas, por vezes espelhadas, numa rede bastante densa de relações: a memória de João Pedro Teixeira, a memória das ligas camponesas, a trajetória de uma família, o percurso de um cineasta, a história contemporânea do país.

Proponho comentar aqui A família de Elizabeth Teixeira, série de reencontros de Coutinho com familiares da protagonista de Cabra marcado para morrer, no Rio de Janeiro e na Paraíba, em 2013. Não pretendo, é claro, atribuir a este pequeno filme o status do próprio Cabra, nem de outros longas contemporâneos de Coutinho (assumidos pelo diretor como obras autônomas). Trata-se sim de uma sequência, de uma retomada, quase como um segmento que se poderia somar ao filme de 1984, com a legenda "30 anos depois". Feita essa ressalva, proponho um pequeno exercício: identificar características que o extra partilha com o cinema recente do diretor (situando-o em seu percurso), mas também sublinhar traços que nele parecem impressos pela própria História – assumo que, ao se vincular ao Cabra, lançado há 30 anos, A família de Elizabeth Teixeira reabre a história e nos permite sondar aquele "futuro" (hoje presente) que voltava a ser possível (para Elizabeth, para Coutinho, para o país), no limiar da redemocratização. Em seu texto sobre o filme, antológico, Roberto Schwarz escrevia: "Metaforicamente, a heroína enfim reconhecida e o filme enfim realizado restabelecem a continuidade com o movimento popular anterior a 1964, e desmentem a eternidade da ditadura, que não será o capítulo final" (2013, p. 460). A pergunta que me instiga, então, seria: que "capítulo" os reencontros de 2013 nos permitem vislumbrar?¹

A meu ver, Cabra é exemplar de uma espécie rara no cinema, a do filme-processo. Refiro-me a trabalhos nos quais as formas fílmicas são “indissociáveis de seus processos de realização”, como escreveram Clarisse Alvarenga e Bernard Belisário (2014). Através de formas muito singulares, porque engendradas caso a caso, as escrituras desses filmes acolhem e ao mesmo tempo se fendem, se modificam, fortemente marcadas pelos processos vividos. Não é apenas transformar o vivido em narrativa, "contar a própria aventura", como diria Coutinho (através das vozes narradoras, da montagem etc.), mas estar irremediavelmente "marcado pela história": a própria cena – com suas características, que cifram forças, possibilidades, mas também constrangimentos, dificuldades, limites, em cada circunstância – testemunha, marcada que está, pelas fricções do cinema com a vida.²

São filmes cuja feitura, em resumo, se desdobra no tempo, por circunstâncias várias, resultantes de sua interseção com o vivido, e cuja escritura acolhe – e se modifica por – esses percalços históricos. Em seu texto "A existência da Itália" (1995), Frederic Jameson, referindo-se precisamente a Cabra marcado para morrer, dizia que filmes como o de Coutinho estão marcados por um senso de historicidade caracterizado “pela intervenção ativa do processo de produção do filme no seu objeto, que ele modifica historicamente”. Destaquemos então mais essa característica radical dos ditos filmes processuais: o cinema não é apenas tangido e modificado pela experiência histórica, mas intervém e altera, participando da mudança.

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A família de Elizabeth Teixeira se vincula a Cabra através de uma de suas sequências finais, quando Coutinho busca pelos filhos de Elizabeth espalhados pelo Brasil. Com a maioria deles, a protagonista não tinha contato desde 1964, já que foi obrigada a fugir e se exilar no interior do Rio Grande do Norte, mudando de nome para não ser "exterminada".³ Na fuga, Elizabeth levou apenas Carlos, um de seus 11 filhos. Nessa sequência de Cabra Marcado para morrer, têm grande importância duas fotografias de Elizabeth com nove de seus filhos; elas foram feitas por um fotógrafo do Jornal do Brasil em 1962, poucos dias após o assassinato de João Pedro Teixeira. Enquanto a projeção dos fragmentos do copião do filme inacabado no Engenho Galiléia tem papel fundamental na instauração de uma memória elaborada pelos camponeses⁴, essas duas fotografias da viúva e de seus filhos funcionam em Cabra de maneira diferente: elas são mobilizadas na montagem como um dispositivo que conecta de modo intempestivo o passado da família, em um momento anterior à dispersão, mas já marcado pelo assassinato do pai, ao presente da filmagem, começo dos anos 1980, Elizabeth Teixeira separada de seus filhos (exceto Carlos) havia 17 anos. A cada vez que Coutinho encontra um dos filhos em 1981-82, a montagem justapõe, ampliada, a imagem deste filho na fotografia antiga, condensando assim, num átimo, a ruptura, a separação, o hiato, o tempo decorrido. Enquanto as rememorações de Elizabeth e dos camponeses de Galiléia evocam, sem os repor, os 17 anos passados entre 1964 e o reencontro, aqui o filme só faz constatar o hiato, já que a maioria dos filhos encontrados por Coutinho pouco se lembra. Pequenos no momento da separação, muitos não guardam memória de João Pedro, de Elizabeth ou da família reunida. É o filme, em sua montagem, que vai trabalhar essa (des)conexão. Novamente Schwarz:

A visita aos filhos de Elizabeth forma o lado avesso do filme e a sua verdade histórica. No primeiro plano está a mulher extraordinária, que apesar de tudo tem a felicidade de reatar as duas pontas da vida, e está também o cineasta, que alcança completar o seu projeto. Isto é o que o filme conta, o seu elemento de interesse narrativo. A visita aos filhos é o que o filme mostra, o seu elemento de constatação, contrabalançando o fim esperançoso do primeiro plano. Estão jogados e esperdiçados pelo Brasil, sem saberem uns dos outros, sem trabalho que preste, dando a medida do desmembramento e do retrocesso humano que a evolução do capitalismo significou para os trabalhadores da região. (...) O quadro é tão mais amargo quanto as fotografias antigas mostram uma família evidentemente fora do comum, pela figura inteligente, briosa e bonita de todos sem exceção, o que impressiona. São frações da vida popular consistente que se criou no Nordeste e que a evolução geral do país não se cansa de pulverizar. (2013, p. 463)

Valendo-se do mesmo par de fotografias, A família de Elizabeth Teixeira retoma esta sequência do Cabra, para sondar os 30 anos passados desde o lançamento do filme. O extra está composto de reencontros de Coutinho com a própria Elizabeth e com alguns de seus filhos, além de encontros com três de seus netos, em 2013. Além de retomar a trajetória de cada filho e de tematizar sua relação no tempo com a mãe Elizabeth, também aparecem nas conversas elementos que enriquecem o retrato de João Pedro Teixeira, cuja história de vida fornecia motivação ao projeto original e garante um dos eixos do filme de 1984. Além da imagem na fotografia de 1962, cada filho "reencontrado" aparece também nas imagens cinematográficas feitas em 1981 ou 82 pela equipe de Coutinho.

Mesmo com a constatação do estilhaçamento (da família, do movimento camponês organizado), o final de Cabra Marcado para morrer é esperançoso, como escreveu Schwarz, já que se buscava – em várias frentes – reatar fios rompidos, estabelecer pontes ("para que o antes não fique sem futuro e o agora não fique sem passado", como escreveu Bernardet), "salvando" a história dos vencidos e reconectando o presente do país (em vias de redemocratização) ao movimento popular pré-64. Poderíamos nos perguntar, como sugeri no início, se os reencontros presentes n’A família de Elizabeth Teixeira, 30 anos passados, confirmam a realização daquelas esperanças.

No que respeita à família, a despeito dos reencontros de Elizabeth com os filhos Maria José, Nevinha, Isaac, algo naquela cisão parece hoje irreparável. Depois do lançamento de Cabra, em 1984, Elizabeth não reviu Marta e Marinês, as filhas que moram no Rio, por exemplo. É Coutinho quem vai encontrá-las em Ramos (juntamente com seus filhos Marcos André e Marcela), para então levar notícias das duas até a Paraíba, efetuando um movimento na direção contrária ao que fizera em 1981/82 (quando leva imagens e notícias de Elizabeth aos filhos que viviam no Sudeste). É novamente o cinema que promove a reunião da "família", portanto, virtualidade que só se realiza no próprio filme.

Mesmo assim, Coutinho reencontra as personagens fortes, densas, complexas. Nessas conversas, particularmente naquelas com Marta e Marinês, encontramos algo do que notabilizou o cinema de Eduardo Coutinho (desde Santo Forte, pelo menos), mesmo que aqui não se trate de "encontros" (como Coutinho os concebia, inclusive metodologicamente), mas de "reencontros". Com talento, graça, desenvoltura, desassombro, as entrevistadas contam episódios de suas vidas, estimuladas pelo diretor.

Nessas conversações, vemos atualizadas características que Coutinho buscou tenazmente registrar no encontro com brasileiros “comuns”, nas últimas décadas: que eles "surpreendessem", que não se prendessem a clichês relativos a sua classe, grupo social ou lugar de moradia; que a entrevista fornecesse essa espécie de palco provisório, nalguma medida à parte o cotidiano, em que os entrevistados pudessem atuar desamarrados das interações e opressões cotidianas, das hierarquias e dos lugares estabelecidos, vivendo na interação com o cineasta uma abertura que lhes permitiria alcançar, na construção de si, "uma dimensão estética", como Ismail Xavier (2010, p. 78) notou acerca de Edifício Master.

No reencontro com Marinês, por exemplo, é flagrante o interesse de Coutinho por episódios pouco óbvios de sua biografia, como as peças de teatro em que atuou Othon Bastos, ex-patrão, que ela frequentava, ou a reação desassombrada e aberta de Marinês quando, segundo sua narrativa, ela descobriu que uma de suas filhas era casada com outra menina. Coutinho também se interessa pelo amor que ela declara a seu trabalho como empregada doméstica, assumido sem travo, vitimização ou lamentação (afirmação que faz lembrar Dona Thereza, a cozinheira de Santo Forte). Em resumo, o retrato complexo, multifacetado, aberto de si que a entrevistada compõe na interação com o cineasta remete a outros personagens da galeria notável de mulheres legada pelo cinema de Coutinho⁵. A diferença é que aqui se trata de reencontros, o que marca algumas das particularidades desse extra. Coutinho as conhece de antemão, há afetos e informações compartilhados. À diferença das relações travadas em cena noutros filmes (com as mulheres de Jogo de Cena, por exemplo), Coutinho chega mesmo a se “intrometer” nas histórias de Marta e Elizabeth, sugerindo-lhes outros encaminhamentos⁶.

As conversas do extra também reabrem as "biografias" de personagens retratados em Cabra, como João Pedro Teixeira e, de modo secundário, Manoel Justino, pai de Elizabeth. Eles aparecem sob novos olhares, enfoques, relações, a partir das rememorações de seus filhos e netos. Vem à tona, por exemplo, a faceta tolerante e amorosa de João Pedro Teixeira como "pai", inaparente em Cabra marcado. Já Manoel Justino, pai de Elizabeth Teixeira, sogro e inimigo de João Pedro que se recusou à filmagem em 1981, reaparece extremamente rico e contraditório nas memórias de seus netos em 2013, de Marinês em especial: o mesmo avô que solta sua neta em um campo de algodão (a "coisa mais linda" que ela diz ter visto na vida) é aquele que a expulsa de casa aos 10 para 11 anos de idade, porque teria sido – nos termos dele – “difamada”. É ainda o mesmo avô que – pelas informações das netas – teria participado no planejamento do assassinato de seu genro, ocorrido em suas terras, em 1962.

As entrevistas com os homens (Isaac, Carlos) são menos vivas, mas trazem também informações que nos atualizam sobre as vivências dos membros da família nas últimas décadas. Ficamos sabendo do trágico fim de José Eudes, morto pelo irmão Peta (aquele que, embora guarde o nome do pai, João Pedro Teixeira Filho, foi criado pelo avô e pelo tio desde pequeno, e acabou identificado com eles). Se há mais essa corrosão no tecido familiar, em 1984 já tão esburacado, temos, por outro lado, a bela reafirmação da luta por Elizabeth, que não decepciona, assim como não decepcionava em 1984. O trecho é comovente. Coutinho pede que Elizabeth leia um texto que ele trouxe impresso, transcrição do discurso final da personagem em Cabra marcado para morrer. A cena, em Cabra, é conhecida: de improviso, ao se despedir da equipe de cinema que parte de São Rafael (RN), a protagonista se reconecta com a militante combativa do pré-64. “Elizabeth diz: ‘A luta continua’. Essa frase cria uma continuidade entre o antes-golpe e o agora, e projeta o filme para o futuro” (BERNARDET, 2013, p. 467). Ao transformar a fala de improviso em texto, apresentando-o para sua “atriz” trinta anos depois, Coutinho faz do próprio Cabra um “arquivo” e provoca novamente, com a mediação do cinema, o reencontro e a “reconexão” de Elizabeth com seu passado, agora disposto em camadas. “Me lembro, como poderia esquecer?”, ela diz, após a leitura feita com dificuldade. “Você ainda acredita nisso?”, indaga Coutinho. “Acredito. (...) Quantos anos do assassinato de João Pedro? E a reforma agrária ainda não foi implantada em nosso país!”  

A frase de Elizabeth ecoa no encontro de Coutinho com sua neta Juliana Elizabeth Teixeira, que encerra o extra. Emocionam as maneiras como a nova geração, os filhos dos filhos, busca se identificar com as figuras combativas do avô e da avó, em uma construção de si que tem em conta essas referências. O que faz pensar que, apesar de toda a corrosão, da perda de laços, das separações e mortes trágicas na família, alguma coisa da experiência de luta de João Pedro foi transmitida. Antes de conhecermos Juliana, vimos Marcela, filha de Marinês, em Ramos, afirmar firme, a respeito do avô: “eu tenho uma noção de quem ele foi!”. Juliana Elizabeth, que carrega o nome da avó, aparecia bebê em Cabra marcado para morrer, no colo de sua mãe Nevinha. Hoje historiadora, ela conta ter se interessado pela história das ligas camponesas, tema de sua monografia, a partir do momento em que, já na faculdade, assistiu Cabra marcado para morrer (o próprio filme assumindo centralidade na transmissão da história). Com ela, que se dedica ao ensino de história no interior da Paraíba, Coutinho visita o pequeno memorial dedicado às ligas e a João Pedro Teixeira, sediado na mesma casa onde a família viveu, em Sapé, no pré-64. Anualmente, Juliana organiza uma caminhada do local onde o avô foi assassinado até o memorial (caminhada de que, pelo que entendemos, Elizabeth participa, como fazia no passado, nas passeatas em protesto pela morte de seu marido dentro das terras de seu pai).

Mesmo que de maneira individual e circunscrita, comovem essas afirmações da luta e de sua memória, em meio aos ecos que ainda se fazem ouvir da tragédia que se abateu sobre a família – desde o assassinato do pai, passando pelo atentado contra Paulo Pedro, o suicídio de Marluce (a filha mais velha, aos 18 anos de idade), o golpe militar e a repressão, a fuga e o exílio de Elizabeth Teixeira, a separação de toda a família, cada filho criado em uma casa, até o terrível episódio, mais recente, do assassinato de José Eudes por Peta. Essa morte atualiza disputas internas que remontam à dificuldade de Manoel Justino, pequeno proprietário de terras, de aceitar seu genro João Pedro – negro, pobre, e além de tudo, militante político, camponês que não internaliza a "lei do patrão", como escreveu Regina Novaes (1996), fundador da Liga Camponesa de Sapé, a maior do Nordeste. É Peta, que traz o nome do pai, quem vai se indispor contra o irmão, José Eudes, que, assentado na terra herdada pela mãe, vai estimular uma nova associação dos camponeses do lugar. Talvez porque, 30 anos depois do lançamento de Cabra, 50 anos depois do golpe, os conflitos e embates no campo prossigam, o direito a terra continue sendo negado pelos grandes proprietários aos trabalhadores e tradicionais ocupantes, e, para finalizar com a formulação de Elizabeth, a reforma agrária ainda não tenha sido “implantada em nosso país”. 

Aqui tem um conflito de terras. Tem um pessoal assentado à margem do rio. E até hoje ainda não foi resolvido essa questão da terra, eles continuam acampados. Inclusive como a área do memorial foi desapropriada pelo governo do estado, e como no inverno as casas dos assentados a cheia do rio leva, elas disseram que, se no próximo inverno não tiver resolvido o problema da terra, eles vão ficar acampados na área do memorial”. No relato de Juliana Elizabeth a Coutinho, enquanto se aproximam de carro do Memorial das Ligas Camponesas, expõe-se o paradoxo: João Pedro Teixeira e as ligas se tornaram motivo de um memorial, mas a rememoração das lutas passadas, reconhecidas institucionalmente e assim, nalguma medida, apaziguadas, se dá em um presente conflituoso, em que o problema do acesso a terra permanece (como emblematiza a situação vivida no terreno onde se situa o próprio memorial)⁷.

Currículo

Cláudia Mesquita

Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG, onde integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. Pesquisadora do cinema brasileiro, com mestrado e doutorado na ECA/USP. Publicou, com Consuelo Lins, o livro Filmar o real – sobre o documentário brasileiro contemporâneo (Editora Jorge Zahar, 2008), e organizou, com Maria Campaña Ramia, El otro cine de Eduardo Coutinho (Cinememoria, 2012), publicado no Equador. Em 2018-2019, desenvolveu, na UFC, a pesquisa de pós-doutorado "O presente como história – estéticas da elaboração no cinema brasileiro contemporâneo".

Como citar este artigo

MESQUITA, Cláudia. A família de Elizabeth Teixeira: a história reaberta. In: forumdoc.bh.2014: 18º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2014. p. 215-225 (Impresso); p. 217-227 (On-line).

Notas

[1] Agradeço a Amaranta Cesar e ao Cachoeira DOC pela oportunidade de iniciar esta discussão na apresentação "A história no filme, o filme na história", que se seguiu à exibição do extra em Cachoeira. Dentre os presentes, um agradecimento muito especial vai para Milene Migliano, pela leitura desse texto e pela apresentação de várias sugestões importantes sobre os signos temporais e espaciais contidos nos dois filmes (que, esperamos, ela irá desenvolver em um artigo em breve). Agradecida também a Amaranta, Júnia Torres, Ernesto Carvalho e Vincent Carelli pelas instigantes colocações. Tive ainda a oportunidade de vincular o extra à trajetória de Cabra em uma aula da disciplina Formas e processos da Imagem, no PPGCOM-UFMG, em 2014/2.

[2] Estas formulações são fortemente debitárias da leitura de trabalhos de André Brasil e Clarisse Alvarenga, e das discussões com eles, em diferentes momentos. Agradeço aos dois pela parceria e generosidade. Remeto também ao debate "Mostra Cinema Brasileiro anos 2000, 10 questões. Obra em processo ou processo como obra?" (com Claudia Mesquita e Cezar Migliorin. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2011), em que buscamos nos aproximar dessas questões.

[3] Como foram outros de seus companheiros de militância camponesa no imediato pós-golpe. Sabemos hoje que a repressão que se seguiu ao golpe visou prioritariamente desbaratar os movimentos de trabalhadores organizados no campo e na cidade.

[4] Entre outros testemunhos contundentes, ouvimos José Daniel contar a dignidade de sua resistência ao cerco dos golpistas, seu filho João José elaborar a resistência pela invenção da memória (associando a história do filme interrompido ao livro Kaputt, de Curzio Malaparte, esquecido por alguém da equipe e conservado por ele em uma mala), e João Virgínio narrar a experiência da tortura e expressar sua revolta pelo sofrimento que o estado impôs a si e a sua família.

[5] Sabemos que nessa "galeria" se destacam mulheres que passaram por toda sorte de adversidade, experiências de perda, travessia e superação, sem sucumbir nem mergulhar no pântano do ressentimento. Mesmo com histórias "esburacadas" e com a perda de laços, transmitiram algo para seus filhos. Nas narrativas de Marta e Marinês reencontramos essas histórias de vida difíceis, muito vulneráveis à violência urbana, como ouvimos nos relatos de tantos personagens pobres de filmes de Coutinho feitos no Rio, desde Santa Marta.

[6] "A senhora tem que fazer as pazes com a Marta!", afirma do antecampo para Elizabeth, quando a reencontra na Paraíba. Antes, no Rio, dissera para Marta: "Então você não tem que ter raiva da Dona Elizabeth!" (quando ela lhe conta que foi João Pedro quem quis que Marta, criança, voltasse a morar com a família – já que fora "dada" para a avó criar quando ainda era bebê).

[7] Isso nos faz lembrar o ímpeto patrimonialista e memorialista que particularizariam o “presentismo”, segundo Hartog (2013). Ordem do tempo caracterizada pela “estagnação de um presente perpétuo”, ele apresentaria como sintoma movimentos de “retorno” ao passado, tangidos pela imposição de um “dever de memória”. Conversar a memória das ligas e de João Pedro, nesse contexto, não parece confrontar ou desestabilizar uma situação sócio-política de permanência da concentração fundiária e das desigualdades. Agradecida a Rafael Boeing pelas indicações de leitura.

Referências

ALVARENGA, Clarisse; BELISÁRIO, Bernard. O cinema-processo de Vincent Carelli em Corumbiara. (mimeo).

BERNARDET, Jean-Claude. Vitória sobre a lata de lixo da história. In: OHATA, Milton (Org.). Eduardo Coutinho. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

HARTOG, François. Regimes de historicidade – presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.  

JAMESON, Frederic. A existência da Itália. In: As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995.

NOVAES, Regina. Violência imaginada: João Pedro Teixeira, o camponês, no filme de Eduardo Coutinho. Cadernos de Antropologia e imagem, v.2, n.3, 1996.

SCHWARZ, Roberto. O fio da meada. In: Milton Ohata (Org.). Eduardo Coutinho. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

XAVIER, Ismail. Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna. In: MIGLIORIN, Cezar (Org.). Ensaios no real – O documentário brasileiro hoje. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2010.