Gesto primeiro de aproximação e abordagem, a devolução das imagens às comunidades filmadas – seja na forma do material bruto nas projeções coletivas nas aldeias, seja organizada em narrativas fílmicas – não só funda como sustenta e elabora toda a produção audiovisual do Vídeo nas Aldeias (VNA), nas suas quatro décadas de atuação junto aos povos indígenas no Brasil. Para a realização da série ARQUIVO ABERTO, partimos das experiências dos cinco primeiros povos com os quais o cineasta e indigenista Vincent Carelli trabalhou – Nambikwara Mamaindê (MT), Gavião Parkatêjê (PA), Enawenê-Nawê (MT), Isolados de Corumbiara (RO) e Xikrin do Cateté (PA) – em colaboração com outros amigos, indigenistas, cineastas e parceiros.
Durante a construção da série, ainda no arquivo do VNA – no manejo inicial das imagens, na digitalização das fitas, na organização das linhas do tempo para a visionagem –, algumas questões nos inquietaram e movimentaram. Como organizar e pensar o retorno desse material para as comunidades filmadas? Quais camadas de sentido se sobrepõem, atravessam e transformam essas imagens no tempo? Como lidar técnica e afetivamente com esses arquivos – sua diversidade de formatos e suportes, os contextos de filmagem e de devolução, as imagens dos antigos, dos mortos e dos vivos, a transformação das paisagens e modos de vida frente à pressão do agronegócio, da mineração e do capital? Que memórias e histórias essas imagens guardam e gestam, quais passados, presentes e futuros fundam, retomam e (re)constroem?
Se essas questões eram guias, foi somente em campo, no tête-à-tête com as imagens e as pessoas nas comunidades – as projeções coletivas, os encontros miúdos nas casas, nossas conversas no fim do dia –, que esses mundos guardados se revelaram e se apresentaram como matéria viva que são – arquivos vivos retomados, rememorados, reelaborados à luz do presente. Não foi sem espanto e emoção que vimos crianças, jovens e velhos se reunirem nas noites de projeção e rirem, se surpreenderem, se assustarem, identificarem um rosto familiar, ou a si mesmos, relembrarem um canto, um encontro, chorarem seus mortos, se entristecerem e celebrarem a vida em suas comunidades.
Na escrita deste breve texto, buscamos trazer pequenos vislumbres da beleza e da surpresa com os quais nos deparamos na feitura de cada um dos cinco episódios que compõem a série. Impressões tão vivas, intermitentes e provisórias quanto os arquivos e as narrativas que a estruturam. A cada nova visionagem, a cada novo acontecimento no presente, a leitura do material se renova, ganha novas camadas e contornos.
No capítulo que abre a série, Francisca, filha do Capitão Pedro, diz: “Você filmou e trouxe o vídeo. Mas não é só o vídeo, é o espírito do meu pai e das pessoas que já faleceram”. No sonho de Francisca, que é também um canto, o Capitão Pedro chega dentro de nossos bolsos, nos pendrives que levamos, e se junta aos seus na aldeia, com alegria. Os arquivos projetados não só mostram a festa da moça, a celebração da retomada da terra, o canto ritual, mas também o próprio espírito e imagem do Capitão Pedro, que muitos jovens e crianças só conheciam pelas histórias dos mais velhos. O retorno dos arquivos históricos dos Nambikwara Mamaindê à comunidade filmada 40 anos antes confere ao Capitão Pedro um rosto, um corpo, uma voz e uma vida diante das novas gerações. É nesse encontro com as imagens do passado no presente que a retomada das terras Nambikwara se amplia e se renova, revelando a grandeza e a resistência da luta do Capitão, toda a orquestração das celebrações e a maestria na estratégia que culmina na retomada da furação de beiço dos mais jovens – história que, por não termos as traduções na época, se manteve desconhecida por nós durante todos esses anos. Ter acesso hoje a essas traduções nos fez desejar remontar A Festa da Moça (1987), filme que marca a origem do Vídeo nas Aldeias – a partir da perspectiva e do pensamento do Capitão Pedro. Montar os arquivos em VHS e devolvê-los aos Nambikwara como uma narrativa fílmica guiada pela sua liderança histórica.
É esse o gesto que conforma o segundo capítulo da série. Ao contrário dos outros episódios, que se fundam na devolução do material bruto – de longos registros contínuos filmados nas comunidades retratadas –, o capítulo dedicado aos Gavião Parkatêjê apresenta a devolução do filme Adeus, Capitão (2022, dir. Vincent Carelli e Tita) após a morte do Capitão Krohokrenhum, líder dos Gavião. Uma narrativa estruturada da complexa história e dos arquivos de imagens dos Gavião, que apresentam a luta do Capitão pela autonomia, resistência e reconstrução da memória de seu povo. Para Krohokrenhum, as imagens tinham essa função – a de criar memória para as futuras gerações. O que, para nós, estava em jogo era a repercussão do filme na comunidade e, sobretudo, entre os jovens, filhos e netos dos velhos guerreiros Gavião – alguns deles parte do grupo dos comunicadores indígenas que fazem circular essas imagens nas redes internas dos celulares da grande comunidade Gavião, que fazem tocar os arquivos dos cantos na boca de ferro no pátio central da aldeia e que dançam e cantam juntos os cantos dos mais velhos que buscam aprender e manter vivos.
No capítulo Enawenê-Nawê, nos impressionamos com a velocidade das mudanças e do esquecimento. Em meio à plateia imensa, explosiva – em alegria e assombro –, poucos eram os que se lembravam das canoas de madeira, do estojo peniano, dos cantos rituais que estão se perdendo com a morte dos mais velhos. O estranhamento dos jovens diante de um passado recente. A tecnologia que adentra a comunidade – com suas pobres e tristes narrativas – e faz os mais novos debocharem das histórias de criação do mundo é a mesma que se torna ferramenta de retomada e relembrança dos cantos do Yaõkwá, reinventado a cada ano na relação dos Enawenê-Nawê com o mundo ao redor e com os espíritos que guiam o ritual.
E então, voltamos à cena do contato com os Kanoê em Corumbiara – uma, duas, três vezes. Ouvir a história do primeiro contato, contada a partir da perspectiva de Purá – o riso diante da lembrança do medo que sentiu, as impressões sobre a cena, tudo aquilo que não está presente no longa, mas estava lá, na cena do encontro. Txyramantu e sua atenção e presença pungentes e silenciosas, sob o olhar do filho que, a todo instante, busca suas reações diante das imagens mostradas. A mistura da dor da história e da vida viva no presente, no olhar de espanto das mulheres Akuntsu – Pugapia, Aiga e Babawro – diante das imagens dos sobreviventes da caçada e do massacre de seu povo pelos fazendeiros da região. As imagens depois do fim são imagens da vida do que resta após a tentativa de extermínio sumário de um povo. A vida possível, reinventada dentro da reserva construída e cuidada com diligência pelo indigenista Altair Algayer, entre os bichos, as caçadas de porcão, as pescarias, as tardes fazendo flechas.
Quando filmamos na reserva, Carolina Aragon – linguista que aprendeu a língua Akuntsu e, num trabalho dedicado, debruçou-se sobre a tradução das narrativas do massacre – nos contou que as mulheres Akuntsu afirmavam seu desejo de não ter filhos. Sua escolha e testemunhos nos colocavam diante, a um só tempo, do extermínio e da reinvenção da vida, da história e do fim da história, da existência e da recusa de continuidade. Recentemente, no entanto, tivemos a feliz notícia de que Babawro está grávida. Junto ao netinho de Txyramantu Kanoê, essas crianças atestam a continuidade da vida e desses mundos – tão frágeis quanto potentes.
Por fim, as filmagens do capítulo Xikrin, que coincidiram com a realização do longa Djunuá, ainda inédito. Junto à devolução dos arquivos, era também do retorno de Vincent ao povo que o acolheu ainda na juventude que se tratava essas filmagens. Nesse episódio, retornam os espíritos dos antigos nas imagens projetadas, e retorna Vincent – filho adotivo do velho líder Akruanture, amigo dos meninos da aldeia, filmador dos grandes rituais e festas na comunidade – para, segundo os Xikrin, morrer com eles no lugar onde viveu.
As imagens, para os Xikrin, são também espírito; não devem ser projetadas em coletividade, pela tristeza que trazem ao se depararem com os parentes que já partiram. Foi nas cozinhas e varandas de suas casas onde assistimos com eles às imagens dos antigos, onde o choro ritual presentificou a ausência, a saudade e a alegria dos reencontros, onde ouvimos as histórias relembradas, rimos e nos emocionamos juntos – os Xikrin, Vincent e a equipe de filmagem.
ARQUIVO ABERTO toma as imagens como matéria viva, fragmentada e provisória. A série é como uma espiral do tempo, da memória descontínua, a abertura e o retorno das imagens-espírito. Arquivos atravessados pelo encontro entre tempos distintos, entre os vivos e os mortos, entre os homens e os espíritos em paisagens transformadas pelo tempo, pelas lutas, desafios e resistências travadas nos territórios. Imagens de tempos antigos retomados e atualizados na fricção com as novas gerações no presente, que atestam (a despeito também das próprias imagens) a história, a vitalidade e a existência desses povos e de seus mundos.
Currículo
Vincent Carelli
Cineasta e indigenista, Vincent Carelli fundou, em 1986, o Vídeo nas Aldeias. Desde então, coordenou a formação de gerações de cineastas indígenas e produziu dezenas de documentários, destacando-se a Trilogia do Martírio – Corumbiara (2009), Martírio (2016) e Adeus, Capitão (2022) – e a série Arquivo Aberto (2025). Recebeu o Prêmio Unesco pelo Respeito à Diversidade Cultural e pela Busca de Relações de Paz Interétnicas e o Prince Claus Award, por sua atuação junto aos povos indígenas no Brasil. Coordena os projetos de preservação e devolução do acervo audiovisual do Vídeo nas Aldeias, que abriga cerca de 8 mil horas de imagens produzidas junto a mais de 50 povos indígenas no Brasil.
Ana Carvalho
é cineasta, artista e técnica em agroecologia. Há mais de 20 anos, trabalha junto a povos indígenas e comunidades tradicionais no Brasil, na coordenação de projetos de formação e criação compartilhada nos campos do cinema, das artes visuais e da agroecologia. Desde 2007, integra o Vídeo nas Aldeias, atuando nas oficinas de audiovisual, elaboração e gestão de projetos, organização de publicações e na realização de filmes. É idealizadora e codiretora da série Arquivo Aberto (2025) e codirigiu, com Vincent Carelli e Tita, a videoinstalação O Brasil dos Índios: um arquivo aberto (2016). É cofundadora da produtora O Praialta, com Tita, com quem desenvolve atualmente o longa documental Os Donos da Roça, em parceria com Sara Brites e Sérgio Gwiri, sobre a cosmologia dos roçados Guarani Kaiowá.