As conversas que tivemos com (e sobre) Jean-Claude Bernardet

Cláudia Mesquita: Jean-Claude Bernardet foi um grande amigo, colaborador e entusiasta do forumdoc.bh. Tivemos o prazer e a honra de tê-lo muitas vezes conosco e, durante alguns anos, antes mesmo de definir a programação, já desejávamos a presença inquieta, brilhante e provocativa de JCB nos corredores e seus comentários depois das sessões. Tudo começou em 2003, quando ele topou fazer uma curadoria para o sétimo festival, depois do lançamento da segunda edição de Cineastas e imagens do povo. Assim como no livro – com seus apêndices –, a curadoria buscava atualizar a elaboração seminal de JCB em torno do documentário brasileiro, trazendo, para a tela do Cine Humberto Mauro, filmes contemporâneos ao lançamento de Cineastas (1985), mas que não puderam entrar na primeira edição (caso de Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, que ele considerava um “divisor de águas”), e obras então recentes que o inspiraram, como O prisioneiro da grade de ferro – auto-retratos (Paulo Sacramento) e Um passaporte húngaro (Sandra Kogut).

Com o título indagativo “Novos rumos do documentário brasileiro?”, Jean-Claude cercava os tais “rumos novos” de algumas dúvidas, postura que se prolongou nos comentários às sessões, muito vivos e vibrantes, sala lotada e JCB sempre disposto a conversar. Adorava o desafio e a discordância, e recebia com escuta particularmente ativa as opiniões que diferiam das suas. Saía das sessões ainda conversando, enquanto caminhava lépido, o papo prosseguindo pelas ruas e mesas de bar. Me divirto lembrando dele nos desafiando certa noite no Maletta (Leandro, Claudinha, Júnia, Rubinho...), com seu inconfundível sotaque francês, carregado nos errrrres: “E vocês, não têm nada a dizerrrrr sobrrrre esse assunto?”

Glaura Cardoso Vale: É impressionante você lembrar desse momento. Foi justamente em 2003 que fiz esse mergulho no forumdoc.bh para não mais sair, e me recordo, como se fosse hoje, exatamente dessa mostra curada pelo Jean-Claude. Nesse mesmo ano, estiveram presentes Consuelo Lins, a queridíssima Beth Formaggini, e os saudosos Aloysio Raulino e Jean-Louis Comolli. Aquela edição teve abertura memorável com a exibição de Atanarjuat: O Corredor, de Zacharias Kunuk. Durante muito tempo, o personagem continuou aquela incansável corrida na nossa memória, e a mostra internacional trouxe o cinema de Jean Arlaud. Só para lembrar a atmosfera da época. Lá se foram pouco mais de duas décadas. A mostra “Novos rumos” reuniu filmes com propostas muito distintas e que tinham em comum a ideia – talvez Bernardet tenha sido o primeiro a dizer – de um “cinema de busca”. Seja pelo reencontro, do qual Cabra se faz o maior exemplo, seja por uma busca que se frustra após tantas idas e vindas em meio à burocracia, como em Um passaporte húngaro. Foi num dos almoços ou jantares que Jean-Claude disse que eu falava por elipses, e, desde então, tenho me esforçado para corrigir essa característica. Isso pode parecer prosaico, mas evidencia como ele foi um interlocutor atento ao que o outro tem a dizer... Verdadeiramente interessado pela forma como nos expressamos sobre um assunto e, claro, quando falamos de cinema.

Cláudia Mesquita: Não faltaram ocasiões nos festivais seguintes para chamar Jean-Claude, que já esperava pelo convite e às vezes se antecipava, perguntando à Júnia o que faria no próximo forumdoc. A presença dele certamente tornou mais brilhantes e historicamente densas as retrospectivas dedicadas a diretores brasileiros – caso de João Batista de Andrade (2003), Carlos Alberto Prates Correia (2008), Ozualdo Candeias (2009), Fernando Coni Campos (2011) e Aloysio Raulino (2013). Tivemos mesmo a sorte de acompanhar, em 2003, o encontro e os debates entre Jean-Claude e Raulino, seu ex-aluno na ECA, que também se tornou grande amigo do festival. JCB estava preocupado, pelo que guardei na memória, em discutir como as possibilidades expressivas e de elaboração de linguagem das “novas tecnologias” (leia-se câmeras digitais portáteis) não eram inerentes, mas dependiam dos projetos que norteariam o seu uso. Por isso, era importante programar o lindíssimo Jardim Nova Bahia (Aloysio Raulino), elaborando, para O prisioneiro da grade de ferro, no qual Raulino atuou como diretor de fotografia, uma perspectiva histórica. Com astúcia, Jean-Claude propunha uma linha de força da produção documental brasileira, ao colocar lado a lado esses dois filmes separados por três décadas. Entre eles, guardadas as diferenças (tecnológicas, inclusive), havia um projeto comum (com muitos desdobramentos potenciais): que o “outro” filmado produzisse suas próprias imagens.

Glaura Cardoso Vale: É difícil pensar no forumdoc.bh desse tempo e ignorar essas presenças que passaram de convidados a amigos: Aloysio Raulino, Jean-Claude Bernardet e Andrea Tonacci. Eu quase não acredito que eles se foram. É como se estivessem aguardando o convite da Júnia, certos de que cada edição os surpreenderia, inauguraria nova reflexão, e que isso não se daria sem choque de ideias – algo necessário para avançarmos. Outro aspecto fundamental, antes da era da digitalização, foi a surpresa de rever filmes que há muito não eram revisitados, nem mesmo por seus realizadores, uma vez que as cópias em película estavam depositadas na Cinemateca Brasileira ou na Cinemateca do MAM-Rio. Esse trabalho de garimpar os acervos das cinematecas do Brasil e do mundo vinha das mostras temáticas ou retrospectivas de autor, que trouxeram esses convidados que se tornaram nossos amigos. Muita coisa ainda estava por ser (re)descoberta. A experiência coletiva da sala escura – como nos lembra Comolli, outro desses amigos que o forumdoc.bh cativou.

Cláudia Mesquita: No ano seguinte, 2004, Jean-Claude já estava novamente com a gente, dessa vez para participar de uma retrospectiva dedicada a Agnès Varda, cujo filme “proliferante” em associações, Os catadores e a catadora, lhe provocara “uma extraordinária e euforizante sensação de liberdade”, como escreveu. Ele se identificava e desejava para si o “movimento de um espírito livre”, formalizado pela montagem de Varda. Me lembro quando o convidamos, já em 2008, para participar da retrospectiva Carlos Alberto Prates Correia – JCB tinha escrito um ensaio inesquecível sobre Cabaré Mineiro (1980). Acho que foi a primeira vez que o ouvi dizer categoricamente que não queria mais falar como “crítico”, como “autoridade em cinema”. Na resposta ao convite, ele escrevia: “Deleuze disse que só vale escrever sobre o que não se conhece”. Mesmo relutante, ele veio, e lá estava Jean-Claude, emocionadíssimo, falando depois da sessão de Cabaré Mineiro.

Glaura Cardoso Vale: Entre esses anos, eu me recordo de 2006, quando Jean-Claude assistiu a Saute ma ville (Exploda minha cidade), na retrospectiva dedicada a Chantal Akerman, curada pela Carla Maia. Parece que o vejo agora comentando esse filme de 1968, primeiro da cineasta belga, realizado quando Chantal tinha apenas 18 anos. Chamaram a atenção do Bernardet as sequências que capturam o elevador em movimento entrecortando os andares. A aceleração e repetição desse subir e descer eram características, segundo nos disse, do cinema estruturalista. Ele, como muitos de nós, assistia a esses filmes pela primeira vez. Por isso, talvez, como dissemos, ele aguardava ou se antecipava à Júnia, perguntando qual seria sua participação na edição corrente, e queríamos tê-lo trazido uma vez mais. Não passava pela nossa cabeça que Bernardet partiria tão cedo, embora já com 88 anos, por conta da vitalidade que ele transmitia. Ao se reinventar, passando de ex-crítico a ator e diretor, ele nos ensinava a viver o presente.

Cláudia Mesquita: Sempre em movimento! Daí em diante, ele ponderava, a cada convite, que não era o “crítico” ou o “historiador” que viria a Belo Horizonte. Queria abordar processos criativos, uma postura que se articulava com sua guinada mais pronunciada, a partir dos anos 1990, para a realização: roteiro (ensino e escrita), montagem, atuação, performance. Colaborou artisticamente com muitas parceiras e parceiros, realizadores contemporâneos, e parecia mergulhar na intensidade vital desses relacionamentos criativos. A última vez que esteve conosco, em 2019, foi para conversar com Lincoln Péricles, a partir de seus filmes (Aluguel: o filme, Ruim é ter que trabalhar e Filme dos Outros). Apesar da saúde frágil, Jean-Claude parecia animado com as metamorfoses de sua trajetória e de suas ideias. Acreditava numa renovação de seu próprio pensamento crítico a partir do diálogo com outras experiências cinefílicas, mesmo reconhecendo as incomunicabilidades constitutivas desse diálogo. Naqueles dias, JCB e Lincoln circularam por BH, participando também de uma sessão junto ao coletivo Filme de Rua.

Glaura Cardoso Vale: Jean-Claude estava sempre aberto ao que ainda não conhecia. É bonita essa relação que ele construiu com Lincoln Péricles. Penso no final do filme #eagoraoque, dirigido por Bernardet e Rubens Rewald, quando os jovens do Capão Redondo contestam o personagem de Vladimir Safatle, numa sequência muito dura e muito contundente, que expõe o contraste entre a realidade da quebrada e a vida da classe média universitária. Nesse momento, podemos nos ver todos ali, na pele de Safatle que procura encontrar uma saída frente ao real que se instala na cena. Na entrevista que fizemos com os diretores, eu e Fabio Rodrigues Filho, fiz um apanhado sobre a estrutura do filme na questão introdutória e Jean-Claude respondeu com os erres que você mencionou no início: “Glaurrra, estou impressionado com a leitura sociológica que você fez do filme. Parrra mim, não é bem assim...”. Eu me divirto muito! E celebro por ter estado muitas vezes na companhia de Jean-Claude – sempre que ele veio para o forumdoc e nas outras ocasiões em que esteve em BH ou quando nos encontramos em outros festivais.

Cláudia Mesquita: Os diálogos eram um poderoso combustível para ele! “Tecendo-se através de linhas alheias” – como escreveu certa vez em seu blog –, exprimindo-se com as imagens de outras e outros, numa infinita conversa com quem topasse conversar... Jean-Claude fez de suas participações no festival mais um espaço de pensamento dialógico e experimental. Admirável como ele nunca se fixou, nunca se acomodou em certo patamar de status e de visão das coisas; esteve sempre buscando quebrar o consenso, problematizar o que já parecia dado, já consolidado – a começar por suas próprias ideias. Implicando terrenos díspares do conhecimento, trafegando por diferentes expressões artísticas, incorporando daqui e dali...

Glaura Cardoso Vale: Na sessão de Ladrões de Cinema, da retrospectiva dedicada a Fernando Coni Campos, curada pelo Ewerton Belico, descobrimos uma nova faceta de Bernardet, agora na atuação, como Claude-Rouch. Salvo engano, no comentário ao filme, naquele forumdoc.bh de 2011, Jean-Claude identificou uma possível aporia. De posse de equipamentos de filmagem, os moradores do morro resolvem fazer um filme. Perguntam, aqui e ali, a entendidos de cinema como operar a câmera, e é Claude-Rouch quem consegue os negativos. Os realizadores emergentes descobrem que precisavam de um tema e elegem, então, a história de Tiradentes. Reconhecem a necessidade de se aprofundar no tema e buscam auxílio também junto a entendidos de pesquisa na escola de samba. Aquilo que seria uma contranarrativa da história oficial acaba por ancorar o roteiro na história contada pelos livros. Certamente, será uma história de Tiradentes atualizada, mas essa contradição não poderia passar despercebida, o retorno à narrativa oficial contida nos livros como ponto de partida. Acho que o pensamento de Bernardet surgia a cada sessão, embora atravessado pela experiência acumulada – mas muito, muito vivo. Não se tratava de comentários pacificadores. Jean-Claude se sabia provocador. Tanto que havia embates após esses comentários. Ladrões de Cinema conta com uma deliciosa participação de Grande Otelo que tenta em vão emplacar seu roteiro inédito, diga-se de passagem. 

Cláudia Mesquita: Como Antonio das Mortes, personagem do cinema de Glauber Rocha, a quem dedicou Brasil em tempo de cinema (1967), Jean-Claude “resistia à interpretação”. Já naquele momento, interagindo com o Cinema Novo, e apesar do teor sociologizante dessa grande obra, ele chamava seu ensaio de “quase autobiografia”: reconhecendo na crítica um movimento de elaboração subjetiva. Desejava, como escreveu posteriormente, “se compreender através de Antônio das Mortes, e compreender Antônio das Mortes através de si”. Não apenas nessa identificação com o personagem interpretado por Maurício do Valle, mas em sua atuação como crítico que rompe com certo consenso e autoimagem do cinema novo, JCB elaborava o que qualificou como identificação “absoluta” com o conceito de “bastardo” de Sartre: “nunca pertencer completamente a nada”, “nunca estar inteiramente integrado”. Mover-se sempre.

Glaura Cardoso Vale: Ah, Claude-Rouch...

Cláudia Mesquita: Ah, Jean-Claude, quanta saudade!

Currículo

Cláudia Mesquita

é professora do curso de graduação e do Programa de pós-graduação em Comunicação Social da UFMG, onde integra os grupos de pesquisa Poéticas da Experiência e Poéticas Femininas, Políticas Feministas. Pesquisadora do cinema brasileiro, com mestrado e doutorado na ECA-USP. Publicou, com Consuelo Lins, o livro Filmar o real - sobre o documentário brasileiro contemporâneo (Editora Jorge Zahar, 2008), e organizou, com Maria Campaña Ramia, El otro cine de Eduardo Coutinho (Cinememoria e Edoc, 2012/Equador), e, com André Brasil, Cinemas da Terra (Selo editorial PPGCOM/UFMG, 2024).

Glaura Cardoso Vale

atua como coordenadora, produtora e consultora editorial para catálogos, livros e revistas de cinema. É integrante do coletivo Filmes de Quintal e colabora com o forumdoc.bh desde 2003. Publicou o livro A mise-en-film da fotografia no documentário brasileiro e um ensaio avulso (Relicário Edições e Filmes de Quintal; 1ª ed., 2016; 2ª ed., 2020). Doutora em Letras (FALE/UFMG, 2013) e em Comunicação Social (PPGCOM/UFMG, 2024), atualmente é professora visitante no Departamento de Linguagem e Tecnologia (DELTEC/CEFET-MG).