Demarcação da Terra Yanomami completa 30 anos e indígenas resistem a efeitos do garimpo ilegal para ‘segurar o céu’

Neste ano, a Terra Indígena Yanomami chegou ao 30º aniversário desde que foi demarcada em 1992. No decorrer destas décadas, os indígenas seguem em sua intensa missão de “segurar o céu”, uma tarefa pelo futuro da humanidade.

Habitada por cerca de 30 mil indígenas, que vivem em mais de 350 comunidades no Brasil, o território sofre com o garimpo ilegal e seus efeitos, que se intensificaram nos últimos três anos, conforme uma pesquisa dos centros de estudo FA (Forensic Architecture), da Inglaterra, e CLX (Climate Litigation Accelerator), dos EUA. O estudo analisou táticas políticas do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.

Outro estudo recente aponta a contaminação dos peixes de rios de Roraima com mercúrio, substância danosa à saúde e usada na atividade garimpeira para separar o ouro de impurezas. 

Não bastasse a contaminação por mercúrio, os indígenas também precisam sobreviver a uma onda de violência que cresce junto ao garimpo. Reiteradas denúncias às autoridades apontam o uso de armas de fogo e brancas pelos garimpeiros, tomada de postos de saúde para uso como base de operação logística e outras violações constantes dos direitos humanos indígenas.

Desde o início de 2022, a Hutukara Associação Yanomami já reportou aos órgãos competentes a morte de ao menos nove crianças. Todas vítimas de doenças que seriam fáceis de tratar, se não fossem os postos de saúde fechados, o baixo número de profissionais atuando na área, a falta de remédios e as doenças levadas pelos brancos.

Neste cenário devastador para a natureza, os Yanomami resistem com seus conhecimentos milenares. A produção de artesanato, arte e produtos para alimentação são peças-chave na tarefa deste povo na luta para preservar a natureza e defender o próprio território.

Contato com não indígenas

A Terra Indígena Yanomami está localizada no divisor de águas dos rios Orinoco e Negro, na região da fronteira entre o Brasil e a Venezuela.

O território yanomami no Brasil foi reconhecido e homologado por um decreto presidencial em 25 de maio de 1992, mais de oitenta anos após os primeiros contatos com a sociedade não indígena. Até o fim do século XIX, os Yanomami só tinham contato com outros indígenas que viviam em territórios vizinhos.

A situação mudou entre 1910 e 1940, quando os indígenas tiveram contato direto com representantes da fronteira extrativista, membros da Comissão de Demarcação de Limites, funcionários do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e viajantes estrangeiros.

De 1940 a 1960, diversas missões católicas e evangélicas se estabeleceram na região, criando pontos de contato permanente com os Yanomami, seguidos de postos do SPI. O convívio com os não indígenas, em um primeiro momento, deu certa assistência sanitária, mas também causou surtos epidêmicos de sarampo, gripe e coqueluche, que puderam ser controlados devido aos serviços médicos ofertados por estes postos.

Nas duas décadas seguintes, 1960 e 1970, o contato se torna ainda mais frequente. No entanto, desta vez por um projeto de expansão da fronteira agroextrativista promovido pelo Estado brasileiro, que englobava estradas, projetos de colonização, fazendas, serrarias, canteiros de obras e os primeiros garimpos. Essa exposição foi catastrófica para os Yanomami, que sofreram grandes perdas demográficas, fruto de uma crise sanitária generalizada produzida pela invasão garimpeira.

Uma explosão de garimpo ocorreu entre 1987 e 1990. Estes três anos ficaram conhecidos como “a corrida do ouro”, e, neste período, estima-se que quase 40 mil garimpeiros se instalaram no território e centenas de pistas clandestinas foram abertas na parte superior dos afluentes do rio Branco. 

Apesar da intensidade da corrida pelo ouro ter diminuído após o ano de 1992, ainda persistiram núcleos garimpeiros exercendo a atividade ilegalmente na área demarcada. Os invasores persistem até os dias de hoje, 30 anos após a demarcação, com a atividade ilegal na Terra Indígena Yanomami. A situação gera, desde sempre, uma tensão na região, que tem se intensificado nos últimos anos.

No ano de 1993, ao menos 12 indígenas foram mortos a tiros e golpes de terçado e 22 garimpeiros foram acusados pelo crime. Anos mais tarde, o Supremo Tribunal Federal (STF) acompanhou a decisão da Justiça Federal e entendeu que se tratava de um caso de genocídio, o primeiro e o único reconhecido pelo judiciário brasileiro. O caso ficou conhecido como o Massacre de Haximu.

Desestruturação da saúde

Em 2020, assim como o restante do mundo, os Yanomami precisaram enfrentar a pandemia de coronavírus. O Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Ye’kwana (DSEI-YY) registrou 2.163 casos confirmados e 22 mortes de indígenas em razão da Covid-19 até 14 de setembro deste ano. 

Antes dos primeiros casos, autoridades e especialistas já demonstravam preocupação com a possibilidade de garimpeiros levarem o vírus ao território, que já sofria com uma desestruturação na saúde, exposição ao garimpo ilegal e extrema vulnerabilidade a doenças.

Neste ano, a Hutukara Associação Yanomami já reportou a morte de nove crianças por outras doenças, sendo todas tratáveis, ao coordenador do DSEI-YY, à Funai (Fundação Nacional do Índio), à PF (Polícia Federal), ao Exército, ao MPF (Ministério Público Federal) e ao Condisi-YY (Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana).

As crianças viviam em comunidades da região do Xitei, onde há aumento de casos de remoções para tratamentos de saúde. Principalmente nas comunidades Homoxi, Hakoma e Arathau, que estão com os seus postos de saúde fechados em razão do aumento de violência com armas de fogo promovido pelo garimpo.

Em Homoxi, o posto de saúde está fechado há um ano. O local foi tomado pelo garimpo ilegal e agora funciona como apoio logístico da atividade. Os invasores usam a pista de pouso e o posto para abastecimento e distribuição de combustíveis, equipamentos e alimentação.

Após um conflito armado próximo a uma pista de pouso, o posto de Xitei também foi fechado. A violência relacionada ao fornecimento de armas e bebidas entre garimpeiros também levou ao fechamento do posto de Haxiu em março. Também há um baixo número de médicos na Terra Yanomami. Por isso, é possível que o número de mortes de crianças esteja subnotificado.

Em julho, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o Estado brasileiro adotasse as medidas necessárias “para proteger efetivamente a vida, a integridade pessoal, a saúde e o acesso à alimentação e à água potável dos membros dos Povos Indígenas Yanomami, Ye'kwana e Munduruku”. Na mesma semana, a Hutukara Associação Yanomami denunciou o agravamento do caos sanitário na Terra Indígena Yanomami ao DSEI e ao Condisi-YY.

Durante os últimos três anos, a degradação no território tem se intensificado, sendo a atividade garimpeira a principal responsável. O Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal (SMGI) indica que, do início deste ano até agosto, a área destruída aumentou em mais de 1.100 hectares. Em comparação a dezembro de 2021, houve um aumento de 35% de devastação.

Políticas, ataques e contaminação

Conforme estudo do FA e CLX, o presidente Jair Bolsonaro é responsável por estimular a situação por meio de propostas políticas. A pesquisa deu enredo a um filme, que detalha a estratégia de Bolsonaro para enfraquecer a proteção do território indígena.

A produção, disponível em inglês e português, aponta que o presidente atua com a diminuição de verbas para a fiscalização, a redução de multas por crimes ambientais e a tentativa de liberar o garimpo em Terras Indígenas através de projetos de lei.

Pesquisadores da Universidade de Nova York usaram técnicas de modelagem da arquitetura forense para reconstituir cenas em que ocorreram violações de direitos humanos, com foco no caso da agressão do crime organizado à comunidade do Palimiú. Para isso, usaram imagens de satélites que monitoram o desmatamento e vídeos da região disponibilizados no YouTube.

Em março de 2019, primeiro ano de mandato de Bolsonaro, uma lavra apareceu a uma distância de 8 km ao norte do Palimiú e cresceu quase 12 hectares durante os últimos três anos.

Uma reportagem da Folha de São Paulo revelou que as ações de combate ao garimpo durante o governo Bolsonaro atingem apenas 2% das áreas de garimpo e não há aeronaves disponíveis em Boa Vista para o combate à atividade ilegal. Ainda segundo a reportagem, as Forças Armadas têm se recusado a fornecer aviões, e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) conta com apenas oito veículos do tipo para atender às necessidades no país inteiro. A Fundação Nacional do Índio (Funai) em Roraima não tem um avião disponível e o Ministério Público Federal (MPF) não tem nenhuma aeronave.

Dados do relatório “Yanomami Sob Ataque” também demonstram que a Terra Yanomami vive o pior momento de invasão desde a demarcação, há 30 anos. Lançado em abril de 2022, o relatório registrou um salto de 46% do garimpo ilegal no território entre 2020 e 2021.

O documento contém diversas denúncias de ataques, assédios e mortes causadas pelo garimpo. Além disso, detalha de forma cronológica a situação dos indígenas que vivem em Palímiu, local onde há presença de uma facção criminosa. Pesquisadores indígenas colheram depoimentos de mulheres estupradas pelos garimpeiros após embriagar pessoas das comunidades indígenas.

Ainda de acordo com o documento, o número de comunidades afetadas diretamente pelo garimpo ilegal soma 273, abrangendo mais de 16.000 pessoas, ou seja, 56% da população total. Existem mais de 350 comunidades indígenas na Terra Indígena, com uma população de aproximadamente 30 mil pessoas.

O levantamento evidencia que a malária explodiu em zonas de forte atuação garimpeira, como nas regiões do Uraricoera, Palimiu e Waikás. No Palimiu, em 2020, houve mais de 1.800 casos.

Conforme o relatório, entre os principais fatos para a explosão do garimpo estão o aumento do preço do ouro no mercado internacional, a falta de transparência na cadeia produtiva do ouro e falhas regulatórias que permitem fraudes na declaração de origem do metal extraído ilegalmente, a fragilização das políticas ambientais e de proteção a direitos dos povos indígenas e, consequentemente, da fiscalização regular e coordenada da atividade ilícita em Terras Indígenas.

Além disso, o documento também elenca o agravamento da crise econômica e do desemprego no país, produzindo uma massa de mão de obra barata a ser explorada em condições de alta precariedade e periculosidade, as inovações técnicas e organizacionais que permitem às estruturas do garimpo ilegal se comunicar e se locomoverem com muito mais agilidade e a política do atual governo de insistente incentivo e apoio à atividade apesar do seu caráter ilegal, produzindo assim a expectativa de regularização da prática.

Um estudo feito por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Evandro Chagas e Universidade Federal de Roraima (UFRR) aponta que os peixes dos rios de Roraima estão contaminados pelo mercúrio despejado pelo garimpo ilegal.

Conforme a pesquisa, que coletou pescados de três pontos da Bacia do Rio Branco, os animais estavam com nível de concentração de mercúrio igual ou superior ao limite permitido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Mesmo distante da Terra Indígena Yanomami, foi constatada a contaminação em uma proporção menor. Na capital, Boa Vista, a cada 10 peixes coletados, dois não são seguros para consumo, enquanto no Rio Uraricoera, o ponto mais próximo ao território Yanomami, seis a cada dez têm nível de mercúrio acima do limite. Ou seja, os moradores do estado podem estar comendo peixes contaminados.

Resistência

Para resistir a toda a pressão na Terra Indígena Yanomami, os povos da floresta encontram alternativas sustentáveis de produção. Do artesanato tradicional a produtos que são vendidos na cidade.

Um dos carros-chefes é o “Ana Amo - Cogumelo Yanomami”, que são os primeiros cogumelos nativos da Floresta Amazônica a chegarem no mercado brasileiro. Ao todo, são 15 espécies de fungo comestível, que podem ser encontrados desidratados inteiros ou desidratados em pó.

Este é um produto extrativista dos Sanöma, um dos subgrupos dos Yanomami, que tem grande conhecimento sobre a biodiversidade do território. Eles habitam a região de Awaris, nas florestas de montanha do extremo noroeste de Roraima.

Outro produto dos Yanomami é o “cacau Yanomami”, extraído direto da Terra Indígena por comunidades situadas nas calhas dos rios Demini e Uraricuera.

Além dos produtos comestíveis, também há artesanatos como cestas, colares e outros tipos de adornos com gravuras e expressões típicas dos Yanomami. Este tipo de atividade é mais comum entre as mulheres indígenas. Estes produtos são convertidos em rendas para as próprias comunidades como forma de oferecer alternativas de produção e evitar que garimpeiros recrutem os indígenas mais jovens para a atividade ilegal de extração mineral.

Para que os não indígenas entendam melhor a missão dos Yanomami de “segurar o céu”, os indígenas têm se apropriado dos meios de comunicação digitais principalmente por meio de parcerias. Com a comemoração dos 30 anos de demarcação do território, associações que formam o fórum de lideranças yanomami e ye’Kwana lançaram um mini-doc que conta parte da história da maior Terra Indígena do país e celebra as conquistas destas três décadas.

O líder yanomami Davi Kopenawa também participou recentemente de um podcast chamado Casa Floresta, feito pelo ISA. Ele conversou com a atriz Maria Ribeiro em passeio por São Paulo, em que relembrou as reflexões de seu livro A Queda do Céu. Kopenawa refletiu sobre a situação do povo da mercadoria, contou sobre a relação dos indígenas com a natureza e como seu povo segue segurando o céu.

Currículo

Fabrício Araújo

é jornalista do Instituto Socioambiental.