Entrevista com o cineasta português Pedro Pinho sobre o filme O Riso e a Faca (2025)¹

1. Seu primeiro longa-metragem, Bab Septa, codirigido com Frederico Lobo em 2008, foi exibido no forumdoc.bh.2009 e foi premiado. Agora, em 2025, você estreia seu terceiro longa-metragem, O Riso e a Faca, que teremos a honra de exibir a versão integral no forumdoc.bh.2025. Você poderia falar desse percurso até este último projeto na África Ocidental, na Guiné-Bissau? 

Então, há uma ligação direta entre esse primeiro longa documental que eu realizei com o Frederico Lobo, que foi mostrado no forumdoc.bh em 2009. Porque foi nessa altura que eu fiz essa viagem pela primeira vez, através do deserto do Saara. 

E foi na sequência dessa rodagem que eu me apaixonei por aquele território, inicialmente pela Mauritânia, por aquela cultura, por aquelas pessoas, e que depois vim a descobrir a Guiné-Bissau. O Bab Sebta era um filme com uma motivação muito política inicialmente, porque tinha a ver com uma urgência, o escândalo de uma situação que estava a acontecer naquele momento – e que não parou de acontecer desde então – que é um conjunto de pessoas que estava junto à fronteira de Norte África, perto de uma coisa que se chama A Porta de Ceuta. Essa porta é uma via de entrada na Europa, porque Ceuta é um enclave espanhol no norte de Marrocos. 

E o facto de ter encontrado essas pessoas todas e de ter começado a filmar com elas fez com que eu, de alguma forma, percebesse que havia uma mudança nessa motivação, que inicialmente era política, para uma visão quase epistemológica. Esses encontros motivaram em mim uma mudança de perspetiva, quase um corte epistemológico. 

Quer dizer, comecei a conseguir ver a Europa a partir da perspetiva de quem está de fora, e isso foi muito forte para mim. Não que não houvesse, ao longo da minha vida, um sentido crítico em relação ao papel histórico da Europa e da sua projeção colonial, mas aperceber-me de uma forma tão forte e tão viva de todo esse conjunto de perspetivas. Aperceber-me de que os problemas que nós estamos habituados a ver de uma determinada maneira podem ser vistos de outra maneira, e que essa mudança de perspetiva tem implicações políticas fortíssimas. Isto que hoje estou a dizer parece uma banalidade, mas, para mim, foi muito fundador.

Não só fundou, de alguma forma, esse olhar, mas também iniciou uma vontade muito grande de passar tempo, de conhecer, e daí comecei a visitar com muita frequência a Mauritânia e, depois, a Guiné-Bissau.

A certa altura, decidi, com um grupo de amigos, fazer um documentário sobre esse outro braço da relação entre a Europa e o Sul, que é a cooperação. E fomos para o norte da Guiné-Bissau. Um dos meus amigos arranjou um trabalho como engenheiro do ambiente numa ONG, enquanto responsável de um projeto de bombas de água no norte da Guiné-Bissau. Com essa logística mínima, uma casa, um carro, um salário, fomos todos para ali tentar fazer esse documentário. E foi nessa situação que nós tropeçámos, de alguma forma, com essa cena do filme, que depois recriámos, 15 anos mais tarde, que é a cena das latrinas, a cena da Unicef.

Aquele episódio fez com que esse documentário morresse, naquele primeiro dia de rodagem, porque percebemos que havia um conjunto de problemáticas tão complexas e tão difíceis de abordar – e que nos deixavam tão completamente perdidos, politicamente e moralmente, inclusive –, que precisámos de as digerir. E essa digestão demorou 15 anos, até voltar na forma de uma ficção.


2. As “bolonhas”! Como continuar a estar do “lado do arroz” resistindo à intrusão da água do mar e tudo o mais? Você poderia falar sobre as “tabancas” e as “bolonhas” na Guiné-Bissau a fim de introduzirmos o solo existencial onde o filme e a estrada se desdobram?

Desde as minhas primeiras visitas ao país, apercebi-me que a Guiné-Bissau é um território muito particular, com características muito especiais. Porque, sendo um território que esteve durante largos séculos oficialmente sob o domínio colonial do Império Português, a presença colonial era muito baseada na costa e havia muito pouca penetração no interior do território. Claro que isto tudo mudou um bocadinho no início do século XX, com o mapa cor-de-rosa e com a tentativa de partilha do continente africano pelas potências europeias, e aí Portugal viu-se obrigado a marcar presença e a entrar para dentro do território, mas, ainda assim, até os anos 60, quando começou a guerra de libertação – aquilo que os portugueses chamam até hoje guerra colonial, mas que é a guerra de libertação –, a presença do Estado no interior do território era muito diminuta.

Existiam vastas áreas de terrenos, de culturas, de aldeias, de grandes aldeias, inclusivamente, que praticamente não tinham presença colonial. Aliás, muito rapidamente o PAIGC (o movimento político-armado de resistência) ganhou controlo militar sobre cerca de 85% do território. Ali, as aldeias chamam-se Tabancas. E esse território era povoado por uma enormidade de diferentes línguas e diferentes culturas. 

Até hoje subsistem na Guiné-Bissau cerca de 50 e tal culturas, línguas diferentes, e as pessoas falam-nas diariamente na sua casa. E, portanto, de alguma forma, comparando com os países ali à volta – que tiveram a dominação colonial francesa e inglesa – esse território, por um acaso histórico e também pela ineficácia e impotência da “potência” colonial, era um território de forte resistência. 

Foi, para mim, muito interessante perceber que uma grande parte dessas culturas, dessas ‘etnias’, como se chama na Guiné-Bissau, são culturas que, historicamente, se definem como culturas de resistência, não só à invasão colonial europeia, mas também a todas as outras invasões precedentes: nomeadamente, a invasão muçulmana, a invasão do Império de Mandinga e tudo isso. Inclusivamente, uma das culturas maioritárias, das línguas principais, é a língua balanta. Há uma curiosidade muito engraçada que é o significado da palavra balanta, na língua balanta, que quer dizer aquela pessoa que diz não, ou seja, aquela pessoa que resiste. 

Isso torna-se muito claro quando se entra um bocadinho mais no território e, muito particularmente, na zona onde filmámos, no norte da Guiné-Bissau, que é um emaranhado de braços do rio Cacheu. Convém lembrar (para quem não sabe) que o primeiro entreposto escravocrata do Império Português e, portanto, o primeiro entreposto escravocrata europeu ficava na foz do rio Cacheu, onde atualmente existe um museu. Portanto, foi ali que foram capturadas, aprisionadas e depois transacionadas as primeiras pessoas escravizadas dentro do modelo de tráfico transatlântico.

É um território com muita água, com uma grande extensão de manguezal, e toda essa zona, toda essa região, é a região do arroz. É uma região muito forte de produção de arroz. Inclusive, há muitos estudos americanos, de antropólogos americanos, sobre o black rice, o arroz negro, que sublinham a importância da tecnologia agrária das pessoas que eram sequestradas e levadas precisamente dessa região para a implantação do arroz na Carolina e do arroz na América – mas também no arroz em Portugal. Foi dali que, de alguma forma, foi exportado todo o conhecimento, toda a tecnologia do cultivo de arroz. 

É muito impressionante ver a extensão e a sofisticação desta tecnologia, porque são áreas e extensões absolutamente enormes de diques feitos com lama para vedar a água salgada dos arrozais. Os arrozais são nas “bolanhas”, aquilo que lá se chama bolanhas, que são os pântanos onde o arroz é cultivado, e há um sistema de diques que permite filtrar a água e fazer com que, progressivamente, a água seja menos salgada. Portanto, há uns tanques exteriores onde é conservado o peixe vivo, deixa-se entrar o peixe para ali permanecer vivo e poder ser facilmente conservado, ser facilmente recolhido, apanhado, pescado. Depois, há uns tanques mais interiores que retêm a água da chuva, da época das chuvas, e onde cresce o arroz e, periodicamente, esses tanques de arroz são inundados controladamente pela água salgada para limpar as ervas daninhas e fazer essa gestão permanente dos diques, de entrada e saída de água doce e de água salgada, para permitir o cultivo do arroz. 

É muito impressionante, porque são extensões enormes e convido, inclusivamente, a um exercício muito fácil, que é ir ao Google Maps e ver de facto os favos, em toda aquela região, que se estendem por quilómetros e quilómetros, e que alimentam todas aquelas aldeias. 

Claro que, para quem chega, a primeira impressão é que se trata de uma zona meio fortificada, que é totalmente impenetrável, porque as próprias condições naturais fazem-te pensar: mas como é que alguém vem para aqui viver? Como é que é possível subsistir aqui?... É uma zona muito remota. Há muitos relatos, inclusivamente das primeiras expedições coloniais portuguesas, de que, um após outro, os barcos de invasores europeus entravam pelos braços do rio Cacheu e não voltavam, nem mandavam mais notícias. Perdiam-se para sempre, um após outro. E, portanto, há uma aura muito grande naquela região, uma aura de resistência, e que transparece ainda na organização cultural, na forma como as pessoas se organizam.

As primeiras vezes que eu estive nessas aldeias ainda havia muito sistema de troca, sem dinheiro, ou seja, os mercados existiam ainda sem dinheiro. Hoje em dia, parte das trocas comerciais já envolve dinheiro, mas há 15 anos ainda se encontrava muitas situações de troca sem dinheiro. E há uma série de sistemas sociais, políticos, de organização política, que são completamente novos aos olhares de alguém que olha a partir da Europa, e que parecem ter um potencial muito subversivo, quando se pensa à luz do capitalismo e à luz do que é a sociedade ocidental.

3. Outrossim é a África Ocidental, Guiné-Bissau, Bissau, a cidade onde se concentra as contradições coloniais. A cidade é uma só?

Como dizia, Bissau é uma cidade onde coabitam muitas cidades. Basta olhar para algumas expressões que são usadas no crioulo guineense e também trazidas para o português local, para percebermos que ali coexistem muitas vidas diferentes, muitos universos diferentes, muitas cosmogonias diferentes. Porque é uma cidade onde convivem muitas culturas, muitas línguas diferentes e, claro, também os resquícios da presença colonial e do impacto que ela teve na história do país. 

Há uma coisa muito engraçada: as pessoas referem-se muito frequentemente àquilo que é “o chão do Estado”. O chão do Estado é a “Praça”, aquilo que se chama Praça. A Praça é o centro da cidade, é a região da cidade onde existe alcatrão, onde as ruas são asfaltadas e os edifícios coloniais estão presentes e as casas são feitas de cimento ou de pedra. Depois, fora da praça, existem as casas da Tabanca, ou seja, as casas feitas de terra, tradicionalmente com telhado de palha, agora, mais atualmente, telhado de zinco.

É, portanto, só essa diferença entre a praça e o que está fora da praça. A praça é o centro da cidade, é a cidade nova, a cidade colonial, ‘o chão do Estado’, a cidade do Estado. E, portanto, ali na cidade de Bissau é a zona onde confluem todas essas contradições históricas, e também presentes.

E é também ali que se desencadeou a luta de libertação por meio de uma greve que foi violentamente reprimida no porto de Pidjiguiti. O porto de Pidjiguiti é mesmo no centro da cidade, na parte velha da cidade, e onde hoje está uma estátua com um punho – que aliás aparece no filme –, a assinalar o massacre dos trabalhadores portuários do Pidjiguiti.

4. Sobre as personagens e a mise en scène, como se deu este trabalho, como se deu a produção do elenco? Todas as personagens são muito bem construídas e parece que houve muito espaço para o improviso e o risco de cada cena. Mas tem um personagem que não está no núcleo central e que, a meu ver, desempenha um papel fundamental na trama e, como tudo o mais, está repleto de contradições. Você poderia falar sobre Bojan e sua presença na economia do filme?  

O trabalho com os atores partiu de uma base escrita, de um roteiro dialogado, retrabalhado na escrita muitas vezes, durante muito tempo, com várias pessoas.

Mas eu, na minha prática normal, não dou o papel escrito, não dou o roteiro em papel aos atores. Fazemos uma leitura e depois cada um guarda a impressão e a memória que quer e pode dessa leitura. A ideia é que não haja demasiada construção sobre as personagens, porque o meu objetivo é convidar os atores a trazer a sua subjetividade íntima – do ponto de vista político, do ponto de vista moral, do ponto de vista da sua personalidade –, de como reagem às coisas, às surpresas, às vozes dos outros, aos gestos, aos olhares, e construir a personagem a partir dessa subjetividade emprestada pelo ator. 

Claro, é sempre uma dramaturgia negocial. Porque os atores negociam comigo aquilo que estão dispostos a entregar de si, dos seus traços de personalidade e, inclusivamente, o seu nome, a sua maneira de olhar, de gesticular, de falar, as suas opiniões políticas, filosóficas, as suas crenças morais.

E, portanto, as personagens são construídas dessa forma, em processo meio dialético entre o roteiro e a ‘mise en situation’ que acontece na rodagem com os atores. No caso da personagem do Bojan, isso foi um trabalho muito forte. Porque o Jorge Biague (que faz de Bojan) é um ator muito conhecido e famoso na Guiné-Bissau. Ele trabalhou em muitos filmes, tanto da Flora Gomes como do Sana Na N’Hada, que são os dois maiores cineastas da Guiné-Bissau, com um trabalho muito importante e muito referencial para mim. 

Eu senti que ele estava mais habituado a fazer um trabalho de texto, em relação com o texto, e que este trabalho de improvisação era uma proposta nova. E que o desafiou muito, e que ele me disse várias vezes que gostou muito.

A personagem do Bojan é uma personagem que intercruza várias dimensões, dimensões económicas, de classe, culturais. De alguma forma, ele é o pilar essencial à sobrevivência do protagonista, do Sérgio. E há essa dupla relação de dependência. O Sérgio quase não entende o que as pessoas à volta dele dizem numa fase inicial, sem a ajuda do Bojan. Está completamente perdido com toda aquela realidade, e é o Bojan quem está ali para o ajudar. Ao mesmo tempo, é o assistente do Sérgio, mas também tem um ascendente sobre o Sérgio – não só naquilo que consegue providenciar de logística e de conhecimento, mas também na forma como serve de porta de entrada para o mundo local, para o universo, para a cosmogonia local. 

E é a partir das conversas de situação, das conversas aparentemente inócuas que os dois têm durante o trabalho, que o Sérgio vai aceder a essas dimensões todas. A certa altura, o Bojan começa a falar-lhe sobre o casamento e o amor, e acaba a falar-lhe sobre sobre a cultura animista e sobre as cerimónias de ‘toca-choro’ e as cerimónias de passagem à idade adulta e tudo isso. É isso que permite ao Sérgio adentrar na complexidade dessa cultura e permite-nos também aflorar a existência de outras dimensões, muito para além daquelas que são imediatamente tratadas.

5. Impressiona o tamanho da lista dos nomes de figurantes nos créditos finais. Como foi construído, quanto tempo levou, todo o trabalho realizado com a população local de diferentes territórios e etnias?

Todo o trabalho de preparação desse filme desenvolveu-se ao longo de oito anos, mas, na realidade, a minha relação com aquele território já vinha de trás. Eu comecei a ir pela primeira vez à Guiné-Bissau em 2009, 2010 e, portanto, há uma história de 15 anos de relação minha com as pessoas. De presença, de conhecer gente aqui, conhecer gente ali, que me permitiu chegar a já conhecer o que procurar e com quem falar. E também, de alguma forma, saber como falar e como me apresentar, como defender o projeto, como convidar as pessoas a participar. Esse trabalho foi desenvolvido ao longo de 15 anos. 

Posso dar o exemplo da cena das latrinas, que foi uma cena que eu presenciei em 2010. Depois, voltei lá muito mais tarde, para partilhar o meu desconforto, a minha vergonha, até a minha raiva, e, a limite, até a minha vontade de vingança, pela situação que foi vivida naquele dia. 

  No início, quando cheguei com a proposta de reencenar esse dia, houve uma certa estranheza; quem era esta pessoa que estava a falar daquilo? De uma coisa que aconteceu há 10, 15 anos atrás? Quem é este branco que chegou aqui de carro? 

  Depois, ao fim de algum tempo, de alguma insistência, de tentar explicar a ideia, começou a haver esse movimento de jogo e de cumplicidade – de dizer: vamos reencenar uma coisa que aconteceu, que foi muito estúpida, que foi muito vergonhosa, que foi muito violenta até. Mas vamos brincar com isso, e fazer com que isso possa ser contado de outra forma. No fundo, era essa a proposta que fiz às pessoas que encontrei. Sobretudo na parte final do filme, em que há vários habitantes das localidades onde filmámos, dessas tabancas. 

  Procurei também abrir espaço no filme para essas pessoas trazerem a sua visão sobre aquele problema ou aquele assunto que emerge da narrativa, mas que suscita reações e opiniões várias. E essas opiniões, essas palavras, eram convidadas a soltar-se de maneira tão liberta quanto possível, tendo em conta a presença da câmara. E, com ela, fabricámos a história – e uma certa polifonia com que se constrói o filme.

6. Outro aspecto notável no filme diz respeito às diferentes línguas faladas. Lemos, nos créditos, que a equipe contou com um professor de Crioulo. Gostaria de saber um pouco mais sobre o desafio dessa dimensão tradutória plurilinguística que o filme abraça. 

Como disse, a Guiné-Bissau é um território com muitas línguas. O crioulo é a língua franca, falada um pouco por todo o território. Mas quando vamos para as “tabancas", para o interior, há muita gente que nem sequer fala crioulo. 

No interior fala-se sobretudo as línguas locais. A maioria da população é poliglota, ou seja, muita gente fala português, crioulo, a língua da mãe e, muitas vezes, a língua do pai. Isso é muito frequente. 

Tivemos em muitos lugares, com muita gente que não entendia português. Para além de haver a ajuda da equipa local, havia sempre essa vontade de fazer com que toda a equipa dominasse pelo menos o básico da conversação, da linguagem em crioulo – para que pudesse haver um encontro a meio caminho entre a vida da equipa e a vida das pessoas que estávamos a filmar.

7. Enquanto assistia ao filme, logo no início, tive uma impressão de um diálogo forte com toda uma bibliografia contemporânea que gira em torno das questões climáticas, em especial, eu citaria o livro de Isabelle Stengers, No tempo das catástrofes – resistir à barbárie que se aproxima. Você poderia falar das referências filosóficas e antropológicas com as quais o filme dialoga?

Algumas das referências são, inclusivamente, citadas no filme, como o La Boétie. 

Quando eu li pela primeira vez Eduardo Viveiros de Castro, foi uma coisa que me bateu muito. Foi até antes de ter lido Pierre Clastres ou mesmo (mais tarde) Lévi-Strauss. Tudo pela ordem inversa. E depois, só mais tarde, o Kopenawa. 

Todo esse contexto teórico, todas essas teorias produzidas a partir das culturas e das filosofias ameríndias (ou da sua observação), surgiram-me como alguma coisa muito abaladora. Alguma coisa que punha em causa, ao mesmo tempo, os fundamentos da nossa conceção do mundo. Quando eu digo nossa, quero dizer europeia e ocidental, obviamente. Mas também como algo que se apresentava como uma possibilidade de futuro. Como uma pista para uma fuga, uma fuga que todos sentimos como necessária. 

Não sou um estudioso desses textos. Alguns deles apenas mal conheço. Mas o meu contacto com as ideias do Kopenawa, Isabelle Stengers, Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, assim como do David Graeber, do Achille Mbembe, do Ruy Duarte de Carvalho, do Amílcar Cabral, ou ainda da Ursula K. Le Guin e a Alice Zeniter, são referências muito importantes para a construção do filme.

8. Em 2025, um dos filmes mais importantes da filmografia brasileira, Iracema, uma transa amazônica, de Jorge Bodansky, completa 50 anos. Impossível não estabelecer uma conexão parcial entre os filmes. Qual filmografia te ajudou a pavimentar a imaginação exposta neste último trabalho?

Claro que o Iracema, uma transa amazónica é um filme muito importante como referência para a feitura de O Riso e a Faca. Se mais não for, porque tem uma coincidência temática óbvia, o filme desenrola-se à volta da construção de uma estrada – e também sobre essa penetração de um homem branco industrializado na paisagem, com todas as questões do desejo, da sexualidade e da aventura que o filme traz. 

  Mas, para além do mais, é o próprio modelo da rodagem. O Ivo Lopes Araújo foi quem me mostrou o filme. Nós fomos lendo sobre como a rodagem foi feita, como foi preparada, e era uma coisa muito próxima daquilo que nós imaginámos. 

Claro, numa escala totalmente diferente, a nossa equipa era muito maior, o tempo era maior, mais recursos, tudo isso, mas essa ideia de levar a carroça, os camiões e a equipa a percorrer o percurso do filme – um percurso onde não se volta atrás, um percurso que avança na paisagem; onde se filma e se avança e se filma, ao mesmo tempo – era uma coisa que nós queríamos ter presente nesta rodagem. 

  Claro que há outros filmes – esta resposta é sempre muito difícil. Todos os filmes que amei na minha vida são referência para todos aqueles que irei fazer… 

  Mas, sei lá, há referências e citações óbvias dentro do próprio filme: há referências ao Wong Kar Wai, ao Chunkin Express. Há todo esse tratamento de uma hipermodernidade em ascensão na Ásia, em Hong Kong, que é uma coisa que eu sinto muito agora nessas cidades da África Ocidental: uma euforia de possibilidades que se adivinham.

Há, claro, referências a todos os filmes que foram feitos à volta do Coração das Trevas, nomeadamente o Apocalipse Now, há uma série de citações meio bobas do filme. Há uma referência muito óbvia a um filme que eu amo, do Alan Tanner, que se chama La Salamandra, que é a viagem de carro para fora da cidade, quando eles estão a cantar.

E depois há todo o Robert Kramer e a relação com o discurso, há a câmara e os atores, e como é que essa coreografia se desenha em grande parte dos filmes do Cassavetes, sobretudo os iniciais. Não sei, há todo um conjunto de... há, obviamente, os filmes do Abderrahmane Sissako, que são filmes que me impressionaram muito quando estava a descobrir a Mauritânia, e que estou sempre a procurar copiar, sem nunca conseguir. Há os filmes do Flora Gomes, que também são filmes que me marcaram muito e me impressionaram muito.

9. E o Tom Zé?

O Tom Zé surgiu porque a escrita do argumento foi feita em muitas mãos, com muita gente, mas também foi muito musical. A escrita era muito banhada pelas músicas do Rico Dalasam, da Karol Conká e tudo isso. 

Na altura, em 2017, todas estas questões da identidade eram coisas ainda um pouco novas em Portugal. O Brasil estava muito à frente em todo esse pensamento. E nós estávamos a chegar aí, acho eu – a coisa tinha poucos anos.

E, claro, em Portugal ouve-se muita música brasileira. E o Tom Zé é uma referência absoluta, desde a primeira vez que o ouvi ao vivo no Festival Músicas do Mundo de Sines, nos anos 2000 e pouco.

Eu queria que o título do filme fosse esse. Inclusive, cheguei a ter uma cena escrita para se relacionar com o título, mas depois, obviamente, era meio pateta e caiu. 

Mas sentia que essa música ilustrava melhor do que nada esse turbilhão interior, íntimo, que as personagens sentem perante todas aquelas questões maiores do que a própria vida, que atravessam. 

A forma como esses problemas as precedem e irão perdurar muito para além do seu encontro. Esse turbilhão era uma coisa muito linda na música do Tom Zé e que eu queria trazer um bocadinho para dentro do filme.

Notas

  1. Optou-se por  manter  a grafia correspondente ao português de Portugal nas respostas do diretor.