O último fugitivo

traduzido por Ewerton Belico

A evasão¹ voltava a aprisionar-se em uma sala obscura; para fugir, só precisava passar através do retângulo de luz que o projetor decupa sobre a tela. Que fuga? A vida alienada, as fadigas de nosso mundo comum, a falsa liberdade dos falsos movimentos. O cinematógrafo seria então a única evasão autorizada. Seria uma evasão e ainda um aprisionamento. Uma fuga sem fugitivos. Nossos corpos projetar-se-iam nos corpos filmados dos outros, nossos sonhos nos sonhos filmados dos outros; nada havia mudado para além do tempo desse sonho: após a evasão, a retomada, a sociedade disciplinar esperaria o corpo do sonhador em seu afastamento, a evasão não passaria de um engodo, porém teríamos desejado nele acreditar, nele estávamos, a ele possuíamos, esse engodo nos possuía em si.

Confesso e inteiramente elíptico, breve, em Le Moindre Geste, uma história de evasão. Yves e Richard fogem de um asilo; poucas coisas nos são mostradas desse lugar, disciplina e aprisionamento, trabalho forçado, ausência de trabalho, gestos, papéis portanto, trajes e reuniões,  corpos,  regulados  segundo  uma  divisão  menos antiga do que aparenta (Cf. Foucault) entre poder e saber, ignorância e submissão. Nomeamos tal mundo “cena” e a ordem que ali reina “encenação”. Tudo nos enquadramentos, na iluminação, na decupagem, na montagem desses quadros quaisquer de um asilo confirmam-no; tratar-se-ia de inscrever o ordenamento de uma encenação, no caso, essa de uma instituição e essa do cinema. A encenação cinematográfica representa a encenação asilar, reduplica-a, aprisiona-a sobre si mesma. Yves e Richard são fugitivos; do asilo como encenação e da encenação do asilo. Ousemos uma fórmula: os dois insubmissos escapam do próprio cinema.

A fuga não passa de um ponto de partida, um ou dois esboços que constituirão o rastro narrativo suficiente, outra é a aposta que se anuncia: que o próprio filme foge da ficção da fuga e, aceitando seu tempo e sua distância com toda necessidade narrativa, não deseja outro destino que tomar corpo junto com os fugitivos – com o corpo do fugitivo maior, Yves. O outro fugitivo, Richard, irá cair em um buraco – e essa queda irá literalmente esburacar o relato²: o personagem está perdido, o relato cancelado.

Tomar corpo com o fugitivo quer dizer que o cinema será atraído por esse corpo de Yves como por uma força gravitacional irresistível, que o corpo de Yves exercerá uma potência mais antiga que o cinema, potência que não teria sido passível de filmagem senão sob a condição de um desfazer-se, ao menos parcial, do cinema; sob a condição de desfazer-se de uma parte si mesmo esse cinema havia tentado filmar esse corpo pelo qual é atravessado; uma vez desfeito, que esta defecção tenha afetado a vontade de potência mesma do cinema, tudo nele que pretende ser controle e autocontrole, ordem e construção, lógica e sentido; desfazer-se de suas qualidades e suas prerrogativas: vir-a-ser³ cinema diminuído. Paradoxalmente, essa diminuição não deixará de exaltar o corpo e a figura filmada de Yves.

O corpo que se manifesta no menor gesto⁴, os fragmentos de história que ali se depositam, tudo parece produzir-se em uma região onde o cinema não seria ainda  verdadeiramente parasitário. Antevir de um ante-cinema . Qualquer coisa de um “antes” ocorre nesse filme, antes dos anos cinquenta e ainda antes do desenvolvimento destes efeitos ditos “realistas” os quais o cinema que  conhecemos se acha reduzido. Nos vemos diante de um cinema ainda um tanto desconhecido, ao qual somos futuro, um cinema que não teria mais (ou não teria ainda) lembrança de qualquer cinema. Cinema “não filmado”, se pudermos  reverter a formulação de Daney. Não são apenas o branco e o negro, o silêncio ainda percebido no meio dos sons reconstituído, os uniformes, os sotaques, as motonetas de um vilarejo de farta memória; as histórias e os corpos que se entrechocam, entre pedreiras e riachos, entre a água e a pedra, vêm seguramente de antes do cinema, ou ainda nascidos de todos os primeiros filmes, aqueles que exporiam os eventos passados nas festividades do vilarejo. Estamos em uma arqueologia cinematográfica que faz retornar até às fundações do cinema.

Como a queda, a evasão é uma oscilação súbita, ruptura no tempo  e no espaço. De  um  lugar e de um tempo  a seu oposto. Tal seria a evasão prometida pelo cinema. A sala obscura abrir-se-ia como um artifício a adoçar a passagem de uma face a outra do mundo. Luzes clareando a sala, a fuga teve fim, os fugitivos vêem-se novamente no ordinário da vida. A fuga que é questão em Le Moindre Geste não é reversível. Prisão, asilo, buraco, aprisionamento: mesmo que  tais figuras do constrangimento não possam remeter-se para além das violências coletivas, sociais e morais, que nos ligam uns aos outros, que são as nossas, em suma; sua representação cinematográfica sempre procedeu com uma prudência que visava atenuá-las, adoçá-las. À medida que a tais violências é recusada qualquer mediação representativa que seja (política ou artística) não mais encontrar-se-ão como que remediadas e protegidas pelas representações (teatro, cinema, dança, circo) que delas se farão. A representação da violência não é violenta. Aqui, e é exatamente outra coisa, a violência é feita à representação mesma. Yves pode muito bem retornar ao asilo ao final do filme, que ele não foi recapturado, nem recuperado ou arrependido, ele é a figura mesma da evasão: o que se “prende” é justamente o que escapa à captura. Yves escapa ao cinema no ato mesmo de ser filmado.

Como? Le Moindre Geste é dividido exatamente em dois. Dois tempos, o da gravação e o da montagem. Duas bandas, imagem e som, menos rivais que separadas, libertas uma da outra. Dois pólos de organização significativa: o relato da fuga, que engloba o vilarejo, as pessoas do campo, as mulheres, os agentes de repressão; e doutra parte a suspensão - fuga - desse mesmo relato nos arcos de repetição que fazem aparecer a filmagem dos gestos de Yves, repetidos, de seus trajetos, repetidos, com seus sofrimentos, suas perdas, seus esforços, suas retomadas: o nó que é preciso fazer-desfazer, o filamento que é necessário ainda e ainda criar: com suas tenacidades e impulsos rítmicos: a massa de aço sacudida no braço de uma grua para bater contra o rochedo, movimento repetitivo que Yves precisa acompanhar, imperiosa necessidade, de um balançar reconciliado de torso, com suas alegrias: a estatueta feminina que convoca a carícia, a posição de sentido à margem do caminho...

Se o objeto do filme é mesmo desamarrar o que de hábito está amarrado, laços, encordoamentos, filamentos, relatos, situações, ficções, Yves a tudo isso se recusa, ou tudo isso a Yves se recusa, e assim como há o mal a atar os laços de seus calçados de fugitivo, por contágio significante todos os fios se desatam ou se atam de forma imprevisível, os fios do destino, da história, do sentido: restam desfeitos, flutuantes, em suspenso. A fuga de Yves alia no mesmo gesto duas figuras contraditórias, repetição e suspensão. Com a doce paciência dos obstinados, Yves retorna sobre o motivo, ata e desata, amarra e desamarra, tira e retira; a mesma força que lança a operação de percepção, de atamento, de condução – a operação do relato e do sentido – é aquela que a interrompe, suspende, antes de novamente lançá-la, seguindo longas cenas que não contém em si mesmas nem começo, nem fim, nem progressão ou dramaturgia, que são cenas expostas, nada além, nada menos.

O relato da fuga foge de si mesmo pela força da repetição. Esta figura geral da repetição é sem dúvida o que o cinema tem mais dificuldade em lidar: quando o cinema se confrontou, por exemplo, com a repetição dos gestos do trabalho mecânico, era para desviá-los em ritmo e coreografia (O Homem com a Câmera) ou desregulá-los em burlesco (Os Tempos Modernos⁵). Mas a repetição nada faz além de esgotar o relato (qualquer relato): ela é uma violência feita contra o funcionamento – se assim posso dizer – orgânico do cinema. Os fotogramas de uma cena, um plano, podem mesmo repetir-se, que esta repetição é anulada pelo movimento mesmo do filme, que é movido (inexoravelmente) pelo motor de uma câmera registrando menos as imagens que duram que o tempo que passa: a câmera é primeiramente um relógio. Não há “plano fixo” no cinema, não há sequer “mesmo”: cada vigésima-quarta parte de segundo separa-se de seus vizinhos, opõe-se a eles, esvanece e anula o fragmento que o precede no movimento mesmo de prolongá-lo. Se o cinema é movimento, a repetição é sua inimiga: a volta de Yves sobre seus rastros, o refazer do menor de seus gestos, o recomeço infatigável, a duração sem termo, o espaço sem fechamento, tudo que advém da posição de Yves no mundo constrange o filme Le Moindre Geste a jogar contra a lei orgânica do cinema, a fazer cinema contra o cinema.

Deligny, a fim de reconduzir a palavra ao objeto, à câmera, à caixa, não dizia “filmar” mas “câmerar”: “Câmerar é talvez pôr na câmera, na caixa, os fulgores humanos e tudo que aos mesmos possa remeter, dos Homens comuns, dos fulgores". Fulgores, precisamente, fulgores corporais que possam ser encaixotados e tudo que também pode não sê-lo: a liberdade que define o jogo do corpo de Yves é mesmo arriscar-se a não mais estar no filme, de escapar ao enquadramento, de sair do campo. Ameaça de evasão ao enquadramento das imagens.

Considerado pela psiquiatria como um “débil profundo”, Yves é figurado pela câmera-Deligny sobretudo como um corpo que desafia o quadro no momento mesmo no qual se expõe. No mesmo movimento o quadro⁶ cinematográfico voltar-se-ia a um aprisionamento dos corpos filmados (o retângulo luminoso é o exato correspondente da caixa negra) e a ficção seria reconduzida a um projeto no qual o cinema seria o prisioneiro principal. Yves escapa simultaneamente ao quadro e ao projeto. Nem Yves nem a câmera-Deligny, e menos ainda o espectador do filme, podem saber onde, quando ou como será filmado, emoldurado, enquadrado, aprisionado no quadro, no relato, no sentido. A cada instante sinto como esta instável figura de equilíbrio que chamamos “quadro” está à beira de oscilar. Estimulante paradoxo, Yves é simultaneamente centro de gravidade e passo em falso da imagem, ele preenche o campo com seu corpo monumental, mas na iminência também de uma passagem ao extra-campo que seria o fim do filme. Apoteose do documentário, triunfo do cinema na exposição mesma de sua fragilidade, na proximidade de sua perda. Não é o quadro que enquadra o corpo, mas o corpo que des-enquadra o quadro, fazendo-o flutuar ao redor de si, cancelando-o; os corpos filmados ameaçam o quadro, violentam-no, derrotam-no, perdem-no no caminho. É assim que o cinema vive nesse filme: em vias de se desfazer, como uma arte de limites que exercer-se-ia, da maneira mais humilde (o menor gesto), postando-se em seus limites como arte.

Filmar o que não será. Filmar o que não pode ser filmado, mostrar o que filmado não será filme. Finais, fragmentos, talos, o que se ata (mal), o que se cancela, se foge. O que flui e o que detém o que flui. Evasão é o motivo. O buraco, a pedra, o riacho apoderam-se desse motivo e assumem sua duração que vem de antes do cinema. Nada resta desse motivo além de alguns farrapos flutuantes de relato, lá e cá, atados e desatados, ligados e desligados. Antes, antes do cinema, havia os corpos e havia o mundo, antes, antes da linguagem, havia os corpos e havia o mundo: o mundo nesse filme parece transbordar por todas as partes o que esse filme manifesta; ele se dá cinematograficamente, esse é o paradoxo, como o que excede o filme mesmo que o representa, ele é o que resiste ao cinema que lhe dá forma.

O  registro, a fita, o fio, o que liga, o que se desenrola, o que tensiona, o que ata: eis o fio do filme no filme. O filme sabe que há um filme. Mas Yves? Esse que é filmado e que faz com que haja um filme; podemos imaginar sem delírio que o filmado é aqui quem filma. Se é verdade (mas eu não poderia sabê-lo) que Yves não sabe o que é cinema, e por isso ele se opõe ao cinema, Yves sabe bem, em revanche, que o mundo é feito de ruídos e palavras, de gritos e silêncios, de ondas e choques sonoros: por um lado, o corpo filmado de Yves abre o cinema para uma arqueologia da imagem, uma imagem anterior às palavras para dizê-la, por outro lado, Yves não é surdo e seu cinema não é mudo: o mundo da linguagem, o mundo histórico, nosso mundo em suma, entram no filme através de sua voz (outra instância de seu corpo): um discurso antes de tudo constituído de citações, rusgas, ordens e arengas de nosso mundo. Rádio-asilo, rádio-prisão, rádio-armado. Assim, a não-história e a história se conjugam; não há o relato, mas relato, os  fios que se desatam na imagem se atam no som. Sobretudo, a alteridade radical do corpo filmado de Yves (alteridade dupla: na medida em que ele é incomparável com nosso corpo e na medida em que ela não se deixa reduzir pelo cinema) combina-se estranhamente com uma familiaridade nascida do que a observação feita por Yves exibe de nosso ritornelos⁷ políticos e disciplinares nos identificam, dessa vez, que somos do mesmo mundo histórico  que ele; e o que advém é que esta identificação forçada nos prende e nos coloca com ele, a seu lado, que é e não é o nosso. ldentificação que nos torna companheiros de rota do extraviado, louco. O fugitivo torna-se aquele através do qual deslizamos em uma outra dimensão da evasão – esta de um arrancar para fora de nossos próprios corpos, de um gozo da velocidade e da transgressão, de uma distância definitiva tomada diante da face repressiva de nossas linguagens e nossos gestos.

Currículo

Jean-Louis Comolli

Escritor e diretor de cinema francês. Foi editor-chefe da Cahiers du cinéma de 1966 a 1978, publicou, entre outros, Ver e Poder - A Inocência Perdida: Cinema, Televisão, Ficção, Documentário (UFMG, 2006).

Como citar este artigo

COMOLLI, Jean-Louis. O último fugitivo. In: forumdoc.bh.2001: 5º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia, cinema e vídeo. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2000. p. 127-130.

Notas

1. “Evasion” designa em francês tanto fuga quanto distração, divertimento. Nas ocorrências tanto da palavra “evasão” quanto “fuga” essa duplicidade de sentido deve ser  mantida em mente.

2. Traduzimos “récit” por “relato”. Tal palavra pode designar  narrativa (ou narração), relato, anedota, enredo, estória, conto, relatório, entre outras traduções possíveis. Optamos por “relato” em vez do usual “narrativa (ou narração)” já que a expressão que empregamos pode ser dotada de menor comprometimento quanto à acepções de totalidade e organicidade.

3. Traduzimos “devenir” por “vir-a-ser”. “Devenir” pode indicar devir transformação, devir. Optamos pela expressão composta a fim de preservar o sentido forte – técnico – da expressão, que não ocorreria caso escolhêssemos “transformar-se”; e por indicar mudança com objetivo projetado, o que não ocorreria com “devir”.

4. Traduzimos aqui o título do filme, Le Moindre Geste, a fim de preservarmos o jogo de palavras constante no original. Sempre que, no texto, escrever-se “menor gesto” em itálico e minúsculas, indicará o título do filme.

5. São Dziga Vertov e Charles Chaplin os diretores dos filmes mencionados, respectivamente.

6. “Cadre” designa, para além de seu sentido técnico-fílmico, limite estabelecido, traçado.

7. Em francês, “ritournelles”, palavra de acepção originariamente musicológica, – designa a repetição de  uma  parte qualquer de uma peça, foi largamente utilizada como conceito filosófico, já com outra acepção – por Gilles Deleuze. Ver DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é a Filosofia. Rio de Janeiro: 34 Letras, 1997.