Queer e a Câmera

Para a Jupira e o Rubinho,

pelos 20 anos de forumdoc,

e um beijo para as travestis.

Em 2011 o 15º forumdoc.bh apresentou aquela que seria a primeira mostra/seminário de um ciclo que seguimos chamando de “cinemas e alteridades”. “O animal e a câmera”¹ explorou diferentes discursos, mediados ou não pela câmera, os quais ora reafirmavam, ora questionavam o que Bruno Latour chamou de Constituição Moderna, uma separação radical do mundo natural e do mundo social caracterizada por um humanismo exacerbado. A proposta foi a de acalorar o debate transdisciplinar e transespecífico sobre o animal, bem como deslocar os enquadramentos antropológicos e cinematográficos convencionais acerca dessa relação.

Já em 2012, a intenção foi a de discutir e apresentar uma filmografia de assinatura feminina. A mostra/seminário “A mulher e a câmera”,² segundo Carla Maia e Cláudia Mesquita, focou na diferença como potência, seja para saudar a diversidade formal e temática dos filmes apresentados, seja para atualizar, “sempre com renovado interesse, [...] um mundo com alteridade: a mulher, o animal, vêm assim ocupar o lugar de um Outro que desestabiliza os padrões de um certo pensamento ocidental formulado e orientado por uma maioria de homens, adultos, brancos, cidadãos, como escrevem Deleuze e Guattari” (2012, p. 41). Ao fim e ao cabo, assistimos a uma mostra/seminário extremamente politizada que revelou um desejo patente na filmografia apresentada de não ceder à imobilidade à qual os corpos femininos são relegados quando lhes são atribuídas forma e agência predeterminadas.

No ano de 2013, fomos surpreendidos por uma multidão que tomou conta das ruas em diferentes partes do país, em torno das bandeiras mais diversas: a favor do transporte público, contra a corrupção, pela melhoria da educação pública... Não demorou para que essas manifestações fossem violentamente reprimidas pelo Estado, que, juntamente com a mídia convencional, trataram de construir uma imagem extremamente negativa desses protestos, focada na “demonização” dos manifestantes, chamados de “baderneiros”, “vândalos”, “blackblocks”. Em contrapartida, o movimento denominado de midialivrismo tomou a tarefa de desmontar e desmascarar as notícias veiculadas pela mídia tradicional. Tendo como pano de fundo as manifestações de junho de 2013, o 17º forumdoc.bh propôs a mostra/seminário “O inimigo e a câmera”. Nas palavras de Ruben Caixeta, “enfrentamos um tema ainda mais espinhoso: filmar o inimigo, ainda que para combatê-lo” (2013, p. 79)³.

Dando continuidade ao ciclo “Cinemas e alteridades” e ao deslocamento dos campos de enunciação e representação convencionais focados em corpos masculinos, brancos, heteronormativos e estatais – campos que, além de promoverem a naturalização de códigos sociais e sexuais, eclipsam e acabam por invisibilizar, quando não inviabilizar, tudo o que neles não se enquadra, toda diferença, toda diversidade –, é, portanto, com grande satisfação que, no ano em que comemoramos seus 20 anos de existência, o forumdoc.bh.2016 anuncia que “sai do armário” com a apresentação da mostra/seminário “Queer e a câmera”, que celebra a diversidade do cinema e da cultura queer.

Queer é uma palavra que originalmente se apresenta ora como um adjetivo, ora como um substantivo. Segundo o Oxford Living Dictionaries (https://en.oxforddictionaries.com/definition/queer) a palavra quer, de origem alemã, data do início do século XVI, e seu significado seria correlato ao das palavras “oblíquo” e “perverso”; contudo, o próprio dicionário adverte que tal origem is doutful, incerta. Já no site da University of Pittsburg, na homepage Keywords Project (http://keywords.pitt.edu/keywords_defined/queer.html), ao consultarmos a palavra-chave queer, somos informados de que o Oxford English Dictionary (OED) data de 1513 os primeiros registros da palavra, com o sentido de “estranho”, “esquisito”, “excêntrico”. Outro registro dessa mesma época refere-se a John Bale, que teria escrito crônicas em 1550 que “contayne more truthe than their quere legends” – sendo quere entendido como oposto da verdade. Outro significado teria sido agregado já em 1567, quando o adjetivo queer assume contornos pessoais e passa a caracterizar uma pessoa “má”, “desprezível”, “inútil”, “indigna de confiança”, “de má reputação”, sendo os alvos preferenciais, nesse primeiro momento, vagabundos e criminosos. “Strange queer” e “bad queer” parecem ter pontuado os primeiros usos documentados dessa palavra na língua inglesa.

Teria sido somente no início do século XX que a palavra queer seria completamente capturada por uma amarra sexista, sendo diretamente relacionada à homossexualidade, às pessoas e comportamentos homossexuais, por oposição à heteronormatividade vigente. Ainda segundo o OED, uma das primeiras formulações sexistas do queer teria sido feita pelo The Los Angeles Times em 1914, quando um jornalista descreveu um clube ou bar gay como “composto por pessoas queer (queer people)”, um lugar onde “as queer se divertem”. Em 1915, o novelista e jornalista Enoch A. Bebbet faria a seguinte afirmação igualmente inaugural: “Uma imensa reunião de estudantes de arte, pintores e pessoas queer (queer people). Meninas em trajes masculinos, danças estranhas (queer dancing), etc...”. Oscilando entre o sexo e o temperamento, para aludirmos ao título de um dos livros de Margareth Mead (1935), tomamos alguns exemplos daquelas que parecem ter sido as primeiras formulações registradas da palavra queer (outras formulações inaugurais certamente existirão...), a fim de criar um contexto para a apresentação de nossa mostra/seminário.

Segue-se daí a articulação sexista e preconceituosa que, num primeiro momento, parece ter sido associada a homens e comunidades gays para, em seguida, sobretudo nos anos 1960, ser generalizada, passando a se referir tanto a homens quanto a mulheres homossexuais, bem como drags queens, travestis, transexuais, entre outras identidades e práticas sexuais dissidentes. A associação queer = homossexual foi pejorativa e preconceituosa, valendo lembrar que, nos EUA dos anos 1960, “atos homossexuais” eram ilegais em quase todos os estados americanos. Pessoas negras e homossexuais eram frequentemente agredidas e tinham seus direitos desrespeitados, quando não eram sumariamente assassinadas. Condutas que não se adequavam aos códigos heteronormativos da sociedade branca norte-americana poderiam ser criminalizadas, e frequentemente o eram, sob a acusação de estarem supostamente violando os princípios morais. Por outro lado, do ponto de vista da ciência, a homossexualidade era entendida como uma doença mental, um comportamento antinatural, obsceno e imoral que deveria ser combatido à base de muita medicação e tortura física, por intermédio de terapias cujo objetivo era, de antemão, o de “convencer” o “doente” a se curar, i.e., a ser, novamente, heterossexual, ainda que recorrendo a procedimentos como internação forçada, medicalização excessiva e experimentações terapêuticas de todo tipo, como lobotomização, castração, choques elétricos, entre outros.

Ilustrativa é uma fala do moralista de Estado John Sorenson, de Dade County (Flórida), que nos anos 1960 era membro da Divisão de Princípios Morais para Menores. Em imagens de arquivo de um documentário televisivo, John, em uma palestra para estudantes adolescentes em um auditório abarrotado (cena que lembra outra, do filme High School, de Fredrick Wiseman, 1969), afirma com o dedo riste e em tom ameaçador que “1/3 de vocês [adolescentes] irão se tornar queer [...] se pegarmos vocês com um homossexual, contaremos primeiro aos seus pais. E serão pegos. Não pensem que não. Não há como se safar disso. Se não forem pegos por nós serão pegos por vocês mesmos, e o resto da vida de vocês será um inferno”. Como denuncia o ativista John O’Brien, até a Revolta de Stonnewall, à qual voltaremos posteriormente neste texto, “éramos (os gays) caçados. Podiam facilmente brincar de nos caçar”⁴.

Esse breve histórico estadunidense do queer nos mostra que a palavra foi aos poucos sendo carregada por um sentido fortemente discriminatório; a diferença é vista como um elemento perturbador da ordem heteronormativa, justificando assim sua sujeição, seja através da criminalização do comportamento desviante, seja através de seu enquadramento patologizante.

Se, por um lado, durante a primeira metade do século XX, o vocábulo queer esteve limitado a uma categoria discriminatória de cunho ofensivo, houve um momento, uma época, um contexto, no qual esse dispositivo de dominação heteronormativo foi contestado, enfrentado. O objetivo é então, parafraseando uma formulação de Viveiros de Castro a respeito do contexto ameríndio no Brasil (2008, p. 140-141), o de converter, reverter ou perverter o dispositivo de sujeição armado pela sociedade heteronormativa de modo a torná-lo dispositivo de subjetivação, deixar de sofrer a “queeridade/queerness” e passar a gozá-la. Arriscaria dizer que o acontecimento conhecido como “Revolta de Stonewall” foi um dos momentos paradigmáticos de ab-reação queer, um verdadeiro tour-de- force – “we are queer, we are here”⁵.

Stonewall Inn era o nome de um dos diversos bares gays de Nova York nos anos 1960. Localizado na badalada zona de Greenwich Village, conhecida simplesmente como “the Village”, bairro lendário do baixo Manhattan, o Stonewall era, como a maioria dos bares gays e lésbicos da cidade, mantido pela máfia. O lucro exorbitante desses bares advinha do fato de não pagarem impostos, além de “batizarem” suas bebidas de diferentes maneiras... Como denunciou um grafite de rua da época: “Banir os gays corrompe a polícia e alimenta a máfia”.

Em novembro de 1969 haveria novas eleições, e o prefeito de Nova York, em franca campanha, havia reforçado a repressão a localidades e bares gays. Nessa época cartazes foram publicizados com os dizeres: “Police open drive to clear ‘Village’ and Time Sq. Area”. Na noite do dia 27 de junho, o bar Stonewall foi invadido pela segunda vez na semana, com o objetivo de sempre: receber propina dos donos do bar e humilhar seus frequentadores, prendendo um ou outro, submetendo-os à humilhação pública e a processos criminais.

Só que dessa vez foi diferente: diante da invasão, uma energia tomou conta dos presentes, que se rebelaram. Estavam de saco cheio de não serem respeitados nem mesmo nesses “antros” que lhes foram reservados. As drag queens presentes parecem ter tido um protagonismo importante no início dessa resistência, embora o mais notável tenha sido a junção/união de diferentes pessoas queer. Em pouco tempo, conta-se, uma multidão se concentrou do lado de fora do Stonewall, enquanto um grupo de policiais armados e nervosos impedia os presentes de saírem do recinto. Reforço policial foi chamado para o local, mas a multidão queer que se avolumou do lado de fora cercou os policiais que chegavam pela rua. Conta-se que os “revoltados” gritavam contra os policiais: “Pigs! Pigs! Pigs!” e lançavam moedas em sua direção, sugerindo que não valiam nada. Também ironizavam dizendo aos policiais que tinham traseiros gostosos. Pela primeira vez, conta John O’Brien, “a polícia se deparou com algo inédito, gays, que não deveriam ameaçar os policiais, que deveriam ser homens fracos, maricas incapazes de fazer qualquer coisa, estavam agora levantando objetos, enfrentando, atacando, batendo” (como brothers and sisters). Naquela noite o Stonewall foi completamente destruído, policiais e civis se feriram; foi a primeira vez que uma multidão de pessoas queer se uniu contra o Estado e, incitadas a lutar, iniciaram uma série de ações políticas que iriam mudar sobremaneira a história do movimento gay e lésbico, bem como o modo como a sociedade americana legisla sobre corpos não heteronormativos.

Em 28 de junho de 1970, cerca de um ano após a “Revolta de Stonewall”, uma série de “protest marchs” acontecem em diferentes partes dos Estados Unidos. A Gay Liberation Day March & Gay-In, posteriormente conhecida como Parada do Orgulho Gay (Gay Pride), reuniu em Nova York milhares de pessoas que, pela primeira vez, em multidão, marcharam unidas, muitas em lágrimas e com medo de serem expostas e perseguidas mais uma vez, reivindicando direitos legais específicos e celebrando o orgulho de serem o que são, gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros – os queer estavam ali expostos e visíveis no espaço público da cidade e dali não sairiam nunca mais.

Esse é o pano de fundo, o contexto que nos dará uma pista e uma linha de fuga para o estabelecimento de conexões parciais entre queer e o cinema, seja a partir de “personagens/pessoas queer” que atuam para a câmera de diferentes cineastas, seja a partir de um cinema/filmografia do início dos anos 1990 que, apesar de diverso em diferentes aspectos, foi rotulado de New Cinema Queer em artigo seminal de mesmo nome de B. Ruby Rich publicado na revista britânica Sight & Sound (1992)⁶, tendo influenciado toda uma nova voga de críticos e realizadores de filmes em diferentes formatos que experimentam e inovam na linguagem cinematográfica/videográfica, a partir de ou em relação com várias/diferentes/ diversas perspectivas queer.Queer e a câmera” apresenta uma seleção de 24 obras, oito longas e dezesseis curtas e médias metragens, nacionais e internacionais, produzidas entre os anos de 1967 e 2016.

Lucas Bettim, de forma retrospectiva, propõe a alcunha de Old Queer Cinema, “cujo cânone abrigaria as obras anteriores que teriam sedimentado o terreno para aquele novo cinema [New Queer Cinema]”. Ainda segundo o autor, “é possível apontar, ao longo da história cinematográfica, representações de identidades sexuais estranhas ao padrão heterossexual. No cinema narrativo clássico de Hollywood, tais representações foram predominantemente forjadas a partir de um viés conservador heteronormativo, servindo como suporte a fim de reafirmar culturalmente a superioridade masculina e a rigidez das dicotomias homem/mulher – hétero/homo. [...] a imagem do homossexual calcada em estereótipos que transitavam entre o risível e o obscuro” (2015, p. 108).

Contudo, foi, ainda de acordo com Lucas Bettim, o cinema underground norte-americano a partir do final dos anos 1950, assinado por autores como Kenneth Anger, Jack Smith, Andy Wahrol e Paul Morrissey, o responsável por colocar o pé na porta do cinema convencional de “viés conservador heteronormativo”, apresentando uma filmografia experimental “que explorava sem pudor o corpo masculino, personagens transgêneros, drogas e sexo” (2015, p. 109).

Como em todo trabalho curatorial de uma mostra cinematográfica, enfrentamos problemas para localizar obras raras, além de falta de recursos para o pagamento de direitos de exibição, entre outros custos de produção, sem falar no espaço limitado na grade de filmes... A impressão é a de que vários filmes ficaram de fora. Apesar disso, as obras selecionadas para compor a mostra/seminário “Queer e a câmera” esboçam um panorama instigante das relações entre o queer e o cinema.

O filme que abre a mostra pode ser identificado como um exemplar do Old Queer Cinema, apesar de não constar entre os filmes listados por Lucas Bettim. Portrait of Jason (1968), da cineasta norte-americana Shirley Clarke – exibido pela segunda vez no forumdoc.bh⁷ –, é sem dúvida uma obra sensacional, a figurar no topo de uma filmografia sobre a (personagem) queer no cinema. Filmado durante uma noite e um dia de inverno de 1966 no apartamento do Chelsea Hotel onde Shirley Clarke morava, o documentário é atravessado e focado no corpo negro e homossexual do amigo Jason Holliday (a/k/a Aaron Payne), única pessoa em cena durante todo o filme. Precursor no estilo do cinema direto norte-americano, o filme é editado a partir de doze horas de material bruto da mise-en-scène alternante de Jason, que bebe, fuma, canta, cai, debocha, dá gargalhadas e por vezes se cala, fundindo elementos cômicos e trágicos, bem como confundindo, tornando indiscerníveis, o que é genuinamente documental e o que é performance – nas palavras oscilantes e melódicas de Jason, “is all performance, giiiiirrrls!”. Temas como racismo, homofobia, pobreza, trabalho, prostituição, submissão, performance, cinema, questões de gênero e sexualidade, bem como aspectos do que mais tarde será chamado de cultura queer, são narrados pela presença dramática e contumaz de um negro gay afro-americano diante da câmera de sua amiga, uma cineasta branca de origem judaico-polonesa (seus pais eram riquíssimos), em um momento, como já notado, em que leis antissodomia, anti-homossexuais e antiprostituição eram vigentes em grande parte dos Estados Unidos. Jason Holiday é um dos personagens icônicos do Old Queer Cinema, e seu lugar na história do cinema queer deve ser reservado.

O segundo filme da mostra, além de ter sido realizado em vídeo digital, traz elementos importantes para algumas conexões parciais entre o feminismo e o cinema queer. She has a beard (1975), média-metragem dirigido por Rita Moreira e Norma Bahia Pontes, trata da “política das aparências” no contexto do Women’s Movement em Nova York. Apesar de realizado no formato vídeo, a linguagem do filme segue o estilo cinema verité de viés sociológico. No filme, Hope Forest desempenha o papel de uma entrevistadora que, exibindo um bigode natural em seu buço, nem um pouco convencional no papel de gênero reservado às norte-americanas, conversa com mulheres das mais diferentes idades sobre pelos faciais femininos, que, visíveis no rosto da entrevistadora, mobilizam uma série de impressões contraditórias nas entrevistadas sobre a regulação do corpo feminino. A partir do tema aparentemente banal e sem importância da visibilidade de pelos faciais femininos, o resultado dessa “proposição do bigode” é surpreendentemente queer.

Em 1986, quando o vírus HIV (sigla em inglês do Vírus da Imunodeficiência Humana) foi oficialmente descoberto, a comunidade LGBT, mas não somente ela, já havia sentido intensamente o horror de milhares de mortes causadas pela AIDS (sigla em inglês da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). Os primeiros casos dessa nova doença, que atacava diretamente o sistema imunológico, ocorreram no final da década de 1970. Num primeiro momento, a maioria dos casos notificados ocorreram nos EUA. Para se ter uma ideia, em 1987 a WHO (World Health Organisation) estima que de 5 a 10 milhões de pessoas viviam com o vírus HIV no mundo, sendo que, em dezembro do mesmo ano, dos 71.751 casos notificados, 47.022 foram nos EUA. No Brasil, o primeiro caso aparece em 1980 com um homem em São Paulo; em 1983, é notificado o primeiro caso de uma mulher doente; em 1987, 2.775 casos já haviam sidos registrados em todo o país. Vale lembrar que somente em 1987 a FDA aprovaria o primeiro antirretroviral, conhecido como AZT, iniciando assim uma nova fase no tratamento da AIDS⁸.

DHPG Mon Amour (1984), do diretor Carl Michael George, curta filmado em super 8, é um retrato íntimo do casal soropositivo David Conover e Joe Wash e da lida com os primeiros tratamentos com a droga DHPG na luta contra a AIDS, antes mesmo de o vírus HIV ter sido indicado oficialmente como a causa da doença. Questões relacionadas à ciência, à política e à autodeterminação dos corpos infectados e doentes são tematizadas de forma contundente e inédita. DHPG Mon Amour é um dos curtas mais incômodos da mostra, sobre um período de intensas transformações no desenvolvimento de drogas e tratamentos, que, mais que nos informar, nos faz sentir e pensar sobre esse trágico período de descoberta de uma doença até então completamente desconhecida.

A década de 1990 foi completamente impactada pela epidemia AIDS/ HIV, que se espalhou pelo mundo na década anterior. A imagem, bem como a existência, de homossexuais, transgêneros e pessoas queer (até essa época percebemos uma sinonímia entre queer, homossexuais e transgêneros em geral), fora posta em cheque e, como se sabe, uma grande onda de preconceito e discriminação contra pessoas que não eram heterossexuais se formou. Logo a comunidade LGBT foi taxada como o principal “grupo de risco”⁹ na contaminação e transmissão do HIV, como se a causa da doença e, consequentemente, a responsabilidade sobre ela fosse exclusivamente dos homossexuais.

Roger Hallas afirma que “os corpos homossexuais foram expostos como uma ameaça traumatizante ao público em geral, enquanto vidas queer traumatizadas não eram levadas em conta” (apud YANN BEAUVAIS, 2015, p. 68). Esse ataque frontal ao movimento e às pessoas queer/LGBT foi tão pesado que parte do movimento, com grande repercussão na cena cinematográfica da época, levou um tempo para se recompor e traçar estratégias de luta em favor de avanços nas pesquisas e nos tratamentos públicos para pessoas infectadas com HIV/AIDS, bem como cavar um modo de dar visibilidade, reivindicar direitos e combater o preconceito em relação às pessoas que vivem com HIV/AIDS. Segundo Yann Beauvais, nas décadas de 1980 e 1990 “na mídia a aids não era visível” (2015, p. 69). O campo das artes, do cinema, do vídeo e da música terá aí um papel fundamental, tendo a AIDS influenciado profundamente, como sugere a exposição Art Aids America do The Bronx Musem of Arts (2016), a arte e a cultura americanas. Imagino que essa é uma tese a ser avaliada em todo o mundo. No caso do cinema queer, especificamente, o impacto da AIDS foi dilacerante.

Ruby Rich, uma crítica de cinema norte-americana, no ano de 1992, após realizar uma turnê no ano anterior em alguns dos principais festivais de cinema do mundo – Festival dos Festivais de Toronto (Canadá)¹⁰, Festival de Cinema Gay e Lésbico de Amsterdã (Holanda), Sundance em Park City, Utah (EUA), Festival de Cinema Gay e Lésbico de São Francisco (EUA), entre outros –, publica um ensaio, já citado anteriormente, que entrará para a história do cinema ao caracterizar um fenômeno nomeado por ela de New Queer Cinema. Tal fenômeno teria se iniciado no outono de 1991 no Festival de Toronto, no Canadá. Segundo Rich, “naquela ocasião, repentinamente havia um conjunto de filmes fazendo algo novo, renegociando subjetividades, anexando gêneros inteiros, revisando histórias em suas imagens. Ao longo de todo inverno, da primavera e do verão, a mensagem foi alta e clara: queer é sexy” (1992, p. 18).

No artigo “New Queer Cinema”, Rich apresenta uma bela síntese a respeito dessa nova voga do cinema e do vídeo que se condensa no início dos anos 1990. Segundo a autora,

é claro que os novos filmes e vídeos queer não são todos um só e tampouco compartilham um único vocabulário estético, estratégia ou preocupação. Ainda assim, eles são unidos por um estilo comum: chamaremos de “HomoPomo”. Há traços em todos esses filmes de apropriação, pastiche e de ironia, assim como uma reelaboração da história que leva sempre em consideração um construtivismo social. Definitivamente rompendo com abordagens humanistas antigas e com filmes e fitas que acompanham políticas de identidade, essas obras são irreverentes, enérgicas, alternadamente minimalistas e excessivas. Acima de tudo, elas são cheias de prazer. Elas estão aqui, elas são queer, acostume seus quadris a elas. (RICH, 1992, p. 20)

Dentre a dezenas de diretores e diretoras abarcados por Rich sob a alcunha de New Queer Cinema, apresentaremos, na mostra/seminário “Queer e a câmera”, um conjunto de obras realizadas nesse período, um arco que vai de Sadie Benning a Dereck Jarman, passando por Bruce LaBruce, Marlon Riggs, Jennie Livingston e o pessoal do Queer Nation. Jollies (1990), de Sadie Benning, é o curta-metragem mais experimental dessa leva. Realizado com uma câmera Pixelvision da marca de brinquedos Fisher-Price e com um custo bem reduzido, Jollies é um dos diversos vídeos realizados por Benning aos dezoito anos de idade que tem como um dos traços a experimentação de sua sexualidade lésbica e da linguagem cinematográfica por intermédio de uma câmera de brinquedo. Nas palavras de Rich, “Benning fez um Retrato da Artista Jovem Sapatão como nunca antes havíamos visto” (1992 p. 28).

Um dos aspectos latentes dessa filmografia queer da passagem dos anos 1980 para os 1990 diz respeito à questão racial, às especificidades e diferenças internas da queerness negra ou negritude queer. Louise Wallenberg sugere inclusive o nome de New Queer Cinema Negro para experiências que realizadores gays negros vinham realizando nesse campo, tendo como questão comum “como tornar visível a queerness masculina negra e sua pluralidade, a busca por pais fundadores e a expressão de uma voz própria” (WALLENBERG, 2015, p. 89).

Tongues Untied (1989), do realizador negro Marlon Riggs, é um dos primeiros documentários a tratar de forma direta a diversidade das experiências queer entre negros norte-americanos, uma espécie de bricouleur da cultura americana do ponto de vista dos gays e lésbicas negros. Na mesma direção se apresenta Paris is burning (1991), de Jennie Livingston, que, apesar de não ser uma realizadora negra nem latina, soube captar como ninguém a cena dos Ballroom de Nova York no final dos anos 1980, performada por afro e latino-americanos. Para Judith Butler, Paris is Burning é um filme exemplar em diferentes aspectos, mas sobretudo por abrir uma distância “entre aquele apelo hegemônico pela normatização do gênero e suas apropriações críticas”.

No verão de 1991, militantes gays ativistas da ACT UP, da sigla AIDS Coallition to Unleash Power (Coalizão da AIDS pelo Empoderamento), um coletivo internacional de ação direta em defesa das pessoas que vivem com HIV/AIDS, circularam durante a Parada Gay de Nova York o Manifesto QUEER NATION, um petardo direcionado às irmãs e irmãos queer, mas sobretudo ao seu pior inimigo, os heterossexuais. O estilo do manifesto é complexo e alterna diferentes vozes em sua enunciação, que não raras vezes se centra sobre o significado da assunção e visibilidade queer.

Ser queer não é sobre um direito à privacidade; é sobre a liberdade de ser público, de simplesmente sermos quem somos. Significa enfrentar a opressão diariamente: homofobia, racismo, misoginia, a intolerância dos hipócritas religiosos e o nosso próprio desprezo. (Fomos cuidadosamente ensinadas a odiar a nós mesmas). E agora, é claro, significa combater um vírus também, e todos aqueles homofóbicos que estão usando a AIDS para nos varrer da face da terra. Ser queer significa levar um outro tipo de vida. Não é sobre o mainstream, margens de lucro, patriotismo, patriarcado ou sobre ser assimilado. Não é sobre diretores executivos, privilégio e elitismo. É sobre estar nas margens, definindo nós mesmas; é sobre desfazer gênero e segredos, sobre o que está abaixo do cinto e, profundo, dentro do coração. É sobre a noite. Ser queer é ser “local” porque sabemos que cada uma de nós, cada corpo, cada gozo, cada coração e cu e pau é um mundo de prazeres esperando para serem explorados. Cada uma de nós é um mundo de possibilidades infinitas¹¹.

A organização QUEER NATION, cuja ação política, de curta duração, visava a eliminação da homofobia, entre outros temas de interesse de pessoas LGBT/Queer, privilegiou as artes e diferentes mídias (forte característica do ativismo queer desde então) como meio de criar visibilidade para as pessoas queer, bem como demarcar territórios e marcar presença nos espaços políticos e públicos. O curta-metragem Why we fight (1991), produzido por Gabriel Gomez e Elspeth Kydd, é um exemplo das ações do QUEER NATION, que também assina a obra. A sequência inicial é fenomenal, e o filme se desenrola em um clima de entrevista nem um pouco convencional, em torno de uma pergunta que é a toda hora repetida para todo tipo de queer presente numa festa beneficente para o QUEER NATION de Chicago. “O que é o amor?”, indaga a entrevistadora, no estilo direto, “direto da boate”, às suas entrevistadas, que respondem de diferentes maneiras e mise-en-scènes.

Nem tanto o amor, mas algo mais queercore é que vai caracterizar o primeiro longa-metragem do polêmico cineasta canadense Bruce LaBruce. No skin of my ass (1991) foi realizado em super 8 e apresenta uma estética precária que condiz com sua ambience pós-punk. Para João Ferreira, o filme “é a materialização em tela do imaginário desenvolvido na Juvenile Deliquents [fanzine] e outras manifestações do Queercore. Numa estética rudimentar e em preto e branco, LaBruce explora e subverte um dos símbolos máximos da homofobia: “o skinhead”. E João Ferreira conclui de forma mordaz: “Ao passo que o activismo LGBT procura nomear o seu inimigo, LaBruce mete-se literalmente na cama com ele” (2014, p. 50).

A tensão Queer/LGBT¹² se faz evidente, e um dos aspectos centrais das pragmáticas queer pós-anos 1990 relaciona-se a uma crítica, por vezes debochada, das representações, teorias, associações e políticas identitárias de gêneros estanques construídos a partir e em referência ao binarismo gay/hétero em favor de formas expressivas, não necessariamente identitárias, mas fluídas e contraditórias, não raro fora da norma.

O inglês Derek Jarman talvez seja um dos nomes de maior destaque do cinema queer britânico e mundial. Tendo se aproximado das primeiras reuniões do Gay Liberation Front em 1971 em Londres, Derek teria se afastado definitivamente das associações políticas para assumir o vasto campo das artes como sua zona de expressão. No caso do cinema, experimentou diferentes suportes, primeiro em super 8 e depois em outros formatos, inclusive em 35mm. Blue (1993) é seu último filme e para muitos o mais radical. Jarman, doente e já no estágio final da AIDS, com sérios problemas de perda de visão, escreve um dos textos mais belos, impactantes e eloquentes do gênero ensaístico do cinema sob e sobre o impacto da AIDS em sua vida e na de seus amigos, mortos em virtude de complicações decorrentes da AIDS. David, Howard, Graham, Terry, Paul, são repetidamente lembrados no texto, que avisa que o “amor é vida que dura eternamente. As memórias de meu coração voltam para vocês”. Outra característica radical do filme está em sua forma; o filme é apresentado em um único bloco de cor azul (em referência ao artista Yves Klein). Jarman lê o texto repleto de citações e intercalado com sons, barulhos, músicas, a voz de uma mulher que também recita um texto, todos de forma alternada, compondo a banda sonora. O resultado é arrebatador. “O azul protege o branco da inocência. O azul brilha atrás do preto. Blue é a escuridão que retorna visível”, lacra Jarman.

Tendo apresentado parte da filmografia do chamado New Queer Cinema, podemos avançar no que poderíamos chamar de inflexões, desdobramentos e outras genealogias do queer para além da América do Norte e da Inglaterra. É hora de continuar nossa narrativa queer por meio de outros territórios e filmes realizados na América Latina.

Logo que iniciamos nossa pesquisa curatorial para a mostra “Queer e a câmera”, nos perguntávamos se no Brasil e na América Latina havia ocorrido, nesse mesmo período do New Queer Cinema, desdobramentos que poderiam estar articulados, ainda que de forma independente, por questões correlatas àquelas delineadas pelo estilo ou estética “Homo Pomo”.

Prelúdio de uma morte anunciada (1991), de Rafael França, foi a obra brasileira que de imediato nos conectou a essa filmografia em língua inglesa, antecipando fortemente alguns aspectos presentes na obra derradeira de Jarman. Trata-se de um filme também derradeiro na carreira de um realizador que está prestes a morrer, assim como muitos de seus amigos, em decorrência do HIV/AIDS. Com as cabeças cortadas e de mãos dadas, Rafael e seu namorado estão em cena, parados e em posição frontal. A música que ouvimos é “La Traviatta”, interpretada por Bidu Sayão. Aos poucos diversos nomes de pessoas vão surgindo: amigos de Rafael que morreram, como ele morrerá, em decorrência da AIDS.

Por motivos ainda mal compreendidos, talvez pelo acaso, o desenho de nossa curadoria de filmes da mostra/seminário “Queer e a câmera” acabou constituindo dois grandes blocos. O primeiro se concentrou em obras realizadas em países de língua inglesa até 1994, em sua maioria, representantes do New Queer Cinema. Já o segundo, composto em sua maioria por filmes brasileiros, mas não exclusivamente, concentra-se em uma produção entre os anos de 2013 e 2016, na qual se destacam filmes com personagens identificadas como transexuais, transformistas, trans*, mulheres, bichas, travestis e drag queens – podemos arriscar chamá-lo, com aspas, de bloco “transgênero”.

Naomi Campbel (2013), de Nicolás Videla e Camila José Donoso, Castanha (2014), de Davi Pretto, e Los Leones (2016), de André Lage, filmados no Chile, no Brasil e na Argentina, formam uma trilogia de longas centrados nos desejos, nas práticas cotidianas e no trabalho de Yermén, Castanha e Mariana, personagens principais de cada um desses filmes, que são identificadas, na tela e fora dela, como transexual, transformista e travesti. Em comum, os filmes tomam os terrenos e territórios onde esses personagens/atores habitam como o locus no qual a cena se constituiu – a inflexão local queer se mostra muito potente.

Naomi se destaca por apresentar uma exploração tanto visual quanto biográfica e política centrada na mise-en-scène da atriz transexual Paula Yérmen Dinamarca, que no filme assume o papel de uma personagem transexual de mesmo nome que se mostra completamente decidida a passar por uma cirurgia de mudança de sexo. As ações se desenrolam em torno desse desejo, que a leva a fazer de tudo um pouco. Impressiona o fato de o filme ter sido um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) dos jovens diretores¹³.

Castanha, por seu turno, evoca a presença dramática de João, um ator de 52 anos que vive com sua mãe, Celina, e se alterna entre o trabalho de transformista em casas noturnas e atuações em filmes e peças de teatro em Porto Alegre. Tal como Jason, personagem principal do primeiro filme que apresentamos nesta mostra, João é um desses caras que, diante das câmeras, torna indistinguível o que é genuíno e o que é pura performance.

Los Leones, longa de estreia do mineiro André Lage, rodado em uma ilha argentina, desenvolve-se dentro e no entorno da casa de um casal, a travesti Mariana e seu companheiro Raúl Francisco, ambos soropositivos, assim como boa parte do círculo de amigos que frequenta a casa. Com enquadramentos rigorosos e um tempo (timing) que acompanha a cena de suas personagens, ao invés de impô-la, o filme impressiona pelo retrato apaixonante do modo como o casal leva a vida, a despeito de todas as dificuldades que Mariana encontra com os medicamentos retrovirais. Outro filme profundamente impactado pelo fato de suas personagens serem soropositivas.

Trans*lucidx (2014), de Miro Spinelli, e Ingrid (2016), de Maick Hannder, apresentam-se como ensaios audiovisuais que têm o corpo como campo de batalha. O primeiro tensiona a linguagem por meio de imagens autodocumentais publicadas online por indivíduos trans*, e o segundo aproxima- se aos poucos e com cuidado do corpo tensionado de Ingrid, uma mulher nascida aos 23 anos de idade, após sua primeira cirurgia de prótese de silicone, e que, em suas palavras, “lutou contra a natureza”, contra o “próprio” corpo. Corpos que interessam (Bodies that matter).

Virgindade (2015), de Chico Lacerda, é outro filme da mostra centrado na figura de um narrador, sobreposta a diferentes planos da cidade de Recife, tendo como pano de fundo as tramas subjetivas de uma pessoa que descobre ao mesmo tempo, e de forma entrelaçada, sua sexualidade e os espaços da cidade, uma espécie de cartografia iniciatória ou ritual de passagem. Como sintetiza Eduardo de Jesus em ensaio escrito especialmente para o forumdoc sobre o filme, “percebida agora não mais na força do espetáculo ou da midiatização, tampouco na forma absoluta de seu espaço construído, a cidade atravessa e é atravessada pelo desejo entre os corpos e os espaços, fazendo ecoar na imagem a intensidade da experiência”.

O conjunto final de filmes que compõem a mostra/seminário “Queer e a câmera” costuma circular mais pelos circuitos das artes do que em festivais e salas de cinema – a conexão com o campo das artes é talvez a característica que os une.

Sérgio e Simone (2014), de Virgínia de Medeiros, participou da 31ª Bienal de São Paulo em 2014 e foi apresentado na forma de tríptico. O filme narra em telas consecutivas o trânsito da travesti Simone, que no filme “bebe seus orixás” em uma fonte de água pública, para Sérgio, um pastor evangélico da periferia de Salvador, após uma experiência de quase-morte causada por uma overdose de crack, acontecimento que mudaria não apenas a vida de Simone, mas a corpulência do próprio trabalho de Virgínia de Medeiros, uma vez que tal acontecimento se deu um mês depois da primeira filmagem.

Germano Dushá, em artigo intitulado “O que há de queer na incerteza?”, busca alinhavar um conjunto de artistas mobilizados pela equipe curatorial da 32ª Bienal de São Paulo – Incerteza Viva (2016) –, “num momento político em que o País é assaltado pela franca escalada de forças conservadoras – cujos esforços voltam-se ao tolhimento da subjetividade em prol de normatizações [...]. Quando direitos e garantias individuais vão perdendo espaço para agendas retrógradas e opressoras, é urgente que se abra o campo para o incerto”¹⁴.

É justamente na incerteza do nosso passado, bem como do nosso futuro, que a obra do colombiano Carlos Motta e a do brasileiro Luiz Roque transitam, ambos presentes na lista de artistas destacados por Dushá. Na mostra “Queer e a câmera”, compondo uma espécie de “pequena retrospectiva” dentro da programação, exibiremos quatro filmes de cada um desses expoentes.

Em Ano Branco (2013), O Novo monumento (2013), Modern (2014) e HEAVEN (2016),¹⁵ Luiz Roque transita entre presente, passado e futuro, colocando em perspectiva, em sua experimentação cinematográfica, corpos que ora são contrastados ao modernismo e suas formas esculturais, ora são libertos de amarras e da política de controle, para um momento depois serem novamente condenados. Kiki Mazzuccheli, em belo ensaio¹⁶ sobre a obra de Luiz Roque, antecipa, de forma certeira, uma vez que a crítica quando escreveu estas linhas não havia ainda assistido o filme, a que veio HEAVEN:

O trabalho, que dá sequência a Ano branco, é ambientado em um futuro distópico no qual um novo tipo de vírus transmitido oralmente começa a afetar as comunidades transgênero. Essa premissa desoladora representa um afastamento do tom idealista que caracteriza os primeiros trabalhos do artista, embora possa ser vista também como um reflexo dos tempos políticos sombrios no Brasil, onde grupos LGBT são tomados como um dos principais alvos das forças conservadoras em ascensão (2016, p. 3).

A trilogia composta por Nefandus (2013), La visión de los vencidos (2013) e Naufragius (2013), e também Deseo (2015), de Carlos Motta, estabelecem uma relação de engajamento com histórias sobre a cultura e o ativismo queer. Os filmes de Motta são marcados pelo caráter ensaístico, com textos em sua maioria escritos e narrados pelo próprio artista. Motta foi o último nome que incorporamos a nossa curadoria. O impacto que sentimos ao assistirmos a seus filmes pela primeira vez foi de um frescor incomum, reflexo do modo ousado e inventivo de seu engajamento. Em Nefandus, por exemplo, a partir da desconstrução de categorias cristãs, como aquelas de pecados nefandos, pecados indizíveis, crime abomináveis, Motta levanta hipóteses sobre atos de sodomia que ocorriam nas Américas pré-conquista e o modo como foram desmoronadas pela chegada do homem branco. Já em Naufragius, Motta propõe uma adaptação ficcional de um artigo do antropólogo Luiz Mott cujo título já indica todo o rolê: “Desventuras de um degredado sodomita na Bahia seiscentista”¹⁷, sobre a extradição de Luiz Delgado para Lisboa, por causa do crime e do pecado.

Encerramos aqui esta narrativa queer a partir dos 24 filmes! que compõem a mostra “Queer e a câmera”. Para avançar em outros territórios que não conseguimos penetrar em nossa restrita curadoria de filmes, organizamos um seminário que privilegiará modos locais de práticas queer/kuir. Nosso desejo é experimentar com nossos convidadxs e espectadorxs o que Jota Mombaça, presente em nosso seminário, sugere como sendo uma forma de “desaprender o queer dos trópicos”, “desmontando a caravela queer”¹⁸, trazendo para a programação de nosso seminário experiências queer que não se limitam à “elite teórica queer no Brasil”. Devemos igualmente ler, ouvir e refletir com atenção sobre a sugestão de Vitor Grunvald, também presente em nosso seminário, no ensaio “Cinema queer? Sugestões de-formativas”, que publicamos em primeira mão neste catálogo, ao concluir: “Cinema queer, portanto, como indicação de uma ética dissidente adiantada por meio de representações audiovisuais contra-pedagógicas, mais do que um rótulo ou classificação de um conjunto de realizações ou realizadorxs. Quanto infortúnio não seria se a própria noção de queer/cuir fosse utilizada para criar ordenações – nesse caso, no campo das produções cinematográficas – mais do que destruí-las ou deformá-las!”.

Nosso seminário está estruturado em quatro encontros ou mesas-redondas, além de algumas sessões comentadas pelos diretores presentes¹⁹.

As sessões comentadas acontecerão no dia 21 de novembro no Cine Humberto Mauro. André Lage irá comentar a sessão de seu filme Los Leones às 19h, Maick Hander e Chico Lacerda estarão juntos na sessão de Ingrid e Virgindades, comentando seus próprios filmes, às 21h, e às 22h, é Luiz Roque quem apresenta e comenta a minirretrospectiva de seus filmes na mostra.

O seminário será aberto no dia 21 de novembro, segunda-feira, às 14h, no Cine Humberto Mauro, e contará com a mesa-redonda Queering Beagá I, dedicada a diferentes propostas e pesquisas artísticas em Belo Horizonte. A mesa será mediada por Vinícius Abdala e composta por David Maurity, Idylla Silmarovi e Igor Leal.

Na terça-feira, 22 de novembro, às 14h, a mesa Cinema e cultura queer, mediada por Eduardo de Jesus, será composta por Vitor Grunvald, Karla Bessa, Luiz Roque e Chico Lacerda. Às 21h, a mesa Práticas e ativismos queer, mediada por Paulo Maia, será focada na experiência pessoal e profissional de Jota Mombaça, Pri Bertucci e Ingrid Leão.

Na quarta-feira, 23 de novembro, às 14h, encerraremos o seminário no Cine Humberto Mauro com a mesa Queering Beagá II, mediada por Ana Luiza Santos, com a participação de Sofi-Azi Deia, Danielle Pinto e Júlia Diniz e Carvalho.

A mostra/seminário “Queer e a câmera” só foi possível graças ao empenho dos professores Cláudia Mesquita e Ruben Caixeta e dos bolsistas Marcos Martins, Cristiano Araújo, André Victor, Eduarda Bona e Júlia Imbroisi, que, além de comporem a equipe do Programa de Extensão forumdoc.ufmg, assinam, junto comigo, a curadoria coletiva “Queer e a câmera”. Agradecemos imensamente os apoios e patrocínios institucionais da FAPEMIG, Proex-UFMG, Proex-FaE, Faculdade de Educação, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Ciências Aplicadas à Educação (FaE), Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social (FAFICH) e Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia (FAFICH). A equipe forumdoc.bh agradece ainda aos convidadxs e cineastas que possibilitaram a realização da mostra/seminário “Queer e a câmera”, por aceitarem nosso convite, por cederem seus filmes e por terem escrito ou liberado a publicação de ensaios especiais para esta edição de 20 anos. Agradeço a Ana Martins Marques pela revisão cuidadosa deste texto. Sem a equipe da Filmes de Quintal nada disso seria possível!

Currículo

Paulo Maia

Antropólogo e professor associado da Faculdade de Educação (UFMG). Coordenador do curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI) e do projeto de extensão forumdoc.ufmg. Co-fundador e curador do forumdoc.ufmg desde 1997, se destacando as mostras/seminários “O animal e a câmera” (2011), “Queer e a câmera” (2016), dentre outros.

Como citar este artigo

MAIA, Paulo. Queer e a Câmera. In: forumdoc.bh.20anos: 20º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016. p. 25-44 (Impresso); p. 27-46 (On-line).

Notas

[1] http://www.forumdoc.org.br/2011/?page_id=13

[2] http://www.forumdoc.org.br/?reviews=catalogo-forumdoc-bh-2012

[3] http://www.forumdoc.org.br/catalogo-forumdoc-bh-2013/

[4] Note-se a estranha e perversa ressonância do dispositivo da caça, da armadilha e da perseguição. Cf. Paulo Maia (2011)

[5] Cf. ensaio de Jota Mombaça (2016), publicado na seção de ensaios do catálogo, para uma visão crítica e alternativa dessa genealogia queer/Stonewall.

[6] Cf. o artigo seminal de Ruby Rich na seção de ensaios deste catálogo.

[7] Cf. o texto de apresentação da mostra direto.doc por Paulo Maia para forumdoc.bh.2010. http://www.forumdoc.org.br/2010/?page_id=731

[8] Para maiores informações sobre HIV-AIDS cf. http://www.aids.gov.br/aids

[9] Somente mais tarde essa categoria discriminatória – “grupo de risco” – seria substituída por “comportamento de risco”. Mesmo assim o estigma permanece.

[10] Hoje chamado Festival Internacional de Cinema de Toronto – TIFF.

[11] Cf. na seção de ensaios deste catálogo o Manifesto QUEER NATION em sua versão completa.

[12] Cf. o texto “Pontes e cercas entre Teoria Queer e movimento LGBT” de Anna Paula Vencato (2016) na seção de ensaios deste catálogo. Texto preparado para a mesa- redonda “Teoria Queer Hoje!”, organizada pelo forumdoc.ufmg em maio de 2016 na Faculdade de Educação (UFMG). A mesa contou com a participação de Paulo Henrique Nogueira (FaE-UFMG) e a mediação de Paulo Maia (FaE-UFMG).

[13] Cf. Na seção de Ensaios deste catálogo, Martins, Marcos. “Trânsitos, (des) aprendizados e cinema: uma conversa com Camila José Donoso, diretora de Naomi Campbel”. In: Catálogo forumdoc.bh.2016, Filmes de Quintal, Belo Horizonte, 2016.

[14] http://brasileiros.com.br/2016/10/o-que-ha-de-queer-na-incerteza/ (acessado em outubro de 2016)

[15] Heaven faz parte da 32a Bienal de São Paulo – Incerteza Viva (2016).

[16] Originalmente publicado na ArtReview. A tradução para o português do ensaio é apresentada em primeira mão em nosso catálogo.

[17] http://books.scielo.org/id/yn/pdf/mott-9788523208905-08.pdf

[18] Cf. ensaio de mesmo nome de Jota Mombaça neste catálogo.

[19] Para maiores informações sobre a Mostra/Seminário “Queer e a câmera”, sobre os convidados e filmes, consulte a parte do catálogo dedicada às sinopses, à programação, ao mini cv dos convidadxs e os ensaios publicados.

Referências

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MARTINS, Marcos. Trânsitos, (des)aprendizados e cinema: uma conversa com Camila José Donoso, diretora de Naomi Campbel. In: Catálogo forumdoc.bh.2016. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016.

MAZZUCCHELLI, Kiki. Horizontes reduzidos. In: Catálogo forumdoc.bh.2016. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016.

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