VIVA A NOSSA HERANÇA!

“Trate bem sua cultura porque ela é um bem se você não cuida dela você não será ninguém Quem plantou teve o cuidado de deixar pra quem convém os belos frutos desta árvore que alimentam muito bem” (Ladainha Mestre Môa do Katendê)¹

Iê viva nossos Mestres e Mestras! 

Peço licença aos guardiões dos portões e estradas, e também à comunidade.

Para celebrar a vida de Mestre Môa, reverenciamos o que veio antes, como se faz nas tradições: os orixás, os encantados e as encantadas, o povo do lugar, a música, a cultura ancestral.  

É com satisfação que o forumdoc.bh.2023 apresenta o documentário da história de mestre Môa do Katendê. Ainda em 2018, ano de sua partida², a produção gentilmente cedeu imagens de uma das gravações que compõem o filme para a vinheta do festival, que naquele ano foi dedicado ao mestre, à Marielle Franco e ao Pierre Sanchis. Poder exibir o filme e honrá-lo mais uma vez é de uma alegria urgente. Alegria porque é um dos sentimentos emanados pela figura de Môa, pelo que ele nos deixou. Urgência pela importância de sua presença e caminhada, que foi ceifada pela intolerância e pela violência – não podemos nos esquecer. Contar e recontar sua história é urgente, porque uma grande quantidade de pessoas – em sua maioria, com a cor de pele negra e indígena – que doaram e trabalharam incansavelmente pela transmissão das tradições, para sua reinvenção e continuidade são esquecidas e partem dessa existência sem o devido reconhecimento. 

Mestre Môa do Katendê era Ogã, percussionista, compositor, dançarino, educador, mestre de capoeira angola e da cultura popular. Foi cofundador do bloco de afoxé Badauê, em 1978, no bairro do Engenho Velho de Brotas, em Salvador. Uma vida dedicada a transmitir os saberes que herdou e cultivou com esmero, poesia e política, e viajou o Brasil e o mundo levando sua cultura. 

A história do mestre se entrelaça à história de Salvador, às suas profundidades: o candomblé, a dança afro, os blocos de afoxé, a capoeira. O filme vai costurando essas histórias através de entrevistas – uma enorme rede de artistas, músicos e musicistas, pesquisadoras e amizades de Môa oferece seus depoimentos com muito afeto e admiração –, imagens de arquivo e das próprias gravações com o Mestre, tecendo a teia de um movimento antigo e continuado do qual, ao assistir o filme, parecemos saber muito pouco. Quem nunca ouviu falar dos blocos de afoxé soteropolitanos Filhos de Gandhy? Ou do Ilê Ayê? Poucas pessoas, acredito. Mas e do Badauê? E dos afoxés ainda mais antigos...³

Gustavo Mcnair⁴, diretor de seu primeiro longa documentário, conheceu o mestre no estúdio de um amigo em Salvador, onde Môa começava a gravar faixas para deixar registrado seu trabalho musical⁵. Ficaram amigos e a ideia do filme tomou forma no início de 2018, quando começaram as filmagens, e mais tarde, no mesmo ano, tudo foi interrompido. O diretor conta que construíram o filme seguindo os desejos e as ideias que trocaram durante o tempo que estiveram juntos.

“Misteriosamente, o Badauê surgiu sua expressão cultural, o povo aplaudiu”

Essa aura de mistério em torno do nascimento do Badauê, que se repete em várias tradições de matriz afro, parece se ligar ao candomblé não só pela importância de se guardar os segredos e pela sua origem, mas pela bênção dos orixás. O Mensageiro da Alegria ou Mar Azul emerge na Ladeira de Nanã – a senhora dos ciclos, da Terra onde tudo nasce e para onde tudo retorna – e traz a forma audaciosa, transgressora e dialógica de Exu, como reflete José Francisco de Assis Santos Silva em sua dissertação de mestrado “Pra te lembrar do Badauê...” (2017). Mestre Môa, entrevistado por ele, é um dos grandes expoentes do movimento e compositor de boa parte das cantigas que agitaram as ruas do carnaval no final da década de 1970 e início de 1980, ele mesmo atrelado à efervescência cultural e política que inundava o país nessa época, em meio à ditadura militar.

O Badauê foi essencial para a reinvenção dos blocos afro, para o carnaval de Salvador e para a música brasileira. A grande porta que o Badauê abriu – pela qual passaram as/os tropicalistas baianos, e uma das coisas que encantou Gilberto Gil, Caetano Veloso, Morais Moreira, a grande quantidade de blocos de afoxé que surgiram após 1978 e todos que beberam nesta fonte – foi a possibilidade de o Ijexá se misturar a outros ritmos, outros instrumentos – não apenas os do ritual do candomblé, como faziam os blocos na época. As letras das cantigas, que eram cantadas apenas em iorubá, foram ganhando sentido para mais pessoas quando misturadas ao português. Apesar da transgressão do fundamento, o respeito por ele e pela tradição concederam ao Badauê o caminho para brilhar, e ganharam o concurso de blocos no primeiro ano em que saiu às ruas. Desde então, a música brasileira se alimenta desse acesso e o Ijexá, que em África era uma nação, aqui se torna um ritmo pulsante em nossos corações. 

A contribuição de mestre Môa para os blocos afro passa por esses lugares – e mesmo nos anos em que esteve distante de sua cidade natal, reunia em volta de si pessoas dispostas a compartilhar os tambores, o carnaval e a alegria. Anos mais tarde, ele fundou o bloco de afoxé Amigos do Katendê, que nasceu em São Paulo, mas criou braços em Belo Horizonte, Porto Alegre e também em Salvador.

Esse tipo de comunicação que o mestre era capaz de fazer, que fica evidenciada no filme, nos é muito cara, porque é o que permite o movimento entre o antigo e o novo, o limiar entre inovar e manter a raiz fincada, onde a tradição se atualiza em harmonia. Voar sabendo onde fica seu ninho, e ter orgulho e respeito por ele, é um princípio simples, de muita grandiosidade, nem sempre fácil ou evidente. Voar é um ato de coragem, sabendo honrar quem nos ensina. 

Desde muito novo, Môa se envolveu com o universo cultural de Salvador, fez contatos, esteve em diversos grupos de arte e cultura afro, viajou para Europa com o Viva Bahia de Emilia Biancardi, se tornou agente e agitador cultural, sempre acompanhado do candomblé e da capoeira, mantendo a preocupação e o ofício com o trabalho social e ligação com os mais novos. Reinventar com sabedoria, em comunidade, transmitir os saberes ancestrais através da arte, da música, da comunicação, de grandes e pequenos movimentos que interligam toda uma rede são grandes ensinamentos. Para a Terra crescer, é preciso plantação. Trata-se de cultivar alimento para perpetuar todo o caldo formador da cultura do Brasil. Não nos esqueçamos.

Na capoeira angola, foi formado mestre por um grande capoeirista baiano, mestre Bobó⁶. Assim como na música, manteve seu trabalho social e criou movimentos por onde passou, seja em São Paulo, na famosa Roda da República, em Salvador, reativando a Roda do Dique do Tororó, também em seu bairro, Engenho Velho de Brotas, ou do outro lado do Atlântico, na Europa, para onde viajava anualmente. Capoeirista desde menino, mantinha o mistério que essa tradição também emana, a ginga, a semente farta que se espalha. E a capoeira sabe o valor de suas sementes, é tudo que a boca come.

Mestre Môa deixou muitos registros gravados, de capoeira, de cultura popular, de afoxé. Um dos últimos lançamentos leva o nome do filme, Môa, raiz afro mãe (2022). O diretor chama-os de irmãos⁷, e conta com a participação de grandes artistas da música brasileira. 

Em meio à roda do tempo, o cinema documentário vai se firmando também como tecnologia ancestral, ao permitir o registro, o encontro e a oportunidade de acessar pessoas e histórias fundamentais para o conhecimento de nosso povo, de nossa cultura, de nossa força.

Aprender e entoar as histórias dos mestres e mestras, cultuar suas cantigas, é cultivar nossa cultura, nosso axé.

“Natureza pura que dá música faz o nosso corpo se libertar e gingar Viva a nossa herança! O arco do negro toca o arco do índio lança”

Notas

[1] O título, subtítulo e citações presentes neste texto são letras de mestre Môa.

[2] Disponível em: https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2018/10/17/investigacao-policial-conclui-que-morte-de-moa-do-katende-foi-motivada-por-briga-politica-inquerito-foi-enviado-ao-mp.ghtml.

[3] Uma das referências do Badauê era o bloco de afoxé Embaixada Africana, também do Engenho Velho. Seu nascimento data de 1885.

[4] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wcBjZGKEY0M. Acesso em: 4 out. 2023:

[5] Resultou no álbum Raiz Afrô Mãe (2022) e Moa vive! (2023), ambos com a participação de várias/os artistas. Gravou um álbum de capoeira com mestre Plínio, Angoleiro sim sinhô (2009). No YouTube estão disponíveis outras gravações de seu trabalho musical de capoeira e do Amigos do Katendê.

[6] Para dar continuidade ao legado, com formatura por mestre Bobó, só temos mestre Lua de Bobó com seu Grupo de Capoeira Angola Menino de Arembepe, em Salvador.

[7] Ambos, filme e álbum, começaram a ser construídos junto ao mestre e foram lançados no mesmo ano, 2022.

Referências

MC NAIR, Gustavo. Entrevista: “Môa do Katendê transformou minha vida”, diz Gustavo Mcnair, diretor do documentário “Môa – Raíz Afro Mãe”. Entrevistador: João Paulo Barreto. Scream & Yell, out. 2023. Disponível em: https://screamyell.com.br/site/2023/08/02/entrevista-o-diretor-gustavo-mcnair-fala-sobre-moa-raiz-afro-mae-filme-que-aborda-a-vida-do-mestre-de-capoeira-e-compositor-baiano/. Acesso em: 30 out. 2023.

SILVA, José Francisco de Assis Santos. "Pra te lembrar do Badauê...": O Mensageiro da Alegria em uma viagem pelos Lonãs Iyês (Caminhos da Memória) do Mar Azul – Espaço, Tempo e Ancestralidade. 2017. 200 f. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.