A cura no cinema, no cinema que cura¹

Wherá Tupã e o Fogo Sagrado (Rafael Coelho, 2021) e Abdzé Wede’õ - O Vírus Tem Cura? (Divino Tserewahú, 2021)

Em tempos de colapso planetário, em que se sobrepõem crises climáticas, sociais e sanitárias de alcance global, tem crescido o interesse pelos conhecimentos tradicionais de povos originários, principalmente no que diz respeito a seus modos de convivência e interação com os diversos seres que coabitam e compartilham um mesmo ambiente. Esse apelo tardio a soluções ancestrais de modos de bem viver se tornou mais urgente num contexto pandêmico que pôs em suspensão a circulação de pessoas e evidenciou formas problemáticas do sistema capitalista em massacrar animais para consumo em larga escala, destruir ecossistemas fundamentais para o equilíbrio climático e limitar a capacidade humana de se solidarizar e agir coletivamente. É nesse contexto geral que sujeitos indígenas e seus aliados veem como cada vez mais necessárias a transmissão e a multiplicação de certas reflexões e saberes que possam caminhar na direção de evitar ou, pelo menos, adiar o fim deste mundo. Afinal, como os povos que há séculos têm sabido manejar e celebrar a vida em suas diversas formas pensam seus próprios procedimentos terapêuticos? Como eles poderiam oferecer caminhos de cura a modos já tão adoecidos de se pensar e se relacionar no Ocidente? 

É nesse terreno comum no qual nascem recentemente dois belos filmes produzidos de formas tão diversas e dirigidos por sujeitos tão diferentes. O primeiro documentário, Wherá Tupã e o Fogo Sagrado (Rafael Coelho, 2021), foi produzido por uma equipe externa em colaboração com um xamã Mbya Guarani, e trata dos processos de cura operados pelo rezador, com direção de um realizador não indígena em início de carreira. Enquanto o segundo filme, Abdzé Wede’õ - O Vírus Tem Cura? (Divino Tserewahú, 2021), é um trabalho histórico em vários aspectos, que aborda a doença, a pandemia de coronavírus, e a resistência por parte dos Xavante, além de fazer uma reflexão sobre a trajetória do povo e de seu próprio cinema. A produção é centralizada² na figura do mais experiente realizador indígena do Brasil, que assina o argumento, a direção e a montagem do trabalho.

O filme feito com os Mbya Guarani é resultado de uma relação do diretor Rafael Coelho com o karai (liderança espiritual) Alcindo Wherá Tupã, que se iniciou com uma visita à aldeia em 2013. Nesse período de aproximação e troca com as pessoas da comunidade, o cineasta foi amadurecendo formas possíveis de abordar o tema do filme com o próprio senhor Alcindo e seu filho, Wanderley Karaí Vydjú, um importante tradutor e mediador de todo o trabalho; por isso, os três assinam juntos a concepção do filme – uma forma interessante de creditar modos possíveis de colaboração em uma produção externa. Desde a primeira conversa que tiveram sobre a possibilidade de produzirem um filme sobre a cura, o protagonista Alcindo deixou clara sua predisposição e principal condição: “você pode fazer, mas não dá para ser qualquer coisa, tem que ser bem feito” (COELHO, 2022). Ao contemplar o resultado final, o pedido do mestre parece ter sido atendido pelo olhar e pela escuta cuidadosos de Rodrigo e sua equipe, visivelmente afetados pela sensível e sofisticada escuta guarani. Não por acaso, essa prática de apurada concentração é cultivada sobretudo no espaço da opy, a casa de reza, onde se desenrola a maior parte das gravações. 

As inéditas cenas de cura oferecem um clímax ao filme, trazendo toda força da transformação que o rito imputa aos corpos por meio da agência dos Nhanderu, que atuam e se revelam ao espectador por meio da mediação do karai. Em seus movimentos verticalizados, enquadramentos atentos aos detalhes e fotografia que evidencia texturas esfumaçadas e intermitências de luzes e sombras, a câmera dialoga intensamente com a relação que o karai tem com os Nhanderu e, em alguns momentos, sua intenção é mimetizar a perspectiva dessas divindades ou evidenciar a sua presença – algo que Seu Alcindo faz todo o tempo em suas falas, dialogando com a incredulidade dos não indígenas. Nesses momentos, através do filme, o ancião claramente amplifica as Nhe’e Porã, as “belas palavras-alma”, transmitindo os ensinamentos de Nhanderu não só aos Guarani, como faz habitualmente, mas também indiretamente aos juruá, por meio das novas potencialidades que os recursos audiovisuais passam a oferecer às comunidades.  

Fica claro que os Mbya Guarani não pretendem somente se fazer ouvir na relação com os não indígenas, mas nitidamente querem enfatizar para estes as existências e potências de seus espíritos, sobretudo de Nhanderu, que também é dono do Fogo Sagrado – elemento mediador central na montagem do filme e nas relações sociais por ele agenciadas. A abertura da casa de reza e das cerimônias de cura ao olhar externo da equipe que produziu o filme é notável nesse sentido. O diretor enfatiza que diversas vezes, Wanderley, filho de Seu Alcindo, relembrou que “ter a permissão para filmar a cura é um tabu que está sendo quebrado na cultura, e se algum dia a cura chegou a ser filmada esse registro nunca foi divulgado” (COELHO, 2022). O ancião, que na época tinha 109 anos, juntamente com sua falecida esposa foram pioneiros em querer estabelecer uma maior proximidade com os juruá e abrir a casa de reza a eles, o que ocorreu no início deste século. 

O filme parece ser, portanto, produto de uma estratégia cosmopolítica mais ampla dos Guarani, a de apresentar seus conhecimentos aos não indígenas em um movimento que deseja obter maior compreensão e, consequentemente, conquistar um maior respeito por parte dos juruá, ao mesmo tempo que os coloca indiretamente em contato com os poderes curativos dos Nhanderu. Um apelo para que escutem às mensagens e tentem se reaproximar das belas palavras e dos belos caminhos mbya, onde também pode ser possível a prática do bem viver, o teko porã, vinculado às divindades que deram origem ao mundo. Essa rede de relações e reciprocidades que conecta a equipe e os personagens do filme, bem como os extra-humanos aliados dos Mbya Guarani e os próprios espectadores não indígenas é possibilitada e dinamizada pelo cinema e suas formas de escuta e visibilidade, conferindo novas potencialidades à cura na opy e aos ensinamentos do karai

Já o filme feito por Divino Tserewahú com os Xavante enfatiza, retrospectivamente, pelo menos três aspectos: os impactos e a resistência local à pandemia de coronavírus, a narração, a partir de seu ponto de vista, da trajetória recente de seu povo e suas práticas culturais, além de sua própria autobiografia enquanto cineasta indígena e a importância dessas ferramentas de registro da perspectiva xavante. Esses três motes são costurados em uma narrativa fragmentada sem que haja uma cronologia rígida, de forma a iluminar-se reciprocamente em eventos e imagens históricos diversos, em nível pessoal, social e contextual.

As inúmeras imagens de arquivo usadas por Divino parecem compor um “filme palimpsesto”, produzidas em épocas diferentes e investidas de potencialidades ativadas a partir de uma perspectiva presente, de um diretor que reconta a sua história passando por múltiplas camadas de memória social que ele mesmo ajudou a construir através de seus registros fílmicos nas últimas três décadas. Essa aproximação dos vestígios de épocas justapostas, sedimentadas ao longo dos anos em experimentos de edição de imagens de arquivo presentes em todos os seus filmes, apresenta de forma enfática um sabor de diacronia e um caráter de longa duração. Esses fragmentos de períodos distintos expõem um modo de ser xavante em constante transformação e, ao mesmo tempo, consistentemente durável e singular, seja no vigor e na alegria compartilhada de seus ritos, no respeito aos anciões e seus ensinamentos, ou ainda nas estratégias diplomáticas e aguerridas para lidar com os não indígenas.

No que se refere à doença, Divino traz um relato detalhado das estratégias que seu povo adotou em relação à pandemia: além do adensamento de práticas rituais fortalecedoras e protetoras que antecederam o isolamento das aldeias, os Xavante também evitaram aglomerações depois que a doença chegou e buscaram seus conhecimentos fitoterápicos, infelizmente sem sucesso diante da virulência da nova doença. À medida que Divino apresenta a recente tragédia demográfica e cultural dos Xavante, além da tristeza e do luto profundo nas aldeias de seu povo (o mais atingido pela pandemia no Brasil, com 466 mortes), ele denuncia o descaso do governo federal com a saúde do grupo, que chegou a ter uma letalidade 160% maior que a média nacional. Só o alento da vacina, e da consequente diminuição da mortalidade dos parentes, possibilitou a retomada das visitas entre as comunidades e a feitura de outros rituais novamente, para alegria e (re)união de todos. 

Um dos aspectos mais notáveis do documentário é seu caráter autobiográfico, já que Divino retoma sua trajetória enquanto cineasta indígena reutilizando a maior parte das imagens de arquivo de seus próprios filmes: cinco dos oito documentários que realizou em sua carreira, desde o final dos anos 1990, cederam imagens para este mais recente trabalho. 

Quando postas em movimento na montagem de Divino, o reencontro com essas imagens ganha novos sentidos, sensibilidades e potencialidades agregados na voz em primeiro plano do diretor, que reflete sobre uma vida dedicada a “desmanchar o cinema”. A ação que denota o caráter inacabado e radicalmente processual do cinema realizado por Divino Tserewahú evidencia também seu caráter múltiplo, negociado e necessariamente compartilhado. Nas narrativas fílmicas constantemente reeditadas e compostas pelo diretor, em suas palavras, é necessário se dispor a “aceitar tudo”. Esse seria o constante movimento de “desmanchar o cinema”: fazer, desfazer, refazer, em suma, abrir um filme a outros olhares, seja o das mulheres ou anciãos da aldeia, seja dos sonhos ou das potências espirituais da floresta (Brasil; Belisário, 2016, p. 602). 

Divino é um entusiasta do cinema como “arte do ensinamento” e aposta em suas potencialidades mnemônicas e agentivas. Divino adverte que “os grandes historiadores do povo xavante estão acabando. Para resistir, nós temos que registrar. Agora, isso é o que vocês jovens vão saber lembrar”. No filme, os anciões falam numa “contaminação” pela comida e pelos costumes dos não indígenas, em discursos de “perda da cultura” que se aproximam ao sentimento crônico de adoecimento. Nesse sentido, o cineasta conclui que o cinema em si “não tem poder de curar”, mas se você assistir no cinema e replicar, aí sim, você pode curar. Se um dos principais dispositivos de cura e fortalecimento corporal e espiritual para os Xavante são os rituais, como o wai’a, que têm o poder de “tornar o tempo bonito”, compartilhando alegria e união entre os envolvidos; resta saber se a visualização desses registros não teria um caráter indutor, podendo operar como um gerador de novos rituais, estes sim, “dispositivos plenos de cura”.

Voltemos à cartela do primeiro filme: “Vocês têm televisão: às vezes passa um capítulo bom, às vezes um ruim. Acontece também com o Fogo. Eu vejo as imagens passando em cima do Fogo”. Para o karai Alcindo, o primeiro passo para a cura é conseguir ver através do Fogo Sagrado, por meio do qual ele pode “escanear” o corpo do paciente e identificar o local do problema, uma espécie de lente de Nhanderu. Ao comparar a narrativa de cura no cinema do filme guarani, em que o Fogo exerce papel de visibilidade central, e a busca pela cura no filme xavante, em que o próprio cinema aparece como possibilidade de um processo terapêutico, concluímos que a visibilidade – através do fogo que revela a doença ou da câmera que apresenta a possível cura – é uma etapa fundamental em qualquer processo curativo, pessoal ou coletivo. Por fim, diante das catástrofes do antropoceno, cabe aos não indígenas buscarmos inspiração em ambos os filmes. Como fazem os Guarani, é necessário que cultivemos melhor a apuração de nossa escuta (e de nossa visão), tanto aos povos indígenas (e seus cinemas) como aos seus aliados espirituais, que continuam nos transmitindo importantes ensinamentos por meio deles.

Currículo

André Tupxi Lopes

é antropólogo e documentarista, membro fundador do Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky, povos com os quais trabalha desde 2008. Participou da formação de realizadores indígenas em diferentes povos, produzindo filmes colaborativos na última década.

Notas

  1.  A ideia de cura por meio do fazer fílmico diante das cicatrizes coloniais vem se disseminando há algum tempo, sobretudo em narrativas indígenas produzidas na América do Norte, onde inúmeras comunidades concebem o cinema como dispositivo terapêutico contra traumáticas experiências passadas. Em 2021, o tema da cura no cinema esteve intensamente presente no forumdoc.bh, com conferência, mesas redondas, e uma mostra que priorizou um conjunto de documentários brasileiros de recente produção, inclusive indígenas: “Comunidades de cuidado: fabulações, enfrentamentos e éticas de cura”.
  2.  Divino também contou com a rede de apoio “Amigos dos Xavantes” (AXAV), que teve participação na produção do filme, reforçando a ideia de que o cinema de Divino é fundamentalmente compartilhado, como veremos à frente.

Referências

BRASIL, André; BELISÁRIO, Bernard. Desmanchar o cinema: variações do fora-de-campo em filmes indígenas. Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, v. 6, n. 3, p. 601-634, 2016.
COELHO, Rafael. Processo criativo do curta “Wherá Tupã e o Fogo Sagrado” (2021). Disponível em: https://alemdaimagem.com/espaco-dos-criadores/processo-criativo-whera-tupa-e-o-fogo-sagrado/. Acesso em: 8 out. 2022.