A vida na chuva e a morte no rio: cinema e rexistência

Nhe’en-mongarai – Batismo da alma (Alberto Alvares, 2021) e Amazônia, a nova Minamata? (Jorge Bondanzky, 2022)

    Nhe’en-mongarai – Batismo da alma (Alberto Alvares, 2021) registra os preparativos e o ritual que lhe dá título, no qual crianças recebem seu nome sagrado, revelado ao xamoi da aldeia durante o curso da cerimônia. Trata-se de um filme de celebração da vida intimamente ligada do povo Guarani com os Nhanderu e sua morada, o céu. Não é à toa que a câmera de Alvares privilegia o céu quando ele filma a aldeia, as caminhadas, os crepúsculos e até os carros pelas estradas. O tom é dado logo na chegada à aldeia, momento vertiginoso em que essa vinculação é maximamente presentificada: “No universo, toda alma tem um caminho, um destino, uma chegada, uma partida. Por isso, todas as almas precisam ser batizadas. O batismo é o fundamento da vida, essa conexão da alma que Nhanderu nos ensinou”, ouvimos, enquanto a câmera gira, apresentando o céu prenhe de nuvens carregadas. O céu do ponto de vista terrestre. Depois de um fade out, a chuva cai sobre o chão, ligando material e espiritualmente céu e terra. Não é fácil, contudo, manter as junções, o mundo bem encaixado nos dias de hoje; se é justo pedir permissão à taquara para cortá-la, boa parte do trabalho é feito por crianças, já que não há homens adultos disponíveis; quase não há milho suficiente para a feitura do kanguijy; há apenas um xamoi na aldeia; está cada vez mais difícil alcançar muitas coisas como outrora, mesmo o canto. Após o ritual, uma exortação é feita para que as pessoas frequentem a casa de reza (há a esperança de que através do xamoi atual outros levantem-se). Durante os créditos, descobrimos que as aldeias filmadas estão localizadas em Guaíra, no Oeste do Paraná, a cidade mais violenta do estado, especialmente hostil a povos indígenas. 

    Contudo, o afeto do filme de Alvares não é triste, longe disso. É o registro de um povo vivo, em sua relação com um mundo vivo e atravessado pela divindade, de um território cultivado e uma gente que se cultiva por meio de relações ancestrais de bela sabedoria. Seu canto, sua dança, sua força não contêm uma mensagem, são a própria mensagem de rexistência que Alvares se compraz em filmar para que possa ser sempre (re)visitada. 

    Amazônia, a nova Minamata? (Jorge Bondanzky, 2022) abre com um discurso da liderança Alessandra Korap Munduruku em Brasília durante manifestações indígenas contra o governo de Jair Bolsonaro, seguido por cenas dessas manifestações nas quais o foco é o regime de terror imposto aos povos pelo garimpo, sob a chancela e o incentivo do governo federal. Se no filme de Alvares o céu prevalecia, no de Bodanzky abundam aéreas da floresta amazônica e do rio Tapajós, sobretudo. A terra e a água do ponto de vista do céu. E, se ainda parece haver mata, o assassinato do rio causado pelo garimpo é tornado patente por essas imagens. O documentário trata de um dos aspectos mais destrutivos do garimpo: a contaminação por mercúrio, que é usado na amalgamação do ouro e despejado nos rios, envenenando peixes e aqueles que se alimentam deles e contaminando a terra. Três fios principais são entrelaçados na narrativa; em um deles, acompanhamos o trabalho do neurologista Erik Jennings, da Sesai - Secretaria Especial de Saúde Indígena, em um estudo sobre a intoxicação por mercúrio entre os Munduruku no alto Tapajós. Em outro, conhecemos Alessandra. Enquanto ela se apresenta, conta sobre sua luta e passa a conhecer melhor os perigos do mercúrio. Há ainda um terceiro fio, fundamental para a tessitura da narrativa: a recuperação da história do Desastre de Minamata, nome pelo qual ficou conhecido o envenenamento por mercúrio de centenas de pessoas nos anos 1950 na cidade costeira homônima da ilha de Kyushu, no Japão. A Doença ou Síndrome de Minamata, nome pelo qual ficou conhecido o mal que varreu a cidade, demorou quase duas décadas para se manifestar desde que a empresa Chisso começou a despejar metilmercúrio na água da cidade. A doença, neurológica, ataca a coordenação motora, causa formigamento ou perda da sensação de pés e mãos, problemas de fala e audição, perda da visão periférica e pode levar à morte. É especialmente perigosa para grávidas, pois atravessa a placenta e causa danos ao desenvolvimento do feto. As imagens de arquivo beiram o insuportável, se não chegam a sê-lo. Bodanzky visitou o Museu da Doença de Minamata, conversou com sobreviventes e trouxe de lá uma mensagem para os Munduruku do Tapajós. Jairo Saw, cacique da aldeia Sawré Aboy, comenta

Quando a gente é um ser humano, com tanto sofrimento que a gente vê dessas pessoas que tiveram essa experiência de serem contaminadas… Destruir vidas humanas, eu acho que não é justo. Eu vejo que os parentes japoneses também deixaram essa mensagem para nós. […] O que a gente quer é que a gente seja fortalecido, não deixar que isso venha a acontecer. E a gente agradece, porque eles também se preocupam conosco. Em nome do povo Munduruku, Sawe!

    Dos 109 Munduruku testados por Erik Jennings, 108 apresentaram níveis de mercúrio no sangue muitas vezes mais alto do que os considerados seguros pela Organização Mundial de Saúde. Vários indígenas, crianças inclusive, carregam no corpo os sinais da intoxicação, que surgem em planos detalhe. Assistimos ao incêndio, feito por garimpeiros, da casa da liderança Maria Leusa Munduruku na aldeia Fazenda Tapajós. Tomada pelo terror, ela clama por compaixão, misericórdia: “Venha, por favor. Gente, pelo amor de Deus, façam alguma coisa!”. Quem, no Brasil, se preocupa com eles? Quem, quando o próprio governo federal estimula a invasão de Terras Indígenas e o garimpo? Quem, quando a perversidade é tão grande que alguns indígenas, por falta de futuro, são levados a apoiar o garimpo que os destrói? Quem, quando se sabe que são necessários pelo menos 3 quilos de mercúrio para a obtenção de 1 quilo de ouro? Quem, quando o ouro do garimpo é facilmente “lavado” e exportado e nem o Ministério Público tem ideia de como rastreá-lo? 

    O grande Primo Levi (2006, p. 5) falava sobre a vergonha de ser homem; sobre a pertença dos carrascos à família humana. Argumentou, certa vez, de forma contundente, que não conseguiríamos “nos sentir alheios à acusação que algum juiz extraterrestre proferiria contra a humanidade inteira, com base em nosso próprio testemunho”. Não tiro sua razão. Contudo, diante dos Munduruku, creio que nossa vergonha tem outro nome: a de ser pariwat.

    Alberto Alvares gosta de dizer, e diz em Nhe’en-mongarai, que “até mesmo as árvores secam, mas quando guardamos o saber nos filmes, ele nunca se perde”. Ele deseja, ao registrar imagens, que elas possam vir a ser utilizadas em escolas e serem sempre revisitadas no futuro. Amazônia, a nova Minamata? termina com a exibição, em aldeia, de imagens do Desastre de Minamata e da mensagem que seus sobreviventes enviaram aos Munduruku. 

    De fato, há espécies de árvores pouco longevas, mas vivemos em um tempo no qual mesmo aquelas que poderiam perdurar infinitamente mais que um arquivo digital ou em película têm sido mortas antes de seu tempo; por outro lado, trava-se uma guerra também contra os arquivos tradicionais, e observamos a sua desaparição acelerada seja por negligência (muitas vezes ativa) ou intenção. O trabalho de transmissão e retransmissão amplificada de mensagens e histórias é tanto mais urgente e necessário. Não apenas para que a vergonha se instaure, mas sobretudo para que as árvores e os povos continuem de pé, os rios fluindo, a terra e o céu interligados. Como uma vez disse Humberto Mauro, cinema é cachoeira. 

Currículo

Juliana Fausto

é doutora em Filosofia. Autora de A cosmopolítica dos animais (n-1 edições, 2020), dedica-se a estudos animais, estudos feministas e artes, com enfoque na catástrofe socioambiental conhecida como Antropoceno. 

Referências

LEVI, Primo. A assimetria e a vida – Artigos e ensaios (1955-1987). Trad. Ivone Benedetti. São Paulo: Unesp, 2016