Adeus, Capitão de Vincent Carelli e a Trilogia do Martírio¹

traduzido por Daniel Ribeiro Duarte

Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados agora com a queda? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. 

(Ailton Krenak em Ideias para adiar o fim do mundo (2020))

Em abril de 2022, o indigenista, ativista e cineasta brasileiro Vincent Carelli estreou Adeus, Capitão, codirigido por Tatiana Almeida (Tita). Este último filme é a peça final de uma trilogia que começou em 2009 com Corumbiara, seguido por Martírio (2017), codirigido por Tatiana Almeida e Ernesto de Carvalho. Com material de 1987 a 2019, Carelli e seus colaboradores filmaram diferentes povos, lugares e contextos, sempre com um aspecto comum: o desejo de testemunhar e de estar ao lado daqueles que vivem uma história coletiva trágica com o peso de séculos. 

Eu sou portuguesa: meus privilégios para acessar este filme são a minha língua materna e o fato de que há um passado comum entre nós. Venho do país que invadiu o Brasil há cinco séculos atrás e começou um demorado genocídio dos povos indígenas. Depois de encontrar o trabalho de Carelli em 2017 no festival Fronteira, em Goiânia, eu o estive seguindo de perto e aprendendo com ele. Isso foi a porta de entrada para encontrar a incrivelmente rica e multifacetada produção cinematográfica de numerosos realizadores originários. Este texto é uma tentativa de proporcionar algum contexto para os filmes, de gerar curiosidade naqueles que não falam português e ainda não conhecem esta obra. Devo sublinhar que este texto carece certamente de detalhes, assim como de nuances históricas e culturais. Estes filmes são parte de um corpo de trabalho extenso e altamente complexo que merece a nossa atenção coletiva.

Carelli começou a sua carreira como indigenista na Funai (Fundação Nacional do Índio) nos anos 70. Em 1979, ele fundou o CTI (Centro de Trabalho Indigenista), uma ONG independente e sem fins lucrativos, com um grupo de antropólogos; em 1986, ele fundou, junto com a sua companheira – a antropóloga Virgínia Valadão – o projeto Vídeo nas Aldeias. Como Carelli explica na abertura de Corumbiara, os primeiros passos do projeto consistiram em filmar pessoas na comunidade Nambiquara e imediatamente devolver as suas imagens para elas – ‘devolver’ é, aqui, um verbo-chave. Este encontro imediato com imagens deles mesmos produziu um choque fundamental nas populações destas comunidades; elas entenderam imediatamente o poder disponível para elas: controlar a própria representação, como vemos, a título de exemplo, no fascinante O espírito da Tv (1990).

“Para um povo guerreiro, o contato é sempre uma rendição”

Em Corumbiara, acompanhamos Marcelo Santos, um indigenista que trabalha na Funai que encontrou vestígios de um massacre contra índios isolados na Gleba Corumbiara, no sul de Rondônia. Enfrentando o desprezo com que tais vestígios há muito foram tratados e com a necessidade de reunir evidências mais efetivas, Santos contatou Carelli, que, nos idos de 1987, começava a trabalhar com o vídeo como uma ferramenta de ação e mudança – de “militância”, como ele mesmo coloca. Carelli imediatamente compreendeu a importância deste chamado: num sistema baseado na cumplicidade entre instituições governamentais, autoridades regionais e fazendeiros que impiedosamente expandem as fronteiras de suas terras, filmar estes processos pareceu a maneira mais eficiente de reunir provas irrefutáveis. (A ideia de filmar como prova retorna novamente, anos depois, na segunda parte da trilogia, Martírio, na qual Carelli dá câmeras aos Guarani-Kaiowá para que eles possam documentar diretamente a violência dos fazendeiros e de seus capangas.)

Durante as filmagens que aconteceram em 1987, a equipe foi expulsa pelos advogados da fazenda onde o massacre ocorreu, e a produção foi interrompida. Vinte anos depois, em 2006, os dois amigos – Santos e Carelli – se reuniram para terminar o projeto. Toda essa trilogia existe no seio desta aparente dicotomia entre revisitar e ressignificar imagens para reconstruir o passado. Cada um dos filmes constrói o seu próprio espaço de resistência e aliança, ambos no presente e para o futuro. Em Adeus, Capitão, o último dos três, encontramos Krohokrenhum, do povo Gavião, que persistentemente trabalha para retomar o seu mundo (‘retomar’ vai se tornar um verbo importante): reunificar o seu povo, reivindicando a sua linguagem, reconectando as gerações mais novas com a sua herança e história coletiva. Em certo ponto, depois de sermos informados sobre a forma como a aldeia do Capitão se dispersou após o primeiro contato com os brancos, pescamos uma frase quase descartável: “para um povo guerreiro, o contato é sempre uma forma de rendição”.

Após os primeiros vinte minutos de Corumbiara, Carelli filma o momento de um primeiro contato. Marcelo está no centro do plano, descendo por uma trilha da floresta, quando ele percebe que dois indivíduos do povo que eles procuravam estavam perto. Purá e Tiramantu, irmão e irmã do povo Kanoe, vêm do fundo do plano, enquanto a câmera se posiciona da melhor maneira para capturar o encontro. Aqui está a questão: como filmar um primeiro encontro? Como enquadrar um momento como este, situado entre o imperativo de documentar a existência dessas pessoas, de assegurar os seus direitos através da imagem, e agir – criar imagens – com a consciência da assimetria de posição entre os participantes?

Depois de hesitações e tentativas, a câmera quase envergonhada atrás de Marcelo toma o seu lugar, se reposicionando para enquadrar os rostos extraordinários deste homem e desta mulher. Juntos, eles experimentam sons, gestos e tentativas de trocar palavras – a confiança entre todos é o que está em jogo aqui. Afinal, os irmãos convidam a equipe para segui-los. Alguns minutos depois, na aldeia onde Purá e Tiramantu vivem, eles estudam os objetos trazidos pela equipe, trocando sorrisos e gestos: entre os objetos e a linguagem corporal de cada um, compreendemos que estamos assistindo a um jogo de possibilidades². Tiramantu explica algo, se levanta, coloca alguns instrumentos debaixo do braço. Claramente, ela está imitando alguém. A narração de Carelli explica: “a mulher discursava com tanta veemência que a gente ficou achando que ela tava contando ali uma tragédia. Eu gravava tudo. Tempos depois a gente ficou sabendo que na verdade ela estava interpretando a nossa aproximação, que ela tinha acompanhado desde o início”. A mulher estava performando uma descrição do “primeiro contato” momentos atrás – aquele que assistimos naquele plano com Marcelo. Aquelas imagens eram ao mesmo tempo o documento de uma rendição e a prova da existência de Purá e Tiramantu – sua validação civil perante o Estado. Deste momento em diante, o aspecto abissal dessas imagens ganha uma presença duradoura em todo o filme. Ele retornará, como um fantasma, ao longo de toda a trilogia. O que é uma aliança em cinema? Como forjar esse tipo de lugar de redistribuição de poder?

“A chave para compreender este momento histórico foi traduzida 25 anos depois”

Em Adeus, Capitão, o Capitão Krohokrenhum trabalha e luta para retomar a      língua de seu povo, uma língua que muitos esqueceram, desaprenderam, ou simplesmente nunca usaram. A ideia de ‘retomar a língua’ está conectada com a ideia de ‘retomar a terra’: uma questão de sobrevivência e autonomia, identidade e comunidade, uma continuidade compartilhada entre o passado e um potencial futuro. Ambas são questões vitais, como o Capitão diz: “é importante para a nossa segurança”, explicando que um indígena que perdeu a sua língua vive como se não tivesse ancestralidade – separado de uma parte fundamental de seu ser político e espiritual, exposto à invasão e à submissão, colonizado. No filme, vemos um movimento tomando forma: majoritariamente feito por mulheres nascidas na diáspora, afirmando o ‘Movimento de  Retomada da Língua’ e organizando as comunidades por meio do ensino, da transmissão oral da memória ou da recuperação de tradições coletivas. 

Em Corumbiara, Purá e Tiramantu falam uma língua que a equipe de indigenistas e antropólogos não consegue reconhecer. Ainda assim, eles entendem que é uma língua pertencente a um grupo linguístico específico – falada por um outro homem que eles conhecem, que também foi separado de seu povo alguns anos antes, durante um ataque de fazendeiros. Quando eles se encontram, fica claro que eles pertencem ao mesmo grupo. A tradução torna-se, portanto, possível. Só a partir desse momento do filme Carelli legenda os diálogos dos irmãos – agora nós podemos entender o que eles dizem. Em um filme marcado pelo desaparecimento iminente de um povo, o estilo de Carelli é assombrado pela busca contínua por vislumbres de uma possível continuidade – traduzir a língua dos irmãos é um deles. A primeira cena de Martírio, filmada em 1988 durante a primeira viagem de Carelli ao Mato Grosso do Sul, retrata uma assembleia de líderes das aldeias situadas no Brasil e no Paraguai. O filme conta a história extraordinária da luta dos Guarani-Kaiowá para retomar as suas terras depois de séculos de espoliação e violência. Espectadores que não entendem a língua falada pelo povo não conseguem entender as palavras ditas nesta assembleia – a sequência não é legendada. Enquanto assistimos, talvez possamos decifrar apenas a palavra ‘capitalismo’ em algum ponto do burburinho de vozes. 

Na segunda metade de Martírio, vemos a mesma cena de novo – agora legendada. 25 anos depois, os cineastas tinham conseguido uma tradução do diálogo daquela assembleia. Agora compreendemos o que estamos assistindo e ouvindo: a discussão da chamada ‘aculturação’ dos povos indígenas, da sua ‘integração’ por intermédio de políticas públicas específicas destinadas a tomar suas terras para abrir caminho à expansão do agronegócio. Em outras palavras, para a aniquilação da cultura indígena do mapa político, cultural e social do Brasil. A palavra ‘capitalismo’ agora surge sob nova luz – com a ajuda das legendas, entendemos que o falante indígena esteve dizendo “nós também estamos envolvidos no capitalismo – é por isso que eles falam de aculturação. Nós não somos aculturados”. Na narração, Carelli adiciona então um comentário: “A chave de compreensão daquele momento histórico, que fora enunciada desde a minha primeira filmagem, só foi traduzida 25 anos depois. Naquele momento, os Guarani-Kaiowá haviam entendido perfeitamente as intenções do Estado brasileiro de dissolução das populações indígenas”.

Este jogo entre materiais do passado, tradução (pela legendagem) e narração nos coloca, como espectadores, exatamente onde nós não podemos controlar a interpretação destes mesmos materiais, onde nós nem sempre temos o entendimento completo daquilo que vemos e ouvimos. Este é frequentemente o lugar do cineasta. Os filmes fazem isto através da construção de possibilidades: as possibilidades trazidas pela tradução, por um esforço de escuta, e por valorar memórias individuais e coletivas. Se há uma dimensão pedagógica dos filmes de Carelli, que está certamente longe de qualquer didatismo inútil, ela está precisamente neste processo de encontro entre o espaço fílmico e o espectador. A tradução é uma ação que transforma a leitura do passado e traça possíveis ações para o futuro; ela é um trabalho de atenção e transmissão, e é também em si mesma uma questão cinematográfica e narrativa nas mãos de Carelli. 

Esta forma documental, por outro lado, enfatiza que paciência e escuta são questões cinematográficas, éticas e políticas. Em contraste com a tendência a reduzir o cinema documentário à ‘explicação’ do mundo por meio de fetiches como o ‘acesso’ (ao outro), o ‘herói’ (um indivíduo), ou mesmo a ilusão de um certo tipo de justiça direta adquirida pelo ato de fazer documentários, estes filmes sublinham a necessidade de um esforço individual e coletivo real de repensar estas categorias: “acesso” a esses povos indígenas foi um dos princípios fundantes do genocídio do qual eles têm sido vítimas nos últimos 500 anos. Contrariamente à ilusão da vontade individual que decide agir “escolhendo o bem contra o mal”, aqui nos deparamos com uma escolha coletiva e transgeracional que deve, para estes povos, ser tomada em conjunto e ativamente: existir e persistir. Em certo ponto de Martírio, um policial ameaça prender o líder de uma comunidade. Eles respondem juntos: “Nós somos todos líderes”.

Nesse contexto, o cinema só pode existir, simultaneamente, como “arquivo”, “aliado” e “devolução”. Em 2022, eu perguntei a Carelli sobre o sentido de tempo que permeia as primeiras e as últimas imagens que foram filmadas para a trilogia. Ele falou sobre mostrar os vários filmes e materiais para as comunidades onde filmou: “O Vídeo nas Aldeias está fechando uma trajetória que começou com a devolução imediata das imagens para as pessoas e agora termina com uma devolução final para as novas gerações”. Como acontece com a palavra “retomar”, “devolver” as imagens não é uma mera figura de retórica. Não é só uma questão de “mostrar” as imagens para os protagonistas, mas sim de restituir, para aqueles que estão agora vivos, as imagens e as sombras dos vivos e dos mortos que pertencem a eles. Novamente, é uma questão de sobrevivência: das imagens, das memórias e dos povos. Falar da imagem de um filme, nesse contexto, significa realmente falar explicitamente de “aliança” e “construção fílmica” como conceitos interligados. A câmera, ao longo de toda a trilogia, é operada por Carelli, Ernesto de Carvalho e outros, passada entre indigenistas amigos e amigos de dentro dos grupos com os quais os filmes são feitos. A câmera assume papéis diferentes, desde os mais tradicionais de um observador ou amigo contemplativo até papéis que questionam o cinema mais diretamente. Nenhum filme existe completamente fora de um complexo de relações e tempos; é precisamente aí que, no trabalho de Carelli, os filmes encontram a sua forma cinematográfica. 

Em Corumbiara, os realizadores procuram pelo “índio do buraco”, um homem cuja presença foi rastreada diversas vezes devido a um buraco no chão das cabanas onde morou. Entretanto, ele ainda está isolado, muito provavelmente com medo de ser massacrado, e ainda não foi identificado. É urgente produzir imagens dele; sua vida só vai ser protegida quando a sua presença na região for provada, já que isso vai impor limites legais ao “proprietário” da terra. Totalmente desligado do mundo, ele recusa qualquer contato com estranhos, e ainda mais com os brancos. A câmera tenta roubar uma imagem de seu rosto através das rachaduras das paredes. “Roubar” é a palavra certa – aqui, dar visibilidade por meio da câmera é, simultaneamente, proteger e também invadir e tornar vulnerável; é nesse lugar tenso e difícil que estes filmes nos colocam. Esta cena em Corumbiara nos separa da ilusão de um cinema moralmente puro, indiferente à complexidade. 

Em Martírio, a família da Cacique Damiana mora perto da estrada que passa em meio a uma fazenda construída em terras que foram roubadas de seu povo. Eles planejam ocupar a casa principal e precisam se proteger do pistoleiro enviado pelo fazendeiro. Os cineastas os visitam e dão câmeras a eles para que possam filmar os ataques. Num certo sentido, a câmera também pode protegê-los ao filmar os pistoleiros e mantendo-os imputáveis. Vemos silhuetas de homens junto à cerca, disparando impiedosamente contra a família, num plano aberto feito por alguém que está simultaneamente buscando proteção e confrontando a violência, testemunhando e traçando um caminho pela real imputabilidade. Esta cena de Martírio é eloquente na sua forma de dar visibilidade ao agressor, e, ao fazê-lo, ela o traz de volta para a esfera civil e coletiva. 

“Eu tive a honra e a alegria de ser seu soldado”

A partir de um enquadramento histórico que parte do século XVIII e vem até hoje, os três filmes da Trilogia do Martírio documentam e desenrolam o processo de transformação forçada dos povos indígenas em mão de obra explorada – uma população espoliada de suas estruturas econômicas, sociais e culturais básicas. Em Martírio, uma liderança fala ao seu povo, justificando a sua decisão coletiva de lutar pelas suas terras até o amargo fim: “Nós não dependíamos de ninguém para sobreviver. E os não-índios vieram e tiraram tudo da gente e agora nós que somos vagabundos? Nós que somos invasores?”. A trilogia de Carelli revela a associação íntima entre as ações estatais e a elaboração de narrativas sobre a identidade indígena – as ideias de “índio emancipado” ou “índio aculturado” vêm para dar significado àqueles que, aparentemente integrados à sociedade branca (frequentemente percebidos assim somente porque são vistos vestindo roupas associadas aos brancos), perderam como consequência o seu direito ancestral à terra; a difamação como “invasores”, que os lobistas do agronegócio associam aos índios que estão retornando às suas terras; a ideia de “resistência” apropriada pelos grandes latifundiários como uma narrativa para a defesa do direito à propriedade (“propriedade é a coisa mais sagrada que o ser humano tem”, diz um dos membros do Congresso Nacional). Martírio dedica longas sequências a um material de arquivo dos debates e das intervenções de políticos no Congresso Nacional, e, especificamente, aos conservadores e ruralistas. Carelli dá a estas vozes e rostos o benefício do tempo, insistindo em sua presença no filme de uma forma quase obsessiva. Dessa forma, o desdobramento de tudo isso torna-se uma maneira de desmantelar estas narrativas e identificar um “combate” entre os indígenas e os latifundiários e políticos. 

Simultaneamente, testemunhamos as diferentes formas como esta guerra foi enquadrada juridicamente pela legislação, novas leis aprovadas e constantemente revisadas – nós observamos como estas ideias diametralmente opostas da sociedade são desenhadas diante dos nossos olhos. Representar a arena política e financeira em todos esses contextos é outra das linhas estruturais do filme. Seguindo uma perturbadora cronologia de progresso e retrocesso no reconhecimento dos direitos indígenas (entre eles, o direito à terra como princípio de subsistência e identidade histórica e espiritual), os filmes de Carelli apresentam um retrato poliédrico de um país sequestrado por interesses latifundiários. É particularmente chocante ver que havia um projeto de lei no Congresso em 2014, a PEC 215, que revertia o poder de demarcação de terras da Funai para o próprio Congresso – um organismo altamente dominado pelos partidos ruralistas. Diante de tamanha ameaça – com o número de mortes indígenas crescendo, com povos sendo assassinados nas terras em que seus parentes nasceram e foram sepultados – um grupo de indígenas protesta nos salões do Congresso: “Queremos Dilma! Assassina!”. É chocante entender que esta política genocida não deriva do governo Bolsonaro, mas é um continuum do qual ele é uma consequência trágica e extrema. Tal imagem do mundo, e do Brasil, não é compatível com a visão promovida pelo mercado de boas intenções que prevalece hoje em muitas das instâncias de financiamento do cinema documentário: o mundo é bastante mais complexo do que aquilo que desejamos pagar para ver. Os clichês das tensões e lutas entre esquerda e direita no Brasil, e também entre as forças democráticas e antidemocráticas, são questionados ao longo destes filmes: de certa forma, historicamente, esta equação foi insuficiente – a existência destes povos prova isso, já que eles são o obstáculo permanente para uma ideia de progresso construída pelos colonizadores e baseada na propriedade privada e no crescimento capitalista. Ver o mundo e a história se desenrolarem através desta aliança entre os poderosos é, acima de tudo, aceitar desapontar-se com as formas como nós conceitualmente organizamos tudo isso.

Adeus, Capitão, a terceira parte da trilogia de Carelli, é, novamente, um duplo movimento em direção ao passado e à interrogação de um possível futuro. No entanto, tem um tom distinto dos outros filmes, vindo do adeus ao Capitão do título e do reconhecimento explícito de processos históricos imparáveis. A relação dos povos indígenas com o capital e a sua entrada no sistema capitalista é um desses processos. Novamente, as “negociações” e as tensões na zona de contato entre o mundo indígena e as instituições do mundo branco são fundamentais. Ao contar a história da reunificação do povo Gavião, o filme também conta a história da sua transição desde a escravidão – explorados na coleta de castanhas no sul do Pará – até uma situação em que eles são os novos donos da terra: a comunidade se torna a proprietária coletiva destas terras ricas, empregando inclusive membros de outras comunidades. 

Depois de uma longa negociação sobre o deslocamento da sua aldeia para a instalação de um complexo hidrelétrico – a Eletronorte –, o povo Gavião concordou com um assentamento de compensação. Diante de seu potencial desaparecimento, eles foram forçados a assimilar o poder capitalista, representado pela usina hidrelétrica, enquanto cuidadosamente reconstruíam e refundavam o seu espaço identitário enquanto povo originário. Adeus, Capitão, então, está em algum lugar entre uma alegoria quase universal sobre a história do capitalismo e a despedida de um mundo específico e das pessoas que o habitam. É também, em certo sentido, o adeus de Carelli à história de mais de três décadas de trabalho, encapsulado e incorporado em três filmes, a sua Trilogia do Martírio. 

Constantemente retornando ao passado e aos seus materiais constitutivos, e voltando ao aqui e agora e ao encontro com o Capitão e seus parentes, Adeus, Capitão novamente desenvolve e sustenta, em seu âmago, uma contradição. O filme segue a reconstrução do frágil mundo Gavião enquanto reconhece que ele passa a ser para sempre dependente das corporações industriais ativas na região. De fato, o plano do enterro do Capitão Krohokrenhum é eloquente em dirigir-se a um mundo atravessado pela impossibilidade: em um contra-plongée com a câmera bem próxima ao chão, vemos o monte de terra escavada num plano aberto, visualmente dominado por um poste da usina hidrelétrica. Depois de uma vida procurando por autonomia, esta foi a única autonomia possível: a construção de um espaço inesperado para a coexistência – um túmulo – onde o elemento comum continua sendo o comércio de capital e de valor. Estamos de volta ao início da história. Anos depois da “hecatombe do contato” com os brancos, a luta dos indígenas pela sua autonomia finalmente forçou-os em direção à mesa de negociação, mas nos termos dos colonizadores. Como Carelli diz sobre o Capitão, “com a sua partida a era do índio selvagem foi encerrada, como você sempre dizia. Eu tive a honra e a alegria de ser seu soldado”.

Na mesma linha que o trabalho de cineastas como Rithy Panh, Patricio Guzmán ou Marcel Ophüls, a trilogia de Carelli está entre as obras que podem ser associadas a um fôlego histórico-cinematográfico único. É um cinema de aliança, tomando para si a tarefa de construir alianças com os seus protagonistas até as últimas consequências – não apenas nos filmes, mas também nos modos de devolver e circular as imagens depois do ato de filmar, criando os contextos para continuar a fazer, mostrar e ver. O trabalho do Vincent Carelli indigenista não existiria sem a obra do Vincent Carelli cineasta e vice-versa. Seus filmes existem precisamente na encruzilhada entre o espaço coletivo para o qual as histórias e as pessoas são devolvidas, e o espaço íntimo do pequeno gesto, a amizade construída ao longo dos anos, o aprendizado comum, a experimentação com a linguagem, a liberdade e a proteção. As aporias na obra de Carelli dão a ela esta força única, e o fato de que os filmes se recusam a oferecer uma resolução é o que permite a eles que ajam efetivamente na realidade. Ninguém sai intacto destes filmes. 

Notas

  1. Este texto foi publicado originalmente em GIL, Cíntia. Vincent Carelli’s Farewell Captain and the Martyrdom Trilogy. Outskirts Magazine, Tenerife, v. 1, ago. 2022. A tradução para o português foi gentilmente revisada pela autora.
  2. Nota do tradutor: jogo de mímica em que um objeto é dado para uma pessoa do grupo. Um de cada vez, alguém tem que ficar na frente do grupo e demonstrar um uso para esse objeto.