As fitas coloridas de cetim

Crianças brincam num terreno de chão de pedras. Em círculo, segurando fitas coloridas de cetim, elas giram em torno de um cabo de madeira, com o qual ensaiam uma dança que em breve virá. O corte da montagem nos direciona à próxima imagem: o grupo segue dando voltas, agora em cima de um palco, tramando o colorido, grafando, com pés e mãos, uma dança tradicional do sul do Brasil. Se, na sequência anterior, a árvore opulenta reverbera o entrelaçar azul-rosa-vermelho dos fios de tecido, com suas ramificações que compõem a paisagem rural, é a pequena multidão, ao olhar curiosa para a movimentação no espaço, que amplifica os detalhes de uma celebração vividamente coletiva. O gesto de emaranhar os pedaços, colocar superfícies distintas em contato, por assim dizer, trançar múltiplos que se tornarão um só corpo, nos ajuda a criar uma tradução ou, melhor, um modo singular de nos aproximarmos de Aulas e azeitonas (Tetê Moraes e Aida Ferreira, 1973) e Lages, a força do povo (Tetê Moraes, 1983).

Ziguezague

A terra do Alentejo, no sudeste de Portugal, testemunha uma utopia. O lampejo de vida sob ruínas – do capitalismo, dos regimes totalitários e da vigilância militar – talvez tenha sido o que mobilizou Tetê Moraes e Aida Ferreira a compartilharem o tempo com trabalhadores e trabalhadoras que ocuparam, por pouco mais de um ano, a Quinta de São Pedro, num vilarejo denominado Cuba. Em Aulas e azeitonas, a câmera passeia pelo cenário em que, outrora, não havia ninguém. Mãos e pés invadem o vazio com ferramentas e sonhos. 

O procedimento documental ziguezagueia entre território e sujeitos, enquanto entrevistas e narração guiam o mapa construído com câmera e película. Não é a proposta de individuação do corpo-sujeito-trabalhador-ocupante que marca a curiosidade-alteridade do registro, mas sim o conglomerado de vozes que alimenta o caminho de uma vivência comunitária, não necessariamente isolada, pois a burocracia estatal portuguesa ronda e desafia o cooperativismo, mas onírica em seus aspectos mais elementares, talvez pelo tilintar da película em Super-8 ou, mais precisamente, pelo horizonte político que reivindica. 

Objetos de trabalho, cômodos e alimentos são as fitas coloridas de cetim. Ora surgem em plano-detalhe, ora se confundem como parte de um ecossistema socialista que produz formas alternativas de viver, habitar, festejar e ensinar. As mãos do trabalho, daqueles que se alimentam daquilo que plantaram e cuidaram, que rasuram o livro inventado ou colorem um papel, sempre retornam. A câmera constrói um jogo de distância e proximidade, comum à relação entre quem documenta e quem é documentado. No entanto, ele ganha uma plasticidade particular ao nos remeter à cena da Dança das Fitas, que está presente em Lages, a força do povo.

Esse jeitinho de ziguezaguear entre o corpo e a geografia do Alentejo, um manejo comum ao tipo de câmera escolhida para tais registros, ganha novas significações à medida que reencena o exercício de quem ocupa um lugar e se dispõe a imaginar outras formas de vida. É uma abertura, portanto, para experimentar modos de retratar e compor quadros de tal comunidade, em que estar perto ou distante comunica, pela forma fílmica, o precioso ato de lançar-se à distração, de direcionar-se para onde – e como – os corpos dessa multidão cultivam seu projeto de emancipação idealista. 

A cada fotograma, os olhares de Tetê Moraes e Aida Ferreira nos transmitem que um trator pode ter a mesma importância que a escola, que, por sua vez, é tão fundamental quanto o refeitório. O arar da terra, a ação de colher azeitonas, a transmissão dos saberes no lar de uma terra aproveitada, e, mais do que nunca, cheia de vida, são atividades que se entrelaçam às imagens de porcos, ovelhas e coelhos e à sequência da matança de um animal para a sobrevivência. Alimentar-se em comunhão de tudo o que esse terreno oferece é tão relevante – e politicamente estratégico – quanto a ação de conduzir a entrada pacífica dos ocupantes pelo portão da Quinta de São Pedro. 

Essa rasura das hierarquias, e não sua diluição completa – afinal, a divisão sexual do trabalho não deixa de acenar entre as imagens –, se dá pelo modo como a dupla de diretoras escolhe envolver as cenas, os respiros, os relatos e tudo aquilo que compõe o mapa do vilarejo Cuba. À espreita, o sol, a noite e a câmera são testemunhas da pulsação de um tempo relacional, em que tudo se afeta e vibra para dar sustento a uma invenção que, em sua pedagogia experimental cotidiana, nos inspira a ensaiar uma coletividade que parece ter sido esquecida – ou que tem sido demasiadamente programada para deixar de ser recordada. 


Gostamos do que é nosso

Uma faixa branca com letras garrafais vermelhas afirma: “GOSTAMOS DO QUE É NOSSO”. De costas para a câmera, a multidão acompanha o sermão de um padre. A comunhão está para além do religioso. Ela se espalha nas danças gaúchas, no discurso de Zeca Diabo, no desfile dos vaqueiros, na declamação de um poema, no solo da sanfona que acompanha as imagens da 3ª Mostra do Campo, na cidade de Lages, no interior de Santa Catarina. A montagem paralela justapõe interações de um corpo coletivo que luta por subsistência e por aquilo que lhe é de direito. No longa-metragem de Tetê Moraes, Lages, a força do povo, não é mais o ziguezague entre o todo e as partes que fortemente se impõe, e sim o fazer ver de uma estrutura que se ergue tijolo por tijolo e se estabelece em contraposição a um passado colonial que nunca se desfez (e nem se desfará) por completo.

Apesar de recursos cinematográficos comuns ao curta-metragem Aulas e azeitonas, como o mapeamento do território, o uso de depoimentos e a narração em voz off, o filme de 1983 apresenta certa rigidez, talvez justificada pelo cenário político que o acompanha. O caráter de urgência e de denúncia parece se acentuar. A opção por demarcar as personalidades políticas e os trabalhadores de Lages, com entrevistas diretas e a identificação de seus nomes, reforça o tom quase institucional do que se segue. Ao mesmo tempo, a estranha beleza de um território constantemente ameaçado por crimes ambientais e pelo descaso governamental, que força a modernidade da cidade e esquece o florescimento do campo, nos invade através de imagens-monumentos que dão destaque a paisagens e cotidianos espetaculares. A poesia aparece entre a frontalidade das enunciações, desafiando a fumaça da indústria de celulose e o barulho infernal da serra elétrica. 

A certa altura do longa-metragem, um dos entrevistados afirma que é o trabalhador que silenciosamente constrói esse país, mudez conectada à floresta abandonada pelos sons dos pássaros ao ter suas araucárias assassinadas pela ganância capitalista moderna. Contraditoriamente, trata-se de uma sinfonia do trabalho, de seus ruídos e de suas matérias sônicas, que Tetê Moraes consegue capturar, seja nas mensagens de luta que sustentam cada experiência partilhada-denunciada diante da câmera, como também nos espaços de sociabilidade que, muitas vezes em festa, revelam sonoridades que reforçam a zoada de vida que esses trabalhadores e trabalhadoras, pais, mães e suas crias, ousam compartilhar em bando.

Aqui, nossas fitas coloridas de cetim se transformam em tijolo e cimento. O mutirão é celebrado, e o orgulho de erguer um teto para os seus, com as próprias mãos, retorna como quem grita de novo: “gostamos do que é nosso”. Das práticas de cuidado às negociações político-partidárias, mais do que a uma ação, Lages, a força do povo chama a atenção às formas de manutenção das experiências comunitárias, sobretudo ao como, que em nada estão apartadas de um cenário moderno colonial que contamina os lagos, as famílias, a imaginação e os modos de trabalho.


Mãos de invenção

A artesania do cinema e do teatro encerra os dois filmes de Tetê Moraes (um deles codirigido com a portuguesa Aida Ferreira). No curta, vemos a equipe operando a moviola, manipulando cuidadosamente a película, apresentando a câmera a quem estava sendo filmado. Já no longa, um grupo de teatro de bonecos, Gralha Azul, devolve a esperança e a alegria a uma plateia repleta de crianças e compartilha suas intenções educativas com a entrevistadora. 

Em tempos em que alguns ainda replicam, de peito cheio, a frase de Girish Shambu (2021) que diz que “o mundo é vastamente maior que o cinema”, o gesto de acentuar a arte como trabalho e como alimento, tanto nos contextos de luta quanto de colaboração-imaginação política, responde, por meio de uma anarquia temporal na qual o passado compartilha uma mensagem com o presente, a fim de afirmar que essas instâncias não devem ser percebidas a partir de uma escala hierárquica.

Esse amálgama, feito da trança de fitas, figuradas e corporificadas pelas ações dessas coletividades, revela as mãos e o trabalho como símbolos incontornáveis, possíveis de plantar e cultivar realidades, intervir ou inventar outras conjunturas que, por fim, fazem jorrar a luta mais do que o lamento. Pelas imagens fílmicas, ou pelo simples ato de recortar o papel até se transformar no contorno de uma ave, são elas, as mãos, com seu contínuo gesto de tramar vidas e futuros, que instauram uma poética de invenção comunitária, feita da cantina à sala, do cinema ao/como mutirão.

Currículo

Lorenna Rocha

é historiadora, crítica e programadora de mostras e festivais de cinema. Mestranda no PPGOM-UFPE. Cofundadora da Plataforma INDETERMINAÇÕES. Editora-chefe da revista câmarescura. Em 2021, atuou como crítica na Cinética. Participou de programas de formação como Talent Press (Berlim, 2023) e RAW/Arché (Portugal e Madrid, 2024). Fez parte da curadoria de festivais como Janela Internacional de Cinema do Recife e Festival Internacional de Curtas-metragens de Belo Horizonte. Desde 2024, integra a equipe de programação de curtas-metragens da Mostra de Cinema de Tiradentes.