Celebração ao Sol

Documentário de Tetê Moraes não esconde o que é: um filme-festa, uma ode ao simpático diário carioca, que ilumina e esquenta o espírito irrequieto de uma época.

O recurso de partida do documentário O Sol, caminhando contra o vento (2006) é muito eficiente no resgate do espírito de celebração que marcou a existência de uma juventude ligada à arte e à cultura reunida no Rio de Janeiro nos anos 1960, e que produziu um jornal diário, poético e político, às vésperas do AI-5. A festa-filmagem promovida por Tetê Moraes em 2006 reúne senhores e senhoras já consagrados nas artes e na vida cultural brasileira que, entre abraços e gargalhadas, atualizam o gozo de terem participado de um jornal que teve como hino não intencional: “Alegria, Alegria”.

Diante do brilho estonteante do star system nacional que surge na tela para contar o jornal e sua época – período apaixonante da vida do país –, tudo indica que o filme não terá a possibilidade de abandonar o tom de celebração até o seu final. 

Idealizado pelo poeta Reynaldo Jardim e sob o comando da jornalista Ana Arruda Callado, O Sol reuniu artistas, jornalistas e estudantes universitários de várias áreas para fazer um jornal-escola que tinha como colaboradores os já ilustres Carlos Heitor Cony, Ziraldo, Zuenir Ventura, Nelson Rodrigues e Otto Maria Carpeaux. Segundo os depoentes que se formaram naquela redação, o jornal era um exercício de liberdade na composição dos textos e no uso coloquial da linguagem, na exploração de ilustrações e dos recursos gráficos. Sua diagramação, levada a cabo por uma equipe de jovens mulheres sem formação para a tarefa – que incluía Tetê Moraes, muito personagem no filme que dirige –, evocava a poesia concreta nos títulos – FMI é o FIM – e desafiava matérias e artigos a se limitarem a apenas um quarto de página, possibilitando sua leitura no ônibus com a dobra perfeita do jornal. As paixões e convicções políticas daquela juventude podiam levar o diário a relativizar os fatos diante de uma nesga de esperança, como na morte de Che, com a manchete: “Che pode estar vivo”. Em termos de produção, é incrível que o jornal alternativo fosse diário. Como diz Ziraldo, O Sol antecipou a necessidade de se ter uma imprensa alternativa no país. Ainda que tenha durado cinco meses apenas, o diário foi o precursor dos jornais que iriam contestar a ditadura e se abrir para novas pautas e costumes, como O Pasquim (1969), Opinião (1972), Movimento (1975), Em tempo (1978), O Lampião da Esquina (1978) e outros. Nenhum deles repetiu seu frescor e sua leveza. Já não era tempo.

O Sol seria mais um fenômeno cultural no impactante ano de 1967, que, em pleno governo Castelo Branco – o primeiro da ditadura, que, àquela altura, já havia extinguido os partidos políticos e começava a fechar o regime –, teve o lançamento de Terra em Transe (Glauber Rocha); a edição do Festival da Record que premiou Ponteio (Edu Lobo e Capinam), Domingo no Parque (Gilberto Gil), Roda Viva (Chico Buarque) e Alegria, Alegria (Caetano Veloso); a montagem de O Rei da Vela pelo Teatro Oficina, em São Paulo; e a instalação Tropicália de Hélio Oiticica no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, um labirinto que propunha uma relação sensorial com a arte, com elementos da favela, do kitsch e da natureza tropical. 

Caetano, em depoimento, não sabe dizer o que veio primeiro, o jornal ou os versos “O Sol na banca de revista, me enche de alegria e preguiça. Quem lê tanta notícia?”, mas diz que sua canção evoca seu espírito naquele momento, num caminhar descompromissado, sem lenço e sem documento, de quem é atraído pelos movimentos e organizações políticas que agitavam o país, mas que se mantém distanciado em sua individualidade. Diante de militantes e jornalistas já engajados na denúncia da ditadura, que iria recrudescer em violência e repressão, logo adiante, Caetano fala por si, mas acerta em destacar o protagonismo jovem que eclodia na época, suas questões e provocações, um dos elementos que agregavam o público do jornal. O veículo que dava sustentação a O Sol, o Jornal dos Sports, fundado por Mário Filho, mas, à época, já dirigido por seu filho Mário Júlio Rodrigues, já surfava também na “onda jovem”, atendendo a seu público de estudantes e torcidas de futebol que reuniam a juventude como estratégia comercial e editorial, divulgando passeatas e assembleias do movimento estudantil e apoiando torcedores em seus protestos contra dirigentes de clubes. Como destaca Vladimir Palmeira no filme, era a aparição do jovem como um segmento social. 

Da festa-filmagem inicial, Tetê nos leva à história anterior ao Golpe de 1964, para tecer o contexto que iria culminar na fundação de O Sol, período em que aquela fração da juventude, urbana e de classe média, estava sendo formada por movimentos políticos e culturais, na fricção da política com a cultura do CPC da UNE, em expressões e em pensamentos que apontavam inúmeras possibilidades para o país. “O futuro era nosso”, diz Carlos Lessa. A partir daí, o filme amplia o uso da montagem de registros documentais e de ficção que já vinha pontuando as narrativas, levando-nos numa espiral irresistível de imagens em preto e branco de grandes manifestações, shows, protestos, trechos de filmes do Cinema Novo, exibindo camadas e camadas de experiências estéticas e políticas que marcaram os anos 1960 e 1970. O material já é pisado, mas poderoso, incluindo a trilha sonora que ressoa na memória coletiva. Os depoimentos se voltam para a vivência e os efeitos do golpe e do AI-5 na vida de cada um, com destaque para Fernando Duarte, fotógrafo de Cabra Marcado para Morrer, que conta, com sua voz sobre a imagem violenta e belíssima do filme, a chegada do Exército ao engenho onde filmavam, em busca dos “cubanos”, em mais um momento em que Tetê Moraes coloca seu documentário em diálogo com a filmografia nacional e outras linguagens, como a fotografia, a canção e o próprio jornalismo, num mosaico muito rico que nos leva além de O Sol. Só quem estiver muito cansado de repassar as utopias perdidas não se emociona com a junção simples, apelativa e pueril das imagens da passeata dos 100 mil, em 1968, e seus artistas engajados com a voz embargada de Vandré em Caminhando

O documentário amplia o alcance de O Sol, na época circunscrito a uma vanguarda cultural do Rio, e definido por Gil como um jornal “típico do nosso campo, da nossa turma, da nossa tribo”. Chico Buarque liga o jornal a um período solar, de muita agitação e muito humor. “Daí que surgiu a expressão ‘esquerda festiva’”, diz o mesmo Chico, que, por fim, faz a mais dura avaliação sobre o tempo presente da filmagem, em 2005, diante da vitória da globalização frente a todos os sonhos de autonomia e revolução.

Ainda assim, mesmo permeados por depoimentos que retomam o exílio, a prisão, a repressão, a morte e a encalacrada do neoliberalismo, não há derrota. O brilho dos depoentes e a riqueza dos registros reunidos na montagem mantêm a celebração de O Sol até o fim, sem dar espaço para a derrota brutal que certo projeto de país sofreu.

Currículo

Tânia Caliari

é jornalista graduada pela UFMG. Trabalhou com jornalismo de divulgação científica, na grande imprensa e na imprensa popular alternativa. É doutoranda na FFLCH-USP, onde pesquisa o processo de plataformização a partir da experiência do jornalismo periférico.