Ciências da reverência

Nossos passos seguirão os seus (Uilton Oliveira, 2022), Eu sou raiz (Cíntia Lima e Lilian de Alcântara, 2022) e O dia da posse (Allan Ribeiro, 2022)

Tão distintos entre si, os personagens centrais de Nossos passos seguirão os seus (Uilton Oliveira, 2022), Eu sou raiz (Cíntia Lima e Lilian de Alcântara, 2022) e O dia da posse (Allan Ribeiro, 2022) guardam correspondências plurais com histórias partilhadas no Brasil, e que aos seus modos próprios dão a ver particularidades de percursos coletivos, fundacionais a nossos territórios, à medida que suas individualidades, mais ou menos públicas ou privadas, são expostas para estes projetos artísticos, projetos de filme.

Os três argumentos parecem surgir do reconhecimento de que os respectivos personagens são especiais – virtuosas entidades em história ou em filme – e, as formas fílmicas, de repertórios variados, apostar num mesmo princípio geral: o de que o cinema é capaz de criar condições, contingenciais ao modo de cada relação, para uma colaboração ativa entre escrita da individualidade e expressão histórica. Ao passo que reverencia aquele que é filmado, certas dimensões de seu legado ou relato, quando perquiridas em ato fílmico, mediam revelações e revisões históricas a tornar-se objeto de um investimento documentário.

    Em Nossos passos seguirão os seus, há o problema histórico circunscrito, que se revela e se desdobra formalmente enquanto o personagem central ganha densidade documental. Diante de nossas histórias proletária e racial, alhures pouco postas em relação, o curta-metragem retoma a memória de Domingos Passos que, filho de pai e mãe negros que haviam sido escravizados, fora líder sindicalista revolucionário emergente no Rio de Janeiro, preso diversas vezes e desaparecido entre as décadas de 1910 e 1920. A espessura histórica do episódio, aqui amparada em uma presença latente da figura, deverá ser fruto de um jogo de equiparações fílmicas: notícias de jornais da época sobre a perseguição a Passos interpeladas por imagens filmadas de violência policial; fachadas de instituições policiais hoje sobrescritas pela leitura de discursos do líder em contexto de militância e luta.

O documentário derrama: para ter Passos entre nós agora, o filme de Uilton Oliveira toma parte no recorrente ferramental contemporâneo que põe em relação criativa cinema e performance, e assim investe na encenação: luzes e sombras, cenário, gênero cinematográfico, cinema; o ator, negro, reencarna o rosto do líder operário outrora abstrato, virtualmente branco, em corpo desse outro homem, indiciando com a retomada histórica a certeza de uma outra imaginação dos rebeldes nacionais, que conquista aqui pequeno monumento de curta duração. A nação derrama: se Passos iniciara fuga após perseguição e extradição dentro mesmo do país, no filme o homem corre pela mata, e os históricos das perseguições, as de raça e as de classe, as da colonização e as da exploração por patrões e sequestradores, congregam-se em espiral.

A visão retorna ao índice: o cinema de ação direta aposta na ficção como meio – o filme de Uilton Oliveira se devota ao dever de viabilizar, com o artifício, certas imagens não vistas, para que possamos agora enfrentar sua versão encarnada –, e então faz o caminho de volta, servindo-se das enciclopédias do presente para determinar uma direção, subjetiva e coletiva, à história que difunde: terminamos diante das imagens de manifestantes negros nas ruas do Brasil recente, com suas placas mais uma vez reveladoras.

De outro modo, em Eu sou raiz reverencia-se personagem em vida, ao qual o cinema se dirige, a se escutar e registrar, para a confirmação de que certos encontros filmados têm dimensão oracular, capazes de emprestar ao tempo histórico uma inerente circularidade, passível de ser denotada à historiografia enquanto transfigurada em filme. A mestra Mariinha, do Quilombo da Mata de São José, em Orocó, Pernambuco, conduz uma breve viagem pelo presente da comunidade onde vive, exibindo ao cinema suas tecnologias medicinais, sua cozinha, as cores e os ritmos do Reisado quilombola.

A alusão aos antepassados, recorrente em sua fala, inscreve imagens e relatos numa lógica de historicidade alternativa à cronologia dos Eventos brancos, esculpidos com letra maiúscula. No lugar dela, a percepção forte, vívida como é a de uma câmera que encontra interlocuções, de uma comunidade tradicional a não se deixar de notar em nossas filmografias, com a qual se adensa a incursão de nossos filmes por uma geografia ainda pouco cinematografada diante de outras, e que imprime consigo cosmologias laterais: as dos quilombos no Nordeste brasileiro, suas particularidades e seus mestres e mestras. Mariinha é creditada como corroteirista.

Heroicidade e maestria se cruzam para além de suas âncoras imediatas, e logo a reverência do cinema diante de um personagem feito com o filme ganha as formas de um jogo estendido, prolífico em sentidos históricos, liminar enquanto argumento feito em curso, desenvolto em longa-metragem, ao passo que estamos diante de fabulações feitas em anonimato, de onde latejam suas potências de cinema. Em O dia da posse estão postas as condições materiais e históricas – o isolamento em pandemia – para a transformação de um filme de amor em filme de descoberta, fascínio e convicção de cinema diante do sujeito filmado – e vice-versa. Mais uma vez, o sujeito com quem o cinema se relaciona é tão objeto do filme quanto é, de um outro modo, convocado, pela virtuosidade do processo de filmagem mesmo, a ser coautor. Assim, à maneira de um ensaio centrado no binômio si/outro, escreve-se uma história de Brasil contada da cama de um apartamento no Rio de Janeiro.

Allan Ribeiro, por um lado, dá sequência a investimentos caros a sua filmografia, como em Esse amor que nos consome (2012) ou Mais do que eu possa me reconhecer (2015). Novamente, explora contornos formais de um filme de encontro, entre realizador e um outro, cujo ponto de partida é a sua forma contingencial (espaço físico, modos de acesso àquele ou àqueles com quem se convive, temporalidades da convivência), com frequência em tom de um cinema feito aos poucos, sem que haja pretensões historiográficas macroscópicas evidentes, e, no entanto, com induções e reverberações sempre nítidas, que constroem dramaturgias calcadas em formas latentes de paixão e de compaixão.

No dia da posse surge de uma convivência sem intervalo, em situação de confinamento, mediada pela intimidade da própria residência do realizador, e durante a qual Allan Ribeiro descobre e desbrava um dispositivo com o qual se proliferam cenas de cinema a partir de seu fascínio – e agora o nosso – pelo próprio namorado, que aos poucos expõe, em uma série de diálogos, de jogos de estar e de dizer, um histórico de migrações, aspirações de classe, desejos individuais.

Brendo Washington, jovem de 23 anos nascido na Bahia e estudante de Direito no Rio, apresenta ao filme rara desenvoltura para transformar suas projeções íntimas em passagens de um microespetáculo que, por outro lado, vai adquirindo abrangente legibilidade histórica, consequência. Ele quer ser presidente: ao menos, enquanto expõe à câmera de Allan planos de vida bem calculados, concomitantes a um projeto de carreira, vai gravando discursos aos-modos-de-um-presidente, que publica em rede social, fazendo as vezes de candidato às eleições ou de chefe de governo, e que vai encenando para o cinema enquanto discutem o filme doméstico que fazem de pijamas, ou o Big Brother.

Quantos saíram dos interiores do país para tentar uma vida na cidade grande, construindo um projeto de si no léxico de um sonho hegemônico? Brendo e Allan, um e outro, indagam, afirmam e supõem percepções sobre si e sobre tudo à medida que se comunicam com suas famílias, trocam carinho e deboche, fazendo juntos um patrimônio de visões e impressões sobre uma vida partilhada em contexto de pandemia, e sobre o qual, mais uma vez, se põe e se distende uma percepção de Brasil, seja como diagnóstico do presente ou como perspectiva de percursos trilhados e por se trilhar, solitariamente, em parceria e em sociedade. É um ensaio de bricolagens e um drama familiar de fragmentos, um depoimento histórico em processo e um pequeno compêndio de intenções à deriva. Brendo entra na cena de O dia de posse para permear a forma-filme de perguntas, feitas para, por ou com Allan, e para responder ao cinema que pessoas, próximas a uma câmera ligada, mediarão perspectivas de cinematografia e de comunidade, de aliança e de resiliência, e o cuidado com o sujeito, com a entidade e com a existência se tornarão uma ciência própria ao exercício cinema.

Currículo

Luís Fernando Moura

é programador, curador, pesquisador e gestor, é coordenador de programação da Janela Internacional de Cinema do Recife, tendo programado outros festivais e mostras. Chefe de Audiovisual, Arte e Tecnologia na Fundação de Cultura Cidade do Recife. Desenvolveu a plataforma fuga (fuga.hotglue.me). É mestre em Comunicação Social pela UFMG.