Formas de (des)enquadrar um corpo: entre retratos, (re)distribuições e coreografias

Garotos Ingleses (Marcus Curvelo, 2022) e Você nos queima (Caetano Gotardo, 2021)

Ganha proeminência no cenário brasileiro contemporâneo um conjunto de proposições audiovisuais que, interessadas em diferentes texturas e possibilidades de criação, transitam entre linguagens, suportes e formas de inscrição da materialidade sensível na(s) tela(s). Tais obras se constituem entre cinema, performance, videodança, videoensaio, literatura, fotografia e, cada vez mais, como um fluxo entre outros, mais difusos, que permeiam os ambientes digitais. Garotos ingleses (2022) e Você nos queima (2021) intervêm de maneira produtiva nesse contexto fortemente intermidiático (PETHÖ, 2011), propondo usos singulares para os diferentes recursos audiovisuais de que dispõem a fim de articular perspectivas, subjetividades e gestos políticos.

Nos dois casos, o cruzamento de formatos e linguagens desemboca ainda numa relação peculiar com a forma do retrato, marcada por reinvenção criativa e subversão. Tanto no curta de Marcus Curvelo quanto no longa de Caetano Gotardo há olhos que miram a câmera/espectador; rostos que, enquadrados no ato de (nos) olhar, compõem retratos. As duas obras jogam com a instabilidade dessa forma artística que, em sua história, manifesta uma permanente oscilação entre a habilidade de capturar traços distintivos de um indivíduo e o intuito de representar tipos ou categorias mais amplas; entre a apreensão de características físicas e a expressão de uma personalidade, estado psicológico ou “vida interior” do retratado (WEST, 2004).

Em Garotos ingleses, o ato de inscrever o corpo no plano perturba a solenidade do Cemitério dos Ingleses, local em cujas lápides encontram-se impressas as histórias de pessoas a quem foi concedido o benefício de uma monumentalização post mortem. A produção de monumentos fúnebres assume contornos políticos inequívocos, uma vez que implica a simbolização de outro traço menos evidente: o privilégio de ostentar signos de origem e zelar pela evocação do nome próprio. As manifestações de raiva – expressa em choro e riso, melancolia e deboche – servem para atacar as pompas com que se revestem os corpos dos colonizadores e, com elas, a arbitrariedade dos critérios de distinção – linhagens, supostos laços de sangue, sobrenomes, origens. Quanta descendência é suficiente para adentrar o reino dos ingleses mortos?

A ironia capturada pelo filme de Curvelo está encapsulada no desnudamento da condição histórica que garante a certos mortos o acesso a recursos materiais – incluindo-se aí o requinte da vista para o mar – que são negados a uma multidão de vivos. A desigualdade na distribuição de terra, na relação com o território e na possibilidade mesma de ritualizar o luto é uma condição que precede nascimentos e que nem a morte é capaz de extinguir. Garotos ingleses constata, enfim, com uma carga afetiva que se torna ainda mais pungente devido ao contexto da pandemia do novo coronavírus, que nem a morte encerra a brutal hierarquização de corpos e histórias. Se há um reino dos mortos, esse reino é esquadrinhado pelos mecanismos de distinção de classe; ele se pretende, na perspectiva das elites, herdeiro e reprodutor da ordem social e de seus modos de distribuição da violência “exposta como ferida na paisagem das cidades” (MOMBAÇA, 2016). Contra a carga simbólica dessa distribuição que organiza inclusive a estratificação social dos mortos, a frontalidade dos corpos que se postam diante da câmera rasura a paisagem do cemitério e “profana” os túmulos com gestos de irreverência.

Se é na realidade física da carne que se travam as batalhas de vida e morte, o curta aponta vislumbres de como configurar um corpo coletivo: seja na mobilização de uma comunidade para levantar recursos destinados ao enterro de um jovem vitimado pela Covid-19, seja no gesto de fusão dos rostos numa imagem-síntese final que subverte o caráter individualizante do retrato. A sobreposição dos primeiros planos dos rostos rompe a dinâmica de campo e contracampo, enlaça os dois amigos numa mesma imagem – espelhando o momento do abraço na praia – e afirma seus traços como designações de outra linhagem e outra maneira de estar no mundo, que não aceita o apagamento das existências, mas também não se aferra ao encastelamento da individualidade.

Em Você nos queima, por sua vez, colocar-se diante da câmera é um gesto que expressa o interesse pela produção de rastros como espécie de garrafa ao mar, aposta movida pelo desejo de conexão que estremece o corpo e o abrasa. Não por acaso, o filme começa com a descrição de uma série de fotografias, vestígios que nos falam de desejos velados ou apenas intuídos que impregnam outros registros e outros corpos. Não obstante, a voz que descreve essas imagens que nunca chegamos a ver se aferra a uma operação de desvio. Ela se deixa levar pelas superfícies e texturas das pedras; detêm-se nas ressonâncias entre as poses sustentadas ao longo da série de fotografias, de tal modo que o rosto se torna um detalhe esquecido, algo que já não é possível recuperar.

O filme de Gotardo toma esse movimento desviante inicial e o desdobra. Nele, predomina uma câmera que olha para baixo, compondo assim miradas mais oblíquas, modos de olhar que desviam de outros olhos para repousar em outras partes do corpo: mãos, nucas, pequenos detalhes (a meia que desponta entre a barra da calça e o sapato), e muito notadamente pernas e pés. Chama a atenção, aliás, a profusão de calçados que percorrem as imagens. Esses itens de vestuário, tão banais quanto expressivos, deixam-se ver como artefatos que parecem condensar a tensão entre repetição e variação, serialidade e diferença, na qual entra em jogo a questão do estilo.

A mirada oblíqua, enviesada, é a mirada do introspectivo e também, em certo sentido, um traço característico dos habitantes das metrópoles. Como tal, ela poderia ser tomada como gesto de evitação, mas também como recusa a assumir uma atitude invasiva, encapsulando pelo contrário a predisposição de quem, no meio da aglomeração e assumindo um código tácito de respeito ao espaço alheio, propõe um arranjo mútuo no qual a proximidade é suavizada pela delicadeza. Nessa pequena distância medida entre quem olha e quem é olhado, a mente curiosa do transeunte encontra um terreno fértil para a imaginação: pés que contam histórias, dedos que tamborilam ritmos secretos; braços que seguram sacolas, abraçam mochilas e bolsas – reservatórios que comportam alguns pertences banais e secretos e, com eles, histórias insondáveis. As bolsas, aliás, por vezes agarradas muito juntas ao corpo, talvez funcionem também como uma modalidade tátil e simbólica de reserva diante desse outro que, enquanto deixa o olhar passear pelo espaço, talvez nos mire em segredo.

Desde ao menos O menino japonês (2009), encontramos no trabalho de Gotardo não só uma relação muito peculiar com a palavra, como também esse interesse pela constituição de uma cena urbana específica: o vislumbre de alguém que, em sua própria qualidade de ser visto, constitui uma presença fugidia que desencadeia reverberações muito pessoais. Em Você nos queima, essa centelha provocada pelas aparições urbanas se dissemina, esparrama-se por muitos corpos encontrados nos metrôs e nas ruas – essas figuras emblemáticas da transitoriedade – e nesse movimento mesmo também se pulveriza; abdica da integridade de uma única figura epifânica e de um episódio de interlocução – a breve interação com o menino japonês no parque – para espraiar-se por um fluxo aberto de corporeidades que não chegam a alcançar uma síntese.

Quando observado com atenção, cada um dos corpos na rua e no metrô, assim como aqueles outros que, em pares e grupos, dançam nas pistas, dão a ver um repertório de gestos que se alterna e contrasta com a coreografia íntima do corpo para a câmera no espaço mais reservado do apartamento, que, no filme de Gotardo, constitui o espaço ritualístico da performance autoconsciente e filmada, bem como da produção do autorretrato. De todo modo, tanto Você nos queima quanto Garotos ingleses se interessam por uma espécie de coreopolítica – penso aqui com André Lepecki (2012) e as múltiplas ressonâncias que ele traça entre corpo, chão, espaço urbano, dança e política – que toma o próprio audiovisual como campo de intervenção a partir do corpo-imagem. Entre o poder de polícia que rege as lógicas de distribuição no (e esquadrinhamento do) espaço e as formas da política que organizam olhares e percepções, arrisca-se uma coreografia que se instaura entre presenças e ausências, enlaces e colisões.

Currículo

Fábio Ramalho

atua como professor e pesquisador na Universidade Federal da Integração Latino-Americana, é codiretor da Imagofagia – Revista de la Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual (AsAECA) e membro do coletivo de audiovisual Surto & Deslumbramento. E-mail: fabioallanm@gmail.com

Referências

LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Ilha (Revista de Antropologia), Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. (2011) 2012.
MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência. Publicação comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo em ocasião da 32ª Bienal de São Paulo – Incerteza Viva, 2016.
PETHÖ, Ágnes. Cinema and Intermediality: The Passion for the In-Between. UK: Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2011.