Fumaças sagradas e suas imagens

Benzedeira (San Marcelo, Pedro Olaia, 2021), Exu Yangí (Henrique Cartaxo, 2021) e Maria Conga (Marcelo Pedroso, Noshua Amoras, 2022)

Exu Yangí (Henrique Cartaxo, 2021)

Na cena inicial, três copos são preenchidos por cachaça lembrando uma oferenda ritual típica das religiões afro-brasileiras em homenagem a Exu. O título do filme “Exu Yangí” aparece escrito em vermelho sobre um fundo preto e as retas que formam o “X” de Exu se expandem para cima e para baixo como caminhos que se estendem ou veios de sangue que escorrem. Exu, senhor das encruzilhadas, do encontro, orixá do preto e vermelho, guardião dos sacrifícios, tem assim suas características apresentadas numa iconografia sofisticada e inteligível sobretudo para quem faz parte do sistema religioso ou sabe decodificar seus elementos litúrgicos. 

A cartela que anuncia a “Parte 1 – Carnaval” também apresenta uma transformação gráfica do número 1 em tridente. O tridente e a transformação do número indicam outras duas características: Exu faz da encruzilhada (tridente) seu símbolo de poder, pois é nela que os caminhos se encontram ou se transformam, a esquerda vira direita e o alto vira baixo (ou vice-versa). Em voz off ouvimos um narrador em primeira pessoa descrevendo que, bêbado numa terça-feira de carnaval em Salvador, bateu a cabeça num poste, decretando assim o fim daquele carnaval e o começo de uma transformação em sua vida de boêmia e de riscos. Lê o acidente como uma mensagem de Exu para a necessidade da mudança de rota. Cenas de formigas caminhando entre as passagens em cruz formadas por blocos de construção nos lembram que a terra onde as formigas e cupins fazem suas casas são utilizadas nos assentamentos de Exu. Um mito narra que o rei dos cupins desafiou Exu achando que, por ter muitos soldados e se esconder no subsolo, ele não seria atacado. Mas Exu deu paus e enxadas aos homens para destruir os cupinzeiros, fazendo dos cupins alimentos para os humanos (Silva, 2022, p. 439).

Na “Parte II – Leituras”, vemos ao fundo velas sendo acesas e o narrador informa que a leitura de dois livros (“Exu: Poder e Perigo”, de Liana Trindade, e “Os Nagô e a morte”, de Juana Elbein dos Santos) motivou a produção do filme. Apresenta então longos trechos de cada um deles. Mostra que o primeiro livro aborda o culto de Exu enquanto estratégia pragmática para a resolução de problemas concretos do cotidiano enquanto o segundo entenderia Exu relacionado às estruturas tradicionais da religião. Imagens de pessoas atravessando as ruas se “diluem” nas faixas de pedestres e velas queimam enquanto o texto é lido.

Na leitura do segundo livro, Exu é apresentado como agente da movimentação do axé e/ou da força que assegura a existência dinâmica da vida. Vemos cenas de azeite de dendê, alimento preferido de Exu, borbulhando sob a ação do fogo. Luzes coloridas. A narração apresenta então a teoria dos três sangues (vermelho, branco e preto) que supostamente embasaria a teologia do candomblé nagô (iorubá), na qual Exu assume um papel fundamental. Essa teoria, entretanto, como mostrou Pierre Verger (1982) tem a ver com os povos Ndembu, e não com os iorubás. Apresenta o mito da criação do mundo segundo uma certa tradição iorubá na qual Exu Yangí aparece como o primeiro elemento criado por Olorum e transportador de axé.

Na “Parte III - Partículas elementares”, são apresentadas teorias e hipóteses científicas sobre os quarks (partículas subatômicas), glúons (partículas mensageiras), cor e anticor, enfim, elementos e forças que permitem que a matéria se mantenha coesa. Essas teorias científicas são associadas à cosmologia de Exu: “Nó quântico que sustenta a realidade é amarrado por Exu”. 

Vemos então que o percurso do filme se realiza. A partir de um acidente do narrador durante o carnaval que mudou sua vida, da leitura de obras que iluminaram seu entendimento de Exu e da relação deste orixá com as teorias científicas sobre a matéria, o narrador conclui que existir é interagir e isso se aplica tanto à matéria como às pessoas.

Exu Yangí deu-lhe a compreensão do todo e da parte, do ser e da transformação; do homem como vetor de vetores da eterna transformação do mundo. Vemos imagens de uma aura circular com três pontos dentro, círculos feitos de montículos de pequenas pedras que, como Exu, se movimentam sob a ação do sopro. Laroyê!!

Benzedeira (San Marcelo, Pedro Olaia, 2021)

O filme aborda a vida de Maria do Bairro (Manoel Amorim), benzedeira da região de Tamatateua, município de Bragança, área costeira do nordeste do Pará que compreende a Reserva Extrativista Marinha Caeté-Taperaçu.

Na abertura, vemos cenas aéreas belíssimas da região, que mistura paisagens de matas, rios e mar. Ouvimos Maria cantando e saudando: “Agô, Oxóssi, misericórdia meu velho, vamos entrar na mata”. A câmera aterrissa e vemos a benzedeira caminhando pela mata e narrando a sua própria vida. “Vida de negro é difícil, mas é gostosa” (risos). Já morou em Belém e no Rio de Janeiro, mas voltou para viver onde está hoje. Vive só em contato com a natureza, que lhe provê as ervas para fazer os remédios utilizados no atendimento a quem a procura. Diz: “Eu gosto de ficar só com Deus e meu povo”. Aqui, “povo” pode se referir tanto às entidades espirituais como à comunidade a quem atende. Leva uma vida muito simples. Coleta lenha na mata para cozinhar os alimentos e preparar os remédios com folhas maceradas.

Na região, ela luta pela preservação do meio ambiente, contra a derrubada da mata e a invasão, e por isso sofre intimidação. O som ao fundo, de pássaros e galos cantando, galinhas cacarejando, pintinhos piando, nos dá a paisagem sonora que tanto encanta a narradora, bem como o espectador.

Atende às pessoas dando banhos espirituais e receitando remédios naturais (caseiros). Numa cena, canta durante um banho: “A Jarina é flor, mamãe, ela é flor do mar. A Jarina é flor, papai, ela é flor do mar. A Jarina é flor, papai, é dos orixás. Olha como ela vem, Oxóssi, abeirando o mar. Olha como ela vem, Oxalá, abeirando o mar. Ela vem andando de praia em praia, mamãe, mas vem ajudar. Jarina é moça nobre, filha de homem faceiro. Quem duvida de Jarina, morre pobre sem dinheiro”.

Como vemos, seus ensinamentos e sua prática religiosa são em grande parte provenientes do tambor de mina e do tambor da mata que se desenvolvem sobretudo na região do Maranhão e do Pará. Nesses sistemas, prevalecem o culto às entidades jejes e nagôs como os voduns e orixás. Não é sem motivo que ela, ao adentrar o espaço da mata, saúda e pede permissão (agô) à divindade caçadora iorubá (Oxóssi). Sobre a encantaria (termo que designa o culto às divindades que se encantaram na natureza), ela narra as “profundezas” desse reino: “Tem parte que tu vai e tu pensa que não volta, mas volta”. Se fosse para escolher entre um reino e outro ela diz: “Maria, você quer viver na terra ou na encantaria. Eu queria na encantaria. Tem menos atribulação”. Maria vai se situando assim como um intermediário entre dois mundos, quase como um ser prestes a se encantar.

Ao anoitecer, recolhe o gado e canta: “Meu pai Oxalá, venha me valer...”

Durante o dia, reza uma pessoa com ervas e incenso e defende os medicamentos caseiros contra as “químicas” presentes na alimentação e em outros remédios da indústria farmacêutica: “Com saúde todo mundo é rei”.

Para se preservar das energias negativas e demandas dos doentes e aflitos que a procuram, defuma-se numa espécie de autodescarrego: “Chica Baiana não quer casca de coco no terreiro”. Nem ela quer resíduos, em sua casa e em seu corpo, das atribulações dos outros que ela ajuda a resolver.

A câmera foca na fumaça do defumador, fumaça que funde numa única nebulosa as tradições dos xamanismos dos povos originários, os incensórios do catolicismo popular e as cosmologias africanas que uniram as duas matas às margens do Atlântico. Letreiros aparecem, enquanto Maria canta seu bairro e seu continente: “A vida que passa sorrindo e trazendo aventura da grande nação. Por isso eu canto e relembro esta linda canção. Venha, venham ver, um cigano cantar. Quem canta seus males espanta, meu bem. Eu canto para não chorar”. Ah, mas não tem por que chorar...

Maria Conga (Marcelo Pedroso, Noshua Amoras, 2022)

Na abertura do filme, cenas da abertura da gira. Na cartela inicial, ficamos sabendo que Maria Conga é uma preta velha da jurema e da umbanda, patrona do Centro Espírita Preta Velha Maria Conga no Alto José do Pinho, em Recife, Pernambuco. Em maio, a entidade é homenageada quando se manifesta em Mãe Nina de Xangô, dirigente do Centro. Em 2022, Mãe Nina pediu que a festa fosse filmada para que ela pudesse ver a entidade que recebe desde os vinte anos e que nunca tinha visto. O filme surge, assim, de uma demanda um tanto incomum, considerando que em muitos terreiros pede-se para não filmar, sobretudo as entidades incorporadas.

Nas cenas iniciais, vemos uma imagem em gesso de Maria Conga num altar com oferendas alimentares. A orquestra composta de xequerê, atabaques, agogô e cabaça toca para iniciar as atividades e, como é de praxe, Exu é o primeiro a ser saudado: “Saravá, Exu! Aê, Aê, Baba eu vou abrir meu Caicó”. São Invocados Seu Viramundo, Tranca Rua e Malunguinho, uma entidade típica da jurema e cuja imagem é a de uma criança negra de cócoras.

“Exu já bebeu. Exu trabalhou. Exu vai embora que Zambi chamou. Exu corre gira”. Com esta cantiga, a invocação se dirige a Ogum: “Eu tenho sete espadas para me defender. Eu tenho Ogum na minha companhia”. 

Tendo saudado os orixás que abrem os caminhos (Exu e Ogum), a gira invoca as entidades da mata: “Okê! Caboclo!”. A expressão “Okê” em geral se dirige a Oxóssi, que é tido como caçador, padroeiro das matas e chefe da linha das entidades que nela vivem, como caboclos e encantados. Exu, Ogum e Oxóssi são irmãos responsáveis pelo sistema de caça, coleta, agricultura e guerra, por isso vêm em primeiro lugar na abertura das giras.

Caboclos se manifestam em mulheres e homens que, posicionando os dedos indicadores em forma de lança, dançam performatizando a atividade de caça e guerra. Após os caboclos, manifestam-se os pretos velhos, espíritos dos negros escravizados que retornam a este mundo para ajudar muitas vezes os descendentes de quem os escravizou. Os médiuns, quando manifestam estas entidades, costumam andar com dificuldade, alquebrados, apoiando-se em bengalas. Em geral, utilizam cachimbos, produzindo fumaça sagrada com a qual benzem as pessoas e os objetos. Apreciam o vinho. Tanto essa bebida como a fumaça são continuidades simbólicas das práticas xamanísticas dos povos originários do Brasil vistas sob a ótica das populações negras, como Mãe Nina.

Maria Conga manifestada caminha pelo barracão apoiada numa bengala branca e se senta num banquinho. Ouvimos: “No terreiro de meu pai tem pemba. No terreiro de meu pai tem mironga. Agora que eu quero ver a velha Maria Conga”.

Pemba e mironga são termos dos povos bantu trazidos ao Brasil. O primeiro é um pó (giz) branco que representa o mundo dos ancestrais e dos mortos que estaria abaixo do solo. Maria Conga toca com seu cajado branco este universo. E o segundo refere-se aos mistérios e às magias provenientes deste mundo. A relação do ritual com estas tradições dos países da África Central é reafirmada pela cantiga: “Eh! Congo mais Cabinda quando vêm beirando mar. Congo vem por terra, Cabinda vem pelo mar”. Essa relação terra/mar é fundamental nos sistemas simbólicos dos bantu pois indica a continuidade entre dois mundos que se separam por uma superfície de água chamada Kalunga.

Maria Conga benze as pessoas com um maço de folhas de arruda. Ela molha este maço na água colocada numa bacia onde algumas pétalas brancas de margarida foram depositadas. Aqui, vemos as folhas simbolizando a terra ou as matas tocando as águas onde jazem pétalas brancas, símbolo de pemba ou ancestralidade.

Em outra cantiga ouvimos: “Lá no alto daquela serra tem duas velhas feiticeiras: uma é filha de Xangô, a outra é catimbozeira”. O encontro entre as tradições iorubás, como na menção a Xangô, rei do Império de Oiô, e às do catimbó, sistema de influência indígena e bantu, se faz presente.

Espíritos ancestrais e seus descendentes, passado, presente e futuro vão assim se encontrando e se tocando como nas cenas em que Maria Conga benze uma criança com flor de pétalas brancas e o ventre de uma mulher grávida.

Após os trabalhos, Maria Conga se levanta e arcada se move lentamente até os atabaques mexendo os ombros e indicando que poderia até dançar se o peso da idade não a impedisse. Saúda os tocadores, puxa algumas cantigas e se despede. Aos poucos o corpo de Mãe Nina vai se erguendo enquanto a entidade vai se desvanecendo, voltando à terra dos ancestrais, abaixo da Kalunga. Entra a cartela de créditos enquanto ouvimos as pessoas da casa pedindo uma cadeira para a mãe de santo se sentar. As memórias ou espíritos de nosso passado de violência ainda pesam sobre os ombros deste país que busca continuamente, entre as fumaças sagradas dos terreiros, se redimir por meio do acolhimento, fé e esperança em tempos de cura, justiça e alegria.

Currículo

Vagner Gonçalves da Silva

é antropólogo e professor na Universidade de São Paulo.

Referências

SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte. Petrópolis: Vozes, 1972.
______. Pierre Verger e os resíduos coloniais: o outro fragmentado. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, ISER-CER, n. 8, 1982.
TRINDADE, Liana. Exu: Poder e Perigo. São Paulo: Ícone, 1985.
VERGER, Pierre. Etnografia religiosa iorubá e probidade científica.  Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, ISER-CER, n. 8, 1982.