Habitar o corpo, habitar o mundo

Transviar (Maíra Tristão, 2021) e Germino Pétalas no Asfalto (Coraci Ruiz, Julio Matos, 2022)

Na existência do ser humano como um animal gregário, que se organiza comunitariamente nessa disposição altamente complexa que chamamos de sociedade, muitas são as moedas de troca que possibilitam a um indivíduo fazer parte de um coletivo e se sentir, por meio desse pertencimento, um ser inteiro. Transviar e Germino pétalas no asfalto exploram algumas dessas moedas de troca estruturantes da vida social, articulando-as em torno de um “capital” particularmente fugidio e ao mesmo tempo primordial em nossas vidas: o gênero.

Categoria central na construção de si enquanto corpo fenomenologicamente visível que é também vidente – nos termos de Merleau-Ponty –, o gênero é o capital simbólico que, paradoxalmente, talvez mais sofra de uma estratégia generalizada de invisibilização visando a essencializá-lo como dado natural, ou mesmo transcendente – estratégia que destitui, via de regra, os sujeitos do direito de controlar seus meios de produção identitária. Debruçar-se sobre esse processo de produção significa, portanto, e por si só, oferecer um ponto de vista crítico fundamental em relação às dinâmicas materiais e históricas das sociedades humanas, que constituem o cerne destes dois filmes.

Em Transviar, a conexão entre a inserção econômica da personagem no seu meio social e sua transidentidade é frontalmente tematizada pela metáfora da “modelagem”: tal como ela molda a argila para fazer panelas, Carla da Victoria declara dar uma “modelada” no seu corpo para que corresponda melhor a quem ela é. Ao vermos a personagem dar forma ao barro em planos próximos, para depois queimá-lo, o imaginário do Golem aponta inevitavelmente em nosso espírito, seguido pela figura de Prometeu, transmissor do fogo divino à humanidade. Mas o filme de Maíra Tristão não envereda pelo campo do mito, preferindo um plácido registro imanente sobre fundo histórico-social: no Ofício das Paneleiras de Goiabeiras, em Vitória do Espírito Santo, esse artesanato de origem indígena constitui uma atividade de subsistência eminentemente feminina, registrada como patrimônio imaterial no livro dos saberes do Iphan. É, portanto, a profissão de Carla que sanciona a autoconstrução de sua identidade, na medida em que as técnicas são transmitidas de mãe para filha tradicionalmente. Reivindicando e reiterando explicitamente sua inscrição em uma longa linhagem de mulheres – ela é a quarta geração de paneleiras na sua família – Carla afirma a um só tempo seu pertencimento a um coletivo familiar e a um coletivo social que, intimamente ligados pelo trabalho, permitem que ela pertença a si mesma. Ao filme cabe torná-la audível pela voz off, e plenamente visível pela arte do retrato. Captando gestos das mãos e dos pés, Maíra Tristão oferece-lhe um quadro onde pode posar confiante em “fotografias” em movimento reminiscentes dos Screen Tests de Andy Warhol.

Se a construção identitária de Carla parece fluir suave e espontaneamente como as águas do rio em que ela se lava e no qual observa seu reflexo, a de Jack Celeste, personagem central de Germino pétalas no asfalto, emerge como objeto de um trabalho aplicado e contínuo, levado a cabo por meio de uma série de iniciativas práticas e de atos de linguagem que observamos no curso do filme. O longa-metragem abre e fecha com imagens de Jack falando sobre sua identidade: no início, com quinze anos de idade, ele se apresenta e revela para a câmera seu gênero masculino, projetando uma imagem de si dez anos depois como um homem de barba “trabalhando normalmente” e “visível na sociedade”; no fim, cinco anos mais tarde, Jack reflete sobre o caminho percorrido, especialmente no que diz respeito às mudanças na sua concepção da transidentidade, graças à sua integração em coletividades queer. Entre esses dois planos, a obra de Coraci Ruiz e Julio Matos articula uma rica reflexão sobre dinâmicas comunitárias afirmativas que oscilam entre os âmbitos mítico-religioso e político. Em contraponto, a montagem faz intervir o contexto histórico-social brasileiro contemporâneo à transição de gênero do personagem, marcado pela ascensão da extrema-direita – para a qual elementos mítico-religiosos são combustíveis de uma política de Estado que visa à restrição de liberdades e promove o aniquilamento do coletivo enquanto valor agregador.

A conquista de uma inserção social à altura da visibilidade que Jack projeta para o futuro se desenha assim a partir das margens: é sobretudo na esfera privada e em espaços de resistência que o personagem estabelece progressivamente o seu lugar no mundo. No apartamento em que vai habitar com seu amigo Fauno após ser convidado pelo pai a sair de casa, vemos o jovem lavar louça, arrumar a cama, trocar a lixeira, cuidar dos gatos. Essas cenas de trabalho doméstico dentro de uma configuração familiar “livre” dão a dimensão de uma emancipação precoce e necessária, cujo pano de fundo é a luta pelo direito à autodeterminação, que tomará a forma de um outro tipo de trabalho: o engajamento político de Jack e Fauno junto à UNA (União Nacional LGBTI+) de Campinas, no momento de sua fundação, enquanto responsáveis da diretoria de juventude.

Tal movimento de organização coletiva se completa com os encontros promovidos pela “bruxa travesti” Helena Agalenéa, que invoca a deusa suméria Inana Ishtar como entidade protetora das pessoas transgênero. Encontrando nesse mito antigo uma alternativa às religiões constituídas, em sua grande maioria autoritárias e cisheteronormativas, ela instaura uma vivência espiritual adequada à existência física de “corpos na encruzilhada”, como diz ume des participantes dos encontros. O sentimento do sagrado funciona, então, como energia de congregação, possibilitando a circulação da palavra de forma autêntica e legitimadora. Além desse aspecto “sociológico” da prática mística, os rituais celebrados por Helena – também atriz – ganham espaço no filme quase como pequenos momentos de ficção com função encantatória. Seus apelos de proteção parecem impulsionar a vida des “adeptes” – a de Jack em primeiro lugar –, e encorajá-les a firmar suas existências no mundo, a começar pela inscrição de frases assertivas nas paredes da cidade por intermédio de grafittis. O potencial dionisíaco das celebrações, assim como as manifestações de contracultura que as acompanham, evocam o anarquismo queer, com seus “transmarginais”, e, por extensão, a memória do cinema marginal, no qual a ilegalidade convivia lado a lado com a “desregulação” dos corpos, num mesmo movimento de contestação do capitalismo e da ditadura.

Germino pétalas no asfalto, no entanto, não aposta na contracultura como solução aos impasses vividos por aqueles e aquelas que ousam produzir seu gênero. Se o filme acompanha seus e suas personagens em ações de afrontamento do status quo, o que subsiste é o florescimento de um projeto de sociedade libertária em meio às rochas de uma sociedade normativa, na qual os corpos e identidades são regulados por um sem número de instituições. Trata-se, de certa forma, de se imiscuir nas brechas desse funcionamento para mudá-lo, tal como o provimento do Supremo Tribunal Federal de 2018 reconhecendo o direito de autodeterminação das pessoas contornou o “congelamento” do projeto de lei que tramitava na Câmara há mais de uma década, e, curiosamente, fez do Brasil um dos países mais avançados do mundo em termos de acesso à alteração do registro civil. Vemos, assim, Jack retificar com alegria sua certidão de nascimento, dando um passo definitivo na sua visibilidade social.

 Curtos-circuitos legais como esse são sem dúvida capazes de provocar pequenas fissuras no modelo sedimentado de sociedade, como parecem sugerir os glitches que vêm periodicamente estriar a imagem do filme de Ruiz e Matos. Ao chamar a atenção para o estatuto de artefato da imagem, essas pequenas intervenções no “tecido” plástico do filme – que encontram um equivalente nos véus fotográficos do 16mm de Transviar – murmuram ao pé do nosso ouvido que os corpos, sejam eles individuais, coletivos ou fílmicos, são frutos de um trabalho material de produção, e só nos resta reconhecê-lo.

Currículo

Tatian Monassa

é crítico de cinema e pesquisador. Editou a revista eletrônica Contracampo de 2007 a 2011 e atualmente é professor do curso de cinema da Université Paris Cité (ex-Paris 7-Diderot).