O samba tem feitiço: Curtas jornadas noite adentro de Thiago B. Mendonça

O samba tem feitiço 

O samba tem magia 

Não há quem possa resistir

ao som de uma bateria

É lindo a gente ver
o samba amanhecer

cheio de poesia

O sol aparecendo

e a lua indo embora

e a lida tão sofrida vem pra rua

mas enquanto houver samba

a alegria continua

a alegria continua

a alegria continua

(Mauro Duarte e Noca da Portela)

No plano inicial, Paulo, personagem do músico e compositor Renato Martins, e Edgalo, personagem do também músico Ronaldo da Cuíca, fumam um cigarro ao som de acordes lançados a esmo em algum canto da periferia paulista, à espera do feitiço do samba que vai acontecer noite adentro em algum boteco da quebrada (no caso, o Bar do Surdo), enquanto vemos os créditos iniciais. E o samba acontece em um plano-sequência vertiginoso que abre o filme. Filmada de modo documental, essa sequência de abertura apresenta uma pulsação verdadeira do acontecimento roda de samba, regada a cerveja e alegria, e lança, na letra do samba, o mote que parece guiar toda a estrutura fílmica que se segue: “O samba tem feitiço / o samba tem magia / não há quem possa resistir / ao som de uma bateria / é lindo a gente ver / o samba amanhecer / cheio de poesia / o sol aparecendo / e a lua indo embora / e a lida tão sofrida vem pra rua / mas enquanto houver samba / a alegria continua / a alegria continua / a alegria continua” (repete indefinidamente). 

A música parece sintetizar brilhantemente a proposta cinematográfica que se inaugura. Seis integrantes de um grupo de samba chamado Zagaia, criado especialmente para o filme, driblam a dureza da vida e os desafios da sobrevivência na periferia por meio da magia irresistível do samba, que permite um espaço de liberdade, de expressão e de poesia em meio à marginalidade, e faz da lida tão sofrida do subemprego, do trabalho precarizado e da discriminação, uma jornada pela sobrevivência do samba, e é assim que a alegria continua. 

A roda de samba construída especialmente para o filme também pode ser tomada como elemento estrutural, uma vez que ela apresenta cada um dos personagens na roda, seus rostos e mãos em belos planos fechados, com sua participação singular instrumental (cavaquinho, violão, cuíca, bumbo, conga, pandeiro, reco-reco de bambu, chocalho, voz), suas expressões corporais, gestos e dança. Em seguida, acompanhamos, de modo também circular, ao longo da narrativa, as idas e vindas dos fragmentos da vida e do cotidiano desses personagens, seus longos deslocamentos pelas periferias de São Paulo, retomando sempre os momentos dos encontros musicais e da performance coletiva em roda. 

Como na roda, cada um tem o seu papel e sua singularidade, seu instrumento e sua história, suas dores e seus amores, mas a música é uma só, expressão coletiva, assim como a alegria e o sonho de viver por meio da música, de ser descoberto e ter sucesso na profissão. Como disse certa vez o clarinetista Nailor Proveta a respeito das rodas de choro, e que podemos afirmar também sobre as rodas de samba, gêneros musicais irmãos: “A nossa música é circular. Falando mais tecnicamente, se você pegar a memória da cultura brasileira com os negros, é uma dança circular. Não tem vencedor, como na capoeira, é uma dança. É uma música que circula de uma pessoa para outra”. A musicalidade fílmica de Curtas jornadas noite adentro é também circular, o que faz redobrar ainda mais a força da ancestralidade negra africana que resiste na matriz do pouco conhecido samba paulista. E os personagens acabam por ganhar um caráter mais abrangente e coletivo, incorporando para si histórias de inúmeros grandes sambistas anônimos que enfrentaram as dificuldades, a perseguição e a marginalização em função da escolha pelo samba, especialmente se pensarmos na história do samba paulista, originário no meio rural, por músicos escravizados, de origem africana, que trabalhavam nas fazendas de cana e café no século XVIII e XIX, e que se manteve marginal e perseguido por muito tempo. Como afirma Olga von Simson (2007, p. 9):

A origem do samba rural, uma manifestação tipicamente paulista, estaria no Jongo, dança ritual realizada nas fazendas de cana desde o século XVIII, mesclado ao samba de roda, trazido por escravos crioulos importados do Nordeste pelos cafeicultores da região de Campinas, após 1850. Dessa junção surgiram tanto o batuque de umbigada de Piracicaba, Tietê e Capivari como o samba de bumbo campineiro.

Curtas Jornadas faz questão de afirmar essa origem africana do samba rural paulista em algumas passagens, como na sequência em que, após capinarem um matagal alto, parecido com um canavial, Nino, personagem do ator Carlos Francisco, juntamente com Marçal (Tiganá Macedo) e Edgalo (Ronaldo da Cuíca), canta um samba que clama a união e a resistência dos povos africanos e de suas entidades espirituais ligadas ao candomblé e a outras religiões de matriz africana: “Somos Ketu, Efan, Ijexá, Xambá, Oyó, e Nagô, Egbá. Somos Fanti, Ashanti, Ewé. (...) Somos Congo, Umbundo, Angola, Benguela, Cabinda, Cassange, Macua. Inquices nós somos, somos Orixás, também somos Voduns. Somos todos por todos. Porque todos nós somos um”. Em outro momento, o sambista Dadinho, bamba da velha guarda da Escola de Samba Camisa Verde e Branco, falecido pouco tempo após o término do filme e que interpreta o pai de Paulo (Renato Martins), pergunta se o filho está se cuidando espiritualmente e alerta: “tem que cuidar do seu santo, viu?”, antes de entoar um de seus belíssimos sambas à capela diante da imagem embaçada da cidade ao fundo, pois o samba não pode parar.

O filme é também forma de fazer homenagem à velha guarda do samba paulista, em defesa de sua trajetória de resistência e de suas características, trazendo um repertório de músicas de compositores majoritariamente do estado de São Paulo e de várias regiões da cidade, sejam contemporâneos ou mais antigos, e com diferentes expressões, desde o samba mais tradicional tocado na roda, ao partido alto, com a presença do improviso, os sambas que narram crônicas da marginalidade à la Bezerra da Silva, os constantes conflitos com a polícia e a relação com as drogas, até a cena crítica da cantora branca de classe média performando um samba-canção em festa de elite (cujos participantes pedem, ironicamente, para ela cantar funk), acompanhada pelos músicos negros de periferia, que garantem a cozinha da instrumentação. O gesto de resistência e afirmação da cultura negra do samba no filme é de enorme importância diante de uma sociedade brasileira extremamente racista, excludente e discriminatória, que buscou produzir, em várias instâncias, o apagamento dos fundamentos negros que sustentam a nossa cultura, num projeto sistemático de genocídio e branqueamento da cultura. 

Em contrapartida à perseguição sistemática, a resistência negra do samba faz seu giro para tornar, da tristeza, uma alegria que continua, marca característica do samba. 

Nesse sentido, é interessante observar o processo de construção do filme na relação com o real. Embora não seja um documentário stricto sensu, o filme, ao lançar mão de procedimentos de ficcionalização, parece alcançar camadas mais profundas da realidade. O diretor, que é também compositor, Thiago B. Mendonça, parte de sua vivência nas rodas de samba periféricas da cidade, de sua amizade com vários dos personagens dessa história e da parceria na construção do roteiro com Selito SD, que é, nas palavras do diretor, um dos proeminentes intelectuais orgânicos do samba paulista, para construir os elementos dessa história. A estratégia de criação é muito rica, ao reunir o grupo de músicos e atores para formarem um grupo de samba que vai sair pelas casas de show em busca de espaço para se apresentarem noite adentro. Eles criam, para o filme, uma roda de samba no Bar do Surdo, que acaba se tornando um refúgio seguro para o grupo, em contraposição às dificuldades de entrada em outros ambientes. Desse modo, o trabalho de criação conta com um longo processo de ensaios e de contribuições coletivas na finalização do roteiro que faz com que o espectador, em vários momentos, se pergunte qual é a natureza daquilo que ele vê diante dos seus olhos. Assim, o filme parece apontar para uma tradição do cinema brasileiro que faz da ficção um caminho singular para dar a ver a profunda complexidade do real, para além do simples registro documental.

A montagem do filme, assinada pela grande montadora do cinema brasileiro, Cristina Amaral, é primorosa nesse sentido, ao concatenar tantas histórias paralelas, contrapondo a dureza da vida dos personagens com os encontros musicais nas rodas, a peregrinação pela cidade, os tempos mortos da espera e do trabalho, os deslocamentos nos transportes públicos, as tentativas sempre frustradas de emplacar shows em casas noturnas, produzindo um equilíbrio na construção do ritmo e da pulsação da narrativa. Assim vemos a vida da Madá (Monalisa Madalena), percussionista e secretária de uma biblioteca; de Marçal, pandeirista e segurança de uma faculdade; de Jeguedé (Marquinho Dikuã), cavaquinista e guarda penitenciário; Nino, percussionista e chofer de madame, senhor mais velho, incompreendido pela esposa evangélica que o chama de vagabundo pela sua vida boêmia e por seus poemas. Ele está em liberdade condicional e acaba preso numa batida policial. Edgalo, cuiqueiro e locutor da mercearia do Timaia, e Paulo, violonista e compositor. Entre idas e vindas, na circularidade dos conflitos familiares, amorosos, de trabalho, a música sempre retorna, oferecendo o samba como um caminho de liberdade e de sonho diante de um horizonte triste e melancólico. 

As letras dos sambas apontam caminhos poéticos e retornam na espiral da montagem, fazendo caminhar a narrativa. Ao final, o grupo, parecendo arruinado e triste após rodar pela cidade sem conseguir um lugar decente para tocar, e tendo Nino preso, retorna ao bar do Surdo. É ele mesmo, o surdo, que toca o instrumento de percussão marcando o ritmo do samba, num jogo entre a deficiência auditiva (a surdez para a história do samba paulista, poderíamos pensar) e o nome do instrumento que é fundamento do samba junto com o bumbo. Samba de bumbo é um dos gêneros tradicionais do samba paulista, como vimos. Na bateria das escolas de samba, o surdo faz a resposta ao bumbo, na base rítmica de marcação e variação dos tambores. Aos poucos, após o fracasso e a derrota da última noite, o grupo começa a tocar e a cantar e acontece o feitiço do samba, numa volta ao início, transformando a tristeza em alegria, fazendo do samba um gesto contínuo de resistência à dureza dos nossos dias.

Currículo

Pedro Aspahan

é professor adjunto de Teoria e História do Cinema da Escola de Belas Artes da UFMG. É doutor em Comunicação pela UFMG, com estágio doutoral na King's College London, estudando as relações entre Cinema Moderno, Música Contemporânea e a Estética do Serialismo na obra de Straub-Huillet. Tem pós-doutorado em Comunicação e coordena o laboratório audiovisual do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG: www.saberestradicionais.org. No campo do cinema, atua principalmente como Diretor, Técnico de Som e Montador, especializando-se no campo do documentário.

Notas

  1. Cf.: NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016.

Referências

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016.
SIMSON, O. R. de M. von. O samba paulista e suas histórias: textos, depoimentos orais, músicas e imagens na reconstrução da trajetória de uma manifestação da cultura popular paulista. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, Campinas, SP, v. 15, n. 1, p. 9-34, 2007. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/view/ 8645648. Acesso em: 11 de outubro de 2022.