Preservação audiovisual e cinema negro brasileiro: as restaurações digitais de Um é Pouco, Dois é Bom e Colagem

Fundada em 2021, a plataforma INDETERMINAÇÕES sempre buscou destacar o seu programa de pesquisa em torno da memória do cinema negro e brasileiro. Atuando por meio de projetos de formação – do campo da crítica e da curadoria de cinema –, a preservação audiovisual se impôs como um tema, um interesse e um norteador de parte de nossas ações nos últimos dois anos. O desejo de friccionar e promover leituras entre as imagens do passado e do presente nos lançou a uma questão de ordem material, econômica e política que se tornou incontornável para aquilo que almejávamos: contribuir com os estudos do cinema brasileiro e alargar as possibilidades de leitura sobre o cinema negro no país. 

A realização dos projetos de restauração digital em 4K de Um é Pouco, Dois é Bom (Odilon Lopez, 1970) e Colagem (David Neves, 1968) aconteceu entre 2023 e 2024. Uma visita à Cinemateca Capitólio e o encontro com Vanessa Lopez – jornalista e filha de Odilon – foram fundamentais para o início de uma jornada que ainda nem apresentava, de forma tão evidente, seus caminhos. Nós sabíamos que o filme havia sido exibido em 35mm, em 2017, na CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, e que, depois disso, a família de Lopez havia depositado a cópia remanescente na instituição gaúcha. Foi a partir daí que começou o nosso empreendimento.

Dividido em duas histórias, Um é Pouco, Dois é Bom foi telecinado pela metade na coletânea Obras Raras – O Cinema Negro da Década de 1970,¹ organizado pelo Centro Afrocarioca de Cinema em 2006. Uma espécie de fantasmagoria sobre a primeira parte do filme, protagonizada por Araci Esteves e Carlos Carvalho, um casal branco, pairava. Foi o misto de curiosidade e de vontade de fazer com que a obra pudesse circular novamente, suspeitando também que ela poderia vir a ser uma peça fundamental para o debate historiográfico sobre o cinema negro no Brasil, que nos fez montar um ecossistema em que unimos diferentes forças institucionais – e nosso tempo, dedicação e crença – para a realização deste primeiro projeto. 

Além da INDETERMINAÇÕES e da Cinemateca Capitólio, contamos com o financiamento da Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa de Porto Alegre e com o apoio do Itaú Cultural e da Mnemosine Serviços Audiovisuais. Tiago Baptista, arquivista da Cinemateca Portuguesa, durante uma mesa realizada por ocasião da exibição do longa-metragem de 1970 no DocLisboa – 24º Festival Internacional de Cinema de Lisboa,² ressaltou como tal iniciativa faz notar a importância da colaboração ativa entre arquivos e instituições independentes, de modo que projetos de restauração possam ser fomentados por outras vias que não se prendam a processos institucionais tão rígidos, ainda muito centralizados nos espaços convencionais de preservação audiovisual. 

A restauração digital ocorreu no Laboratório Link Digital/Mapa Filmes do Brasil, sob coordenação técnica da preservadora audiovisual Débora Butruce. Para realizá-la, utilizamos os negativos originais que se encontram preservados na Cinemateca Brasileira desde 1989. Uma cópia remanescente de difusão, digitalizada em 2023 pela Cinemateca do MAM, foi usada como referência para a marcação de cor. Durante o processo, tomamos conhecimento de que os negativos possuem sequências montadas de formas diferentes da cópia de exibição original, incluindo cenas até então desconhecidas por nossa equipe. Na versão final, preservou-se a montagem e a minutagem dos negativos.

Desde o seu lançamento no 13º Olhar de Cinema, Um é Pouco, Dois é Bom ganhou salas de cinema em diversos estados brasileiros, como Alagoas, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo, e em países como Coreia do Sul, Portugal e Chile. Para além das exibições, acreditamos ter sido fundamental a proposição de debates críticos, o compartilhamento de pesquisas em torno da vida e da obra de Odilon Lopez, bem como a busca por seu reposicionamento e reconhecimento na história do cinema (negro) brasileiro. 

A restauração de Colagem, por sua vez, ocorreu no contexto da Sessão INDETERMINAÇÕES, um sonho antigo da plataforma que se materializou por meio de uma parceria com o Instituto Moreira Salles (IMS). Desde 2024, ocupamos as salas do IMS Paulista e do IMS Poços, lançando proposições de programação e curadoria que, através dos filmes, pudessem colocar em conjunção e enfrentamento os pensamentos que permeiam e extrapolam os entendimentos acerca do cinema negro e brasileiro. Desde então, temos nos proposto a reunir filmes, materiais audiovisuais e peças sonoras de diferentes épocas, amplificando e redirecionando perguntas em torno da presença/ausência e dos modos de fazer negros no cinema brasileiro, suas agências e silêncios, assim como as continuidades e fraturas, assumindo a instabilidade que tal categoria racial historicamente carrega. 

O mergulho nas contradições dessas materialidades fílmicas e sonoras nos levou, em uma das ocasiões, à atriz Luiza Maranhão, que ficou conhecida como a “deusa negra do Cinema Novo”. Em dezembro do último ano, realizamos o programa “Dedicar uma sessão a quem dizia não gostar de cinema”³ com o intuito de aproximar, destacar e analisar criticamente a poética autoral de sua performance enquanto atriz – muitas vezes ignorada pela própria imprensa da época, que preferia destacar seus atributos e sua beleza – e as fissuras que sua presença impunha num momento em que o cinema brasileiro também passava por uma radical transformação. 

Boi de Prata (Augusto Ribeiro Jr., 1980), longa norte-rio-grandense mais desconhecido da sua filmografia, apareceu como um ponto de partida relevante para a composição da sessão, na medida em que o longa apresentava a atriz em um momento diferente de sua carreira. Lançado cerca de 20 anos após a estreia da atriz nas telas, o longa, digitalizado pela iniciativa da historiadora Flávia Assaf e da família do diretor a partir de uma cópia preservada pela Cinemateca do MAM (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro), traz uma Luiza Maranhão que parecia recusar o posto de musa que até então ocupava, assim como o rosto de um povo que fora criado no seio do cinemanovismo. No longa de 1980, em suas múltiplas aparições, parecia possível encontrar outras facetas de seus modos de interpretação e de criação atoral. 

Em 1968, no Congresso de Gênova sobre o Terceiro Mundo e a Comunidade Mundial, o cineasta e crítico David Neves apresentou um ensaio em que marcava a diferença entre o que chamava de “cinema de assunto negro” e “cinema de autor negro”; o segundo, na perspectiva do autor, foi definido como inexistente. Ele buscava traçar uma “modesta fenomenologia do cinema negro no Brasil” (NEVES, 2018, p. 183). Naquele mesmo ano, Neves lançou Colagem, curta que reverbera algumas das ideias expostas na conferência e que, com o auxílio das cenas de alguns filmes citados no ensaio, como Barravento (Glauber Rocha, 1962) e Ganga Zumba (Cacá Diegues, 1964), monta o discurso que posiciona Luiza Maranhão e Antonio Pitanga como os personagens a serem reconhecidos pelo espectador-povo brasileiro. Suas belezas (negras) e seu heroísmo malandro foram utilizados como representações capazes de subverter, por um lado, as influências europeias ou americanas que marcaram nossa indústria, ou, por outro, a herança cômica de um grande como Otelo – referência da qual o Cinema Novo inicialmente desejava se desvencilhar.

Com o conhecimento dos materiais em película preservados pela Cinemateca Brasileira (CB) e pelo Centro Técnico Audiovisual (CTAv), lançamo-nos em mais um projeto de restauração audiovisual, agora em parceria com o Cinema do IMS. A experiência com o filme de Odilon Lopez nos levou, mais uma vez, ao Laboratório Link Digital/Mapa Filmes do Brasil, novamente sob coordenação técnica de Débora Butruce, dois parceiros fundamentais nessas ações de preservação nas quais estamos envolvidos desde 2023. 

Colagem e Um é Pouco, Dois é Bom encontraram-se numa sessão em São Paulo, na Cinemateca Brasileira.⁴ Essa foi também a primeira vez que os filmes retornavam àquele espaço dedicado à memória do cinema brasileiro. 

Se Colagem retoma as vontades e projetos de uma escola cinematográfica específica – num gesto, fortuito ou não, de conciliação possível entre o povo brasileiro e as imagens produzidas e chanceladas no seio de seu cinema –, a narrativa de Um é Pouco… sublinha uma espécie de anarquia pouco comum em nosso cenário audiovisual, na medida em que conduz dois contos que muito falam sobre classe e raça no país, numa imbricação de estilos e estéticas, sampleando narrativas melodramáticas, figurações surrealistas e mesmo esquetes que fazem alusão tanto à televisão quanto a Charles Chaplin. 

Naquela tela ao ar livre, em mais uma das noites frias da capital paulista, a sequência que unia os rostos e performances de Antonio Pitanga, Luiza Maranhão e Odilon Lopez parecia fazer brotar as contradições inerentes à experiência negra no Brasil e os diferentes tratamentos dados a essa complexidade em momentos distintos da história e da cinematografia brasileira. 

Fundada em 2021 por Lorenna Rocha (PE) e Gabriel Araújo (MG), a plataforma INDETERMINAÇÕES dedica-se a investigar e elaborar questões em torno da crítica e do cinema negro e brasileiro, tendo como eixos de atuação a pesquisa, a curadoria, a formação e a preservação. Conheça as iniciativas do projeto em indeterminacoes.com.

Currículo

Gabriel Araújo

mineiro formado em Comunicação Social pela UFMG, é jornalista, crítico e curador de cinema. Cofundador da plataforma INDETERMINAÇÕES e do Cineclube Mocambo, atua como repórter da Folha de S.Paulo. Desde 2022, integra as equipes de curadoria do Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (FestCurtasBH), da LONA - Mostra Cinemas e Territórios, e, desde 2024, da Sessão INDETERMINAÇÕES (IMS). É coautor do livro Vidas Inteiras - Histórias dos 10 anos da Lei de Cotas e um dos editores da Revista Zanza Vol.1 - A Cidade no Cinema, a Arte na Cidade.

Lorenna Rocha

é historiadora, crítica e programadora de mostras e festivais de cinema. Mestranda no PPGOM-UFPE. Cofundadora da Plataforma INDETERMINAÇÕES. Editora-chefe da revista câmarescura. Em 2021, atuou como crítica na Cinética. Participou de programas de formação como Talent Press (Berlim, 2023) e RAW/Arché (Portugal e Madrid, 2024). Fez parte da curadoria de festivais como Janela Internacional de Cinema do Recife e Festival Internacional de Curtas-metragens de Belo Horizonte. Desde 2024, integra a equipe de programação de curtas-metragens da Mostra de Cinema de Tiradentes.

Notas

  1. O projeto Obras Raras do Cinema Negro da Década de 70 foi lançado em 2006, reunindo longas-metragens dirigidos por Antunes Filho (Compasso de Espera, 1973), Antonio Pitanga (Na Boca do Mundo, 1978), Zózimo Bulbul (Referências, 2006), Ola Balogun (A Deusa Negra, 1978), Waldir Onofre (As Aventuras Amorosas de um Padeiro, 1975) e o episódio II, Vida Nova… Por Acaso, de Um é Pouco, Dois é Bom, de Odilon Lopez. Organizado por Zózimo Bulbul, Biza Vianna e Ruth Pinheiro, o lançamento da coletânea foi realizado em 18 de dezembro de 2006, no Cine Odeon, Rio de Janeiro, junto à exibição do curta Referências, segundo publicação do blog Quilombo News. (Disponível em: https://quilombosnews.blogspot.com/2006/12/filme-referncias-direo-de-zzimo-bubu.html)
  2. A mesa-redonda sobre o restauro de Um é Pouco, Dois é Bom ocorreu na Cinemateca Portuguesa, em 21 de outubro de 2024, com a participação de Lorenna Rocha, Vanessa Lopez, Tiago Baptista e o cineasta Lincoln Péricles, durante a edição de 2024 do DocLisboa.
  3. A memória do programa está disponível na plataforma INDETERMINAÇÕES. Disponível em: https://indeterminacoes.com/sessoes/dedicar-uma-sessao-a-quem-dizia-nao-gostar-de-cinema-sessao-indeterminacoes.
  4. Em julho de 2025, apresentamos a sessão especial Cinemateca Brasileira convida INDETERMINAÇÕES, reunindo, pela primeira vez, as duas restaurações até então conduzidas pela plataforma.

Referências

NEVES, David A. O cinema de assunto e autor negro no Brasil. In: SIQUEIRA, [Nome completo] et al. (org.). Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (20.: 2018: Belo Horizonte, MG). Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018. p. 183-186.