Quando a rua vira casa: a cidade também é da nossa conta

O curta-metragem Quando a rua vira casa, dirigido pela jornalista Tetê Moraes em sua estreia como diretora – após voltar do exílio –, foi filmado em 1980 no Rio de Janeiro, como parte dos resultados de uma pesquisa coordenada pelo arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos e pelo antropólogo Arno Vogel, que assinam o roteiro juntamente com o também antropólogo Marcos Antonio de Mello. Na década de 1960, Carlos Nelson havia fundado o escritório Quadra Arquitetos e vinha trabalhando com a urbanização de favelas, entre as quais uma no bairro do Catumbi.

O documentário mostra justamente o cotidiano de um Catumbi em transformação, devido a grandes obras viárias voltadas ao transporte sobre rodas. Os velhos moradores, daquela que outrora fora chamada Cidade Nova, viam suas casas e seus espaços de convívio em vias de um desaparecimento que não parecia ser possível deter. Mais ou menos na mesma época, em São Paulo, o arquiteto e artista Flávio Império filmava o velho bairro do Bixiga, também sendo atravessado por uma estrutura viária monumental, o Minhocão, mostrando os escombros das demolições que depois ele usaria como cenário da peça Na Selva das Cidades (de Bertolt Brecht), montada pelo Teatro Oficina, sediado naquela região.

No filme do grupo carioca, após tomadas de longe, em que inicialmente vemos sobrados e casinhas ao som de um chorinho, logo aparecem avenidas de tráfego rápido, túneis e viadutos, filmados com o som direto do ruído desagradável dos carros em velocidade. Corta-se para uma fotografia antiga, e a voz de um narrador apresenta a Casa Paroquial do Catumbi, um velho edifício colonial demolido para dar lugar à Igreja da Salete, ao lado de outras fotografias que deixam ver um bairro denso de casas térreas, sobrados e alguns poucos edifícios maiores, entre eles uma velha fábrica de açúcar, da qual só sobraria a chaminé, uma praça, algumas casas. 

Ao primeiro narrador soma-se outra voz: trata-se de um diálogo que narra as demolições que o bairro vinha sofrendo desde a década de 1960, quando, para construir o túnel Santa Bárbara, uma boa parte daquele casario e até a velha Igreja da Conceição foram postos abaixo. Assim, ficamos sabendo que os moradores precisaram se organizar, reclamar com o governador, fundar uma associação, em uma palavra: lutar para permanecer. E que, ainda assim, uma boa parte teve que sair dali definitivamente, embora alguns dos desalojados tenham conseguido ser realocados em um conjunto habitacional construído em um dos terrenos remanescentes. 

Financiada pela Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) e realizada pelo Centro de Pesquisas Urbanas do IBAM (Instituto Brasileiro de Administração Municipal), a pesquisa “Espaço social e lazer: estudo antropológico e arquitetônico do bairro do Catumbi” é mencionada no filme como “A apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro”. Nela, investigava-se o cotidiano do velho bairro do Rio de Janeiro – antes um pouco excêntrico aos vetores de desenvolvimento da zona sul, situado ao pé do morro de Santa Teresa – que, com a abertura do túnel e com um novo projeto para ligá-lo à Avenida Brasil e à ponte Rio-Niterói, poderia se transformar em um lugar de interesse para investimentos da iniciativa privada. Além do filme, os responsáveis publicaram um livro com o mesmo nome, detalhando os resultados da investigação.

Logo descobrimos que as vozes são as dos próprios Carlos Nelson, Vogel e Mello, filmados no escritório, discutindo, a partir da observação das velhas fotografias, o avanço predatório do mercado imobiliário. Explicam o que acontecera ao bairro por meio da “renovação urbana” promovida pelo Estado: “Aquelas terras começaram a parecer boas demais para aquele tipo de gente.” O arquiteto e os antropólogos explicam que querem, com a pesquisa, testar as teorias urbanísticas modernas – aquelas experimentadas em Brasília – em relação aos espaços de lazer de um velho bairro onde não há lugares particularmente desenhados para tal. Aquela forma urbana herdada de tempos passados contrapunha-se aos novos conjuntos habitacionais modernos, onde as funções pré-determinadas pelo desenho do arquiteto, em tese, garantiriam melhores condições de uso e fruição. 

A encenação da conversa serve para criticar duas soluções modernistas: primeiro, numa cooperativa do BNH no próprio Catumbi, em que os prédios de apartamentos, todos iguais, estão implantados em terrenos cercados por carros, “ocupados por gente nova, que não tinha nada a ver com o bairro”; e, em seguida, no imenso conjunto Selva de Pedra, recém-inaugurado no Leblon. Neste caso, tratava-se de quarenta edifícios, construídos no terreno onde antes ficava a Favela do Pinto, para receber uma classe média que crescia na cidade, e que eram filmados de modo a agigantar sua presença na paisagem carioca. Se, do Catumbi, reconhecemos as montanhas do Rio, no Selva de Pedra, apenas vemos fachadas cheias de janelas e ruas cheias de carros, numa paisagem indistinta. Uma moradora desse conjunto diz que a pracinha do condomínio [até] é boa – vemos um grande terreno retangular vazio, um par de brinquedos soltos num espaço árido e pouco aprazível –, mas que seria melhor se fosse cercada para dar mais segurança. Ao final, perguntada se gostava de morar ali, diz que prefere a Barra ou o Recreio, bairros da expansão para a zona oeste, para onde gostaria de poder se mudar. A era dos condomínios fechados chegava. No próprio conjunto do Catumbi, cercas, grades e “uma imensa portaria” passam a definir o que é privado e o que é público, às custas de privatizar a própria rua.

Entretanto, se o tema da pesquisa é o lazer, essa questão não apenas perpassa as entrevistas e conversas, mas surge também nas imagens captadas. Lazer, para aqueles profissionais da cidade, é onde há espaço no cotidiano, “não se acerta com regulamentos impostos de fora”. Tetê Moraes também filma o arquiteto e os antropólogos conversando e caminhando pelo Catumbi, escutando o que os moradores estão pensando sobre as transformações que estão vivendo, flagrando a mudança que se avizinha em seus modos de vida, embora haja numerosas permanências: enquanto alguém comenta que todo prédio precisa ter porteiro, porque ele é “um guarda”, e diz que, nas ruas, “nós somos os vigias uns dos outros”, o que vemos na tela é uma velha apontadora do jogo do bicho, um aglomerado na porta de um boteco, o dia a dia de um bairro comum. Moraes filma a molecada empinando pipa, garotas saindo da escola e a paquera do guardador de carro, com uma câmera que entra pelas ruas e mostra a vida urbana em pleno funcionamento.

De volta ao escritório – a partir de uma sequência de fotografias de uma rua, fachada a fachada das casas –, os pesquisadores discutem a etimologia da palavra “rua” e os sentidos da palavra “casa”, para, dali, completarem: “Sabe que uma casa às vezes vira rua? Quando o espaço privado vira extensão do público ou é tratado dessa forma (...) e às vezes acontece o contrário, a rua vira casa.” A narração em off, feita pelo arquiteto, dá a vez ao morador, que conta como se sente em casa quando está no Armazém São José, um misto de secos & molhados com botequim. Naquele bairro, até o trabalho pode, às vezes, se confundir com lazer: uma cervejinha durante o trabalho, outra cervejinha no lazer. As filmagens, ora captadas ao rés do chão, ora do alto, em um sobrevoo por cima dos velhos quintais, vão mostrando o entra e sai da criançada por portas sempre escancaradas, o burburinho das ruas, gente sentada em cadeiras na calçada, uma conversa aqui, outra ali, encontros não planejados, casas e ruas que se confundem. Fronteiras porosas de um espaço comunitário e coletivo, num bairro em que os moradores mantinham relações que vinham de décadas, ameaçados pelo poder público, que os via como empecilhos ao desenvolvimento urbano.

As novas estruturas viárias metropolitanas cortaram o Catumbi em dois e eliminaram dois terços de sua área. As demolições expulsaram a população, e novos moradores – favelados e desterrados – haviam se instalado nas casas que sobraram entre os escombros. A ideia de degradação é operativa para a expulsão daqueles que resistiram. Mas, organizados em uma associação de moradores, eles conseguem, pelo menos, se manter ali, em um pequeno conjunto habitacional (na Rua do Chichorro): um predinho logo cercado por grades e com uma portaria para evitar a entrada de estranhos. O país mudava: as guaritas passavam, cada vez mais, a fazer parte da paisagem urbana nas grandes cidades. 

Carlos Nelson, por meio do escritório Quadra, vinha de uma atuação pioneira na urbanização das favelas do Rio, entre elas a do Catumbi, em 1964. No início dos anos 1970, voltara ao bairro para uma consultoria à Associação de Moradores, que vinha lutando, desde a década anterior, contra o plano de renovação urbana que parecia destruir a vida do bairro. Em 1979, revisita novamente o Catumbi, agora como um dos estudos de caso que analisa em seu mestrado, defendido no Programa de Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ e publicado como Movimentos urbanos no Rio de Janeiro (1981). É no contexto dessa aproximação à antropologia, no momento em que as favelas das grandes cidades se reorganizavam para permanecer nos territórios ocupados, que o filme é feito, quando ele próprio passa a chamar-se “antropoteto” e a recorrer às ferramentas da etnografia para as intervenções urbanas que passaria a projetar. É um dos pioneiros nos trabalhos de urbanização de favelas, ao reconhecer a impossibilidade de desmontá-las e levá-las para as margens das cidades, defendendo sua permanência por meio do trabalho minucioso no contato com os moradores – chamados a participar dos projetos. No Peru, John Turner, um arquiteto inglês que perambulou pela América Latina, proclamaria: Vivienda: todo el poder para los usuarios, título de seu livro lançado em 1977, lido e relido em todo o continente.

No filme, a certa altura, D. Olga Pereira, que se apresenta como a presidente de honra da tradicional Festa do Divino da Irmandade do Espírito Santo do Catumbi, relembra como a festa acontecia – e mostra o altar, agora montado na rua, pois a capela também fora demolida. Filmado em preto e branco, o argumento se alterna entre uma etnografia dos velhos modos de vida e das permanências possíveis e a denúncia das transformações impostas de fora, ancoradas nas técnicas do planejamento metropolitano e materializadas na arquitetura e no urbanismo modernos. 

A crítica à arquitetura e ao urbanismo racionalistas do movimento moderno encontrava respaldo no reconhecimento de uma falência materializada em cidades que começavam a se tornar inadministráveis, provocando, no mundo todo, uma revisão de seus preceitos. Em 1972, nos Estados Unidos, o imenso conjunto habitacional Pruitt-Igoe seria demolido. No Brasil, o projeto de Brasília, inaugurado como realidade urbana em 1960, enfrentava as vicissitudes do regime militar. A concentração de capital e de desenvolvimento industrial no centro-sul do país impossibilitou que a nova capital se tornasse, de fato, um polo de desenvolvimento mais interiorizado, promovendo o desejado equilíbrio regional. Favelas cresciam em todas as grandes cidades, e as grandes estruturas urbanas eram também formas de incentivar uma industrialização via construção civil, absorvendo parte daqueles novos trabalhadores favelados de baixa qualificação. Uma roda-viva que o filme, de maneira algo confusa, busca denunciar e na qual ainda nos encontramos. 

A cena final, entretanto – a câmera passeando entre o povo deitado nos taludes gramados que circundam as novas avenidas, crianças andando de bicicleta nos estacionamentos do sambódromo –, mostra que, a despeito das violências, a vida continua. O filme, podemos dizer, busca comunicar que a dicotomia público-privado é mais um projeto das elites, que depende de tantos aparatos de segurança, do que a realidade do universo urbano. A ocupação popular do Catumbi seguia ali, manifestada de distintas formas, transformando a rua na continuidade da casa e trazendo elementos para seguirmos pensando em horizontes urbanos mais humanizados.

Currículo

Ana Castro e Nilce Aravecchia

são professoras da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da USP e coordenam o Grupo de Pesquisa Cultura, Cidade e Arquitetura na América Latina (CACAL USP-CNPq).

Referências

ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural. Carlos Nelson Ferreira dos Santos. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoas/31305-carlos-nelson-ferreira-dos-santos. Acesso em: 8 out. 2025.

SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos; VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da Silva. Quando a rua vira casa. São Paulo: Projeto Arquitetos Associados, 1985.

OLIVIERI, Silvana. Quando o cinema vira urbanismo: o documentário como ferramenta de abordagem da cidade. 2007. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.

TURNER, John. Vivienda: todo poder para los usuarios. Madrid: Hermann Blume Ediciones, 1977.