Retratos de nós mesmas: documentário e identidade lésbica em Nova Iorque nos anos 1970 por Norma Bahia Pontes e Rita Moreira

Quando as brasileiras Norma Bahia Pontes e Rita Moreira chegaram em Nova Iorque no início dos anos 1970, a cidade era um centro político e artístico em ebulição. Com o lançamento dos modelos da câmera Portapak da Sony em 1967, a recente tecnologia do vídeo se popularizava como forma de expressão e visibilidade política entre ativistas e grupos socialmente marginalizados. Na região de Nova Iorque, proliferavam os centros comunitários de mídia e vídeo (BOYLE, 1997), como o Global Village Resource Center, que ofereciam treinamento em vídeo a artistas e ativistas¹. Ao mesmo tempo, o movimento feminista com fôlego renovado desde o fim da década de 1960 aumentava sua adesão e organização social.

A vontade de aprender a técnica do vídeo, o interesse pelo movimento feminista e o contexto repressivo da ditadura empresarial-militar no Brasil, que impunha padrões heteronormativos e machistas por meio da moral e dos bons costumes, levaram Bahia Pontes e Moreira a se mudarem para Nova Iorque em 1972. A possibilidade de realizar documentários em dupla com uma câmera portátil, sem processamento de negativos, fascinou a dupla. Crítica e teórica próxima ao Cinema Novo nos anos 1960 e diretora de três filmes engajados em película (Perez, 2021), Bahia Pontes disse que "sonhava com um dia que pudesse usar a câmera com a mesma facilidade, a mesma liberdade, com que usava uma caneta para escrever”². 

Ao mesmo tempo, seu interesse pelo movimento lésbico-feminista em Nova Iorque despertou quando viu uma fotografia de uma manifestação, onde mulheres seguravam um cartaz com os dizeres: “I'm a lesbian and I'm proud of it” (Sou lésbica e tenho orgulho disso). No entrecruzamento entre vídeo e feminismo, os documentários Lesbian mothers (1972), Lesbianism feminism (1974), She has a beard (1975) e The apartment (1974/1975), codirigidos por Bahia Pontes e Moreira, são vídeos pioneiros desse momento histórico que documentam as reivindicações lésbicas e retratam de forma complexa os modos de vida e as subjetividades da vibrante comunidade lésbica de Nova Iorque.

Ao chegarem nos Estados Unidos em 1972, Bahia Pontes e Moreira participaram de um workshop de vídeo oferecido pela New School of Social Research e pelo Global Village, e estabeleceram uma parceria afetiva e criativa – codirigiram uma dezena de documentários em vídeo, nos quais Bahia Pontes operava a câmera e Moreira era responsável pela edição do texto das entrevistas, o ponto de partida para o árduo processo de montagem analógica que realizavam juntas.

Lesbian mothers (1972), um documentário que retrata a luta de mães lésbicas pela custódia de seus filhos após assumirem sua lesbianidade, foi o primeiro desses vídeos. Além de mostrar uma das primeiras representações do sexo entre mulheres a partir de uma perspectiva lésbica, trouxe inovações significativas na representação da maternidade lésbica. O documentário foi pioneiro ao discutir o tema da maternidade por meio de experiências de mães lésbicas, criticando a heterossexualidade compulsória e desafiando a família nuclear. Utilizando montagem dialética, confronta os insultos lesbofóbicos capturados em entrevistas de rua ao retratar a vivência familiar harmoniosa entre mães lésbicas e seus filhos. A narrativa também aborda questões políticas, legais, econômicas e psicológicas enfrentadas por mães lésbicas, incorporando vozes contrárias à patologização da homossexualidade, como Jill Johnston, escritora e ativista lésbica.

As longas sequências inicial e final do vídeo são pioneiras em retratar o sexo lésbico em uma longa cena de intimidade e afeto entre duas mulheres ao som de “Just like a Woman”, de Nina Simone. Essa representação íntima, capturada pela câmera de Bahia Pontes em close-ups e planos detalhados, transmite a conexão afetiva entre as mulheres, transcendendo os limites convencionais do enquadramento e explicitando detalhes tão importantes para o sexo entre mulheres, como os toques das mãos, as texturas da pele, a fricção de coxas e mamilos e o roçar de línguas e cabelos.

A visibilidade lésbica no início dos anos 1970 era um tema delicado até mesmo dentro das organizações feministas, em que as lésbicas eram alvos de frequentes ataques por parte de lideranças heterossexuais³. Realizado ao longo de 1973, Lesbianism feminism (1974) pode ser entendido como uma resposta a esses ataques. A abertura do vídeo apresenta mulheres nas ruas de Nova Iorque respondendo à pergunta “o que você acha da posição das lésbicas no movimento feminista?”, seguida por uma longa sequência de planos de uma manifestação lésbica ao som de “Sisters, o sisters", de Yoko Ono. Essa sequência anuncia o estilo da fotografia de Bahia Pontes que enquadra em planos próximos ou close-ups as manifestantes, suas faixas, integrantes do Lavender Menace, butches e mulheres que se beijam, como se o desejo de sua câmera fosse captar de uma vez por todas a existência dessas mulheres e de seus discursos.

Com entrevistas de lideranças e mulheres que aderiram ao feminismo lésbico, além de registros de espaços de vivência lésbico-feminista, onde circulavam as principais ideais, estratégias de militância e cuidados, o documentário enuncia a possibilidade do feminismo lésbico interseccional, e não como um movimento monolítico simbolizado na mídia pelas mulheres brancas heterossexuais e de classe média do NOW (National Organization for Women), que representavam o movimento no fim dos anos 1960.

Personalidades lésbicas da época, como a escritora e militante Ti-Grace Atkinson, a escritora Bertha Harris, a ativista Jean O'Leary e Margaret Sloan-Hunter, ativista antirracista, feminista e lésbica, falam sobre ideias, estratégias e ações do feminismo lésbico. A montagem enseja o feminismo separatista, prevalecendo a visão de que a solução contra o sexismo e o patriarcado consistia numa aliança com outras mulheres que possibilitasse a saída do sistema e a construção de um futuro lésbico em separado. 

Nesse sentido, o documentário mostra e enfatiza ideias que circulavam entre as lésbicas, além de ações que tinham popularidade entre grupos lésbico-feministas para a possível construção desse futuro em separado, seja nas discussões dos grupos de conscientização feminista, na prática de defesa pessoal, na discussão da partenogênese – que oferecia metaforicamente às lésbicas uma possibilidade de libertação da questão reprodutiva –, na defesa de uma militância de coalizão interseccional – com participação das feministas lésbicas negras – e, sobretudo, no registro da vida comunitária entre mulheres longe dos grandes centros urbanos. Assim, o vídeo documenta o início do chamado feminismo cultural, prática observada a partir de meados da década de 1970, baseada na criação de comunidades e uma cultura de mulheres como estratégia de mudança social.

Lesbianims Feminism foi exibido pela primeira vez no festival feminista Women for Women, organizado por Bahia Pontes e Moreira numa galeria do Soho no início de 1974, no qual foram exibidos vídeos, filmes, fotografias e slides de artistas mulheres. Organizado por mais de um ano, com chamadas de trabalhos em publicações feministas e lésbicas da época, e apresentando uma curadoria de artistas feministas de outros países, o festival acabou sendo alvo de ataques e boicote de veículos da imprensa alternativa que eram dominados por homens. O Village Voice não só boicotou o cartaz original do festival, como publicou informações incorretas ironizando o evento. Via publicações da imprensa feminista, sabe-se que outros veículos atacaram o festival e sua organizadoras de diversas maneiras, inclusive criticando a aparência de Norma Bahia Pontes, que na época usava bigode (PEREZ, 2022).

Preocupadas com o que chamaram de "a dominação masculina da imprensa", um grupo de mulheres, incluindo Bahia Pontes e Moreira, passou a se encontrar regularmente para discutir temas relacionados à imagem das lésbicas e da comunidade lésbica na mídia. Essa mobilização criou o efêmero coletivo C.L.I.T. (Collective Lesbians International Terrors), que publicou dois manifestos em jornais feministas da época, conclamando as mulheres, sobretudo as lésbicas, a ocupar um lugar ativo na produção de textos, pensamentos e mídia.

Bahia Pontes e Moreira seguiram o trabalho underground no vídeo, meio cuja principal vantagem era sua abordagem alternativa em relação às indústrias cinematográficas e televisivas dominadas por sujeitos “universais” brancos e masculinos. Como apontado por Murray (2021), as feministas utilizavam o vídeo por considerarem um recurso capaz de proporcionar uma linguagem emancipatória, disruptiva e de reinvenção da política hegemônica, que estava se tornando diluída e complacente até mesmo em setores do Women’s Liberation.

Em 1974, Norma Bahia Pontes recebeu a prestigiosa bolsa da Fundação Guggenheim pelo seu trabalho como cineasta nos anos 1960. Isso possibilitou a compra de uma câmera Sony Portapak e fitas de vídeo que foram utilizadas para produzir os vídeos da série Living in New York City, entre eles She has a beard (1975) e The apartment (1975/1976), ambos realizados em colaboração com mulheres que partilhavam experiências próximas às de Bahia Pontes e Moreira. 

Em She has a beard (1975), Hope, uma mulher que tem barba, entrevista outras mulheres nas ruas de Nova Iorque perguntando o que pensam a respeito de pelos faciais e como os eliminam. Intrigadas pela figura de Hope e a decisão de exibir sua barba pelas ruas da cidade, algumas mulheres aceitam o convite de Hope para abordar, em público, algo até então relegado aos espaços privados: os bastidores da construção da feminilidade padrão. Antecipado pelo vídeo de Bahia Pontes e Moreira, esse tema aparece em outras obras feministas realizadas posteriormente. Também utilizando o dispositivo da performance, Cool hands, warm heart (1979), filme performance de Su Friedrich, é um dos títulos que trata de escancarar a depilação, levando ao espaço público os processos que acontecem normalmente no espaço privado.  

Nos anos 1970, as feministas expandiram a discussão do ideal de beleza em direção a uma análise social e cultural do corpo e dos padrões de gênero, o que ficou conhecido como "política da aparência". Enquanto no vídeo de Bahia Pontes e Moreira, realizado em 1975, a performance de Hope envolve o encontro, a entrevista e a interação próxima, o filme de Friedrich delimita o espaço da performance: uma mulher executa uma série de rituais de beleza como depilação de pernas e axilas num palco montado numa rua lotada.

A militância das diretoras e a simetria compartilhada com as mulheres lésbicas retratadas nesses vídeos ficam evidentes quando Hope é insistentemente questionada sobre o público-alvo ou canal de TV para o vídeo. Ela responde mais de uma vez: "Para nós mesmas". Essa resposta de Hope revela a colaboração e a confiança mútua entre as diretoras e as mulheres retratadas, o que marcaria a produção de documentários feministas da época. Nessa dinâmica de identificação mútua ou partilha de objetivos políticos entre diretoras e retratadas, o uso das estratégias do cinema vérité ou cinema direto é deslocado para uma perspectiva que "coloca a cineasta em uma relação mútua e não hierárquica com seu sujeito (tais filmagens não são vistas pelo ato do artista masculino de ‘apreender’ o sujeito e depois apresentar sua ‘criação’) e indica o que ela espera que seja sua relação com seu público" (LESAGE, 1978). 

Essas discussões precederam os pensamentos em torno de corpes queer/kuir/cuir, da dimorfização sexual. Junto com Lesbian mothers e Lesbianism feminism, She has a Beard aprofunda a documentação da comunidade lésbica na cidade, denunciando as tensões com o feminismo liberal heterossexual e branco, e retratando experiências individuais a partir da dissidência sexual, como o caso da performer Forest Hope. 

She Has a Beard atualiza o registro da iconografia secular da mulher barbada colado ao debate sobre os códigos de feminilidade, potente entre os movimentos feministas. No início dos anos 1970, elaborar a fluidez de gênero para além do binarismo era algo desafiador. Enquanto as militâncias debatiam (e rejeitavam) a transexualidade e suas performatividades como o travestimento ou a tranvestilidade, as lésbicas masculinizadas, butchs, bichas efeminadas, as travestis seguiam existindo e experimentavam atitudes, corporalidades e performatividades, ainda que polarizadas com tensão entre feminino e masculino.

De forma mais específica, parte da vasta produção videográfica, entre os quais se incluem os vídeos de Bahia Pontes e Moreira, pode ser compreendida como uma experiência predecessora do que Patricia White (2008) designou Cinema Menor Lésbico (Lesbian Minor Cinema), onde o qualificador "menor" ressoa como "queer", opondo-se ao dominante, ou seja, aquele que "desterritorializa" a sexualidade e a expressão; aqueles ou aquelas que, por não serem parte do grupo dominante, teriam mais possibilidade de expressar outra comunidade possível, de forjar os meios para outra consciência e outra sensibilidade.

Essa produção é caracterizada por filmes em formato curto, de baixo orçamento ou de pequeno porte, com recursos limitados empregados de forma politizada, com narrativa e abordagem mínimas em práticas autorais para criar formas de inscrição de desejo, tal como visto nos documentários de Bahia Pontes e Moreira. 

Suas práticas representam a interseção de autoria e público, forma e assunto, desejo e identificação, e suas jovens protagonistas femininas ativamente se engajam no processo de exclusão pelo mainstream, inclusive como opção política. No mesmo sentido, Brunow (2019) clama para o estranhar (queering) das memórias audiovisuais que circulam na sociedade, a fim de diversificar as narrativas do passado e contribuir para a polivocidade da memória cultural, visto que "os filmes caseiros e amadores têm a capacidade de combater as representações estereotipadas da mídia e de esculpir espaços discursivos para vidas queer".

Notas

[1]  Além do próprio Global Village, alguns dos centros utilizados na realização dos vídeos de Bahia Pontes e Moreira foram Dawson College (Montreal, Canadá) e Artists' TV LAB Rhinebeck.

[2] BAHIA, Norma. Com o vídeo dá para "escrever". Folha de São Paulo, São Paulo, 01/01/1978, p. 39.

[3] Em 1973, Betty Friedan insinuou no The New York Times Magazine que a CIA e o FBI enviaram lésbicas como infiltradas para prejudicar o movimento das mulheres (FRIEDAN, Betty. Up from the Kitchen Floor, The New York Times Magazine, Nova Iorque, 04/03/1973.)

Referências

BOYLE, Deirdre. Subject to Change: Guerrilla Television Revisited. New York: Oxford University Press, 1997.

BRUNOW, Dagmar. Queering the archive: Amateur films and LGBT+ memory. In: STIGSDOTTER, Ingrid (org). Making the Invisible Visible. Lund: Nordic Academic Press 2019.

LESAGE, Julia. The political aesthetics of the feminist documentary film. Quarterly Review of Film Studies, v. 3, n. 4, p. 507-523, 1978.

MURRAY, Ros. Raised Fists: Politics, Technology, and Embodiment in 1970s French Feminist Video Collectives. Camera Obscura: Feminism, Culture, and Media Studies, 2016.

PEREZ, Lívia. Do Cinema Novo ao vídeo lésbico feminista: a trajetória de Norma Bahia Pontes. Rebeca, v. 9, n. 2, p. 20-45, jul.-dez. 2020.

PEREZ, Lívia.  Encontros e reencontros com Norma Bahia Pontes: realizações, deslocamentos e interlocuções de uma cineasta, videomaker e ensaísta. Tese (doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2022.