Sonhar (n)as redes

Topawa (Kamikia Kisedje e Simone Giovine, 2019)

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Acabava de assistir, alarmado, a O dilema das redes (Jeff Orlowski, 2020), quando recebi do forumdoc.bh Topawa (2020), filme dirigido por Kamikia Kisedje e Simone Giovine, que chegou como um alento, uma brisa.  Nada mais distante, nada em comum entre os dois documentários: o primeiro, um blockbuster da Netflix, cujos entrevistados, executivos e artífices das principais plataformas das chamadas “redes sociais” (na verdade, plataformas de “monetização”, como eles dizem), se mostram assustados com o monstro que ajudaram eles próprios a criar. O segundo, um curta-metragem concentrado em mostrar, em sua discreta e complexa trama, a feitura da rede de tucum (topawa) entre os Parakanã, na Terra Indígena de Apyterewa. Se no primeiro filme, entrevistados dizem querer ver seus filhos longe do que resultou do seu trabalho, o segundo se encerra com a imagem da mãe parakanã a embalar e amamentar o filho na rede que as mulheres tecem elas mesmas.

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Duas incomensuráveis tecnologias, dois modos muito distintos de constituir redes sociais que me desculpo por não resistir em aproximar: em comparação com as redes ameríndias (firmemente tecidas, acolhedoras, ao mesmo tempo, abrigo e mirante para o céu, para a luz do sol que adentra pelas frestas a compor outras tramas sobre as tramas dos tecidos; antenas para os sonhos), hoje, o sinal mais pungente do fracasso, da falência civilizacional do Ocidente são as redes que construímos e nas quais nos enredamos. Celebrando-se como “abertas” e “democráticas”, as redes sociais na internet revelam-se asfixiantes (mais ainda durante a pandemia): nos aprisionam no domínio do trabalho e do consumo precarizados; nos impõem permanente vigília, sobressaltam nosso sono, fazendo dos sonhos a continuidade atormentada do estresse do dia. Constituem o cerne daquilo que Jonathan Crary (2016) caracterizou como capitalismo 24/7 (24 horas por sete dias na semana). Dormimos em sleep mode, ele nos diz, “em modo de consumo reduzido e de prontidão”, quando “nada está de fato ‘desligado’ e nunca há um estado real de repouso” (p. 22 e 23).

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Não há como não nos lembrar, nesse ponto, da conhecida formulação de Davi Kopenawa (2015, p. 390).  Os brancos, observa, dormem muito, mas só conseguem sonhar com eles mesmos. Dormem deitados em camas apoiadas no chão, onde se agitam com desconforto.  Já as redes yanomami, estão suspensas pelas cordas, antenas por onde desce o sonho dos xapiri¹.

Em meus sonhos, os espíritos amarravam as cordas de minha rede bem alto no céu. Era como se longas antenas de rádio fossem esticadas ao meu lado e funcionassem como caminhos para os xapiri e seus cantos chegarem até mim, assim como o caminho das palavras do telefone dos brancos. Eu ficava deitado, bem calmo, mas sentia minha rede crescendo e crescendo. Depois, era como se eu também estivesse ficando cada vez maior, junto com ela. Apesar de eu não passar de um menino, tinha a sensação de ficar imenso. (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 90)

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Mais do que lugar de repouso e descanso, amparo para o sono, para além de sua inegável sofisticação estética, as redes ameríndias são “sociais” porque engendram uma miríade de relações, que seexpandem no espaço – dos gestos, das palavras, dos cantos aos percursos pelos rios e igarapés, às trilhas pela mata que se abre como cosmos, constituído por uma multiplicidade de mundos e seus guardiões. E que se expandem no tempo – cada entrada na mata, cada gesto de coleta do tucum, cada nó que enlaça um e outro fio – atualizam, diferindo no presente, gestos, excursões e encontros passados. São assim também gestos de resistência, porque produzem o tecido, o casulo onde se aninha o futuro.

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Como dirá Naine Terena (2019, p. 56), a rede provoca a reflexão sobre a experiência social indígena:

não cabe mais ver as redes como espaço de descanso e decoração. Necessita-se admirar sua representação e compreender que materialidade é a prova da resistência ameríndia. Que por trás da beleza e da forma existem focos de resistência. Que tecer ou criar a partir delas é arte, é ativismo. É atividade. É sobrevivência. É ser.²

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Em sua conferência de abertura às atividades do semestre letivo na UFMG, em modo remoto, Ailton Krenak estabelece uma aguda distinção entre ciência e tecnologia, uma irmã gêmea da outra, tendo a primeira nascido um pouco antes da segunda.

Nas nossas histórias de criação do mundo, os irmãos gêmeos têm uma pequena diferença de parto, e aquela pequena diferença, essa fração do tempo que separa o nascimento de um e de outro, é muito significativa. Um desses heróis observa o mundo, pensa o mundo, e o outro sai maquinando o mundo, geralmente provocando desastres. Eu já me referi a um fragmento de uma história muito grande e bonita do povo Maguta (que são os Tikuna do Rio Solimões), em que o irmãozinho apressado, mais novo, sobe no alto de uma palmeira e o irmão que nasceu um pouquinho antes dele, mais velho, está cá no chão e grita: ‘cuidado com o que você vai dizer aí em cima.’ Porque ele sobe no alto da palmeira e, toda vez que pronuncia alguma palavra, as coisas surgem; ele cria o mundo com a palavra (como é comum em muitas das nossas histórias). E lá de cima da palmeira, jaci, ele grita: ‘lá vêm os nossos inimigos, eles vão acabar com a gente!’

Ciência e tecnologia, continua Krenak, são quase simultâneas, mas não fazem a mesma coisa. Com a industrialização, a tecnologia disparou na frente da ciência e começou a governar o mundo. “A ciência tem uma voz sensível à complexidade dos povos e da própria ecologia do planeta. A ciência reclama um cuidado com a vida, que a tecnologia não ouve. A tecnologia tem pressa em antecipar a ideia de progresso e de futuro.³”

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As redes ameríndias são tecnologias que não se dissociam dos saberes e das práticas sociais de onde nascem, não se apressam nem se adiantam a eles: tecem e embalam estes saberes (no sentido de produzir com eles um vai-e-vem), mantendo-os conectados aos ritmos do cotidiano e da natureza. Permitem, ao mesmo tempo, que o corpo viaje a longas distâncias, por meio da tecnologia do sonho.

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As redes ameríndias amparam, acolhem, transformam, curam. Elas são também armadilhas, como nos ensinou Alfred Gell (2001), a partir da rede de caça Zande enrolada na galeria de uma exposição curada por Susan Vogel. A rede captura e embaralha nossos (pré)conceitos acerca do que seja arte ou artefato. Em um filme, ela se esquiva a ser capturada pelo quadro, conduzindo a câmera e o espectador em seus enredos: neles, o que se quer tomar como objeto de conhecimento, abrupta ou sutilmente, ascende à posição sujeito. Afinal, a rede tece os gestos que a tecem. O corpo deitado na rede “distorce o tecido” que molda sua matéria. (TERENA, 2019, p. 56)

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Em Topawa, acompanhamos as mulheres parakanã, de diferentes gerações, em seu trabalho de tecer as redes de tucum (antes, saem em busca do broto da palmeira, em longas viagens pelos rios e igarapés, afluentes do Xingu). A câmera filma em direto e o documentário poderia se filiar à tradição do filme etnográfico, produzindo, contudo, sutis mas decisivos deslocamentos e inversões.

O gesto permanece sendo o de enquadrar e, por meio do enquadramento, observar atentamente. O enquadramento, sabemos, é uma operação central do cinema, como tecnologia moderna, que lança sobre o mundo um saber especulativo, tendo como primado a visão. Por meio dele – sempre uma violência, em alguma medida –, faz-se avançar o visível sobre o invisível; conhecimento e domínio sobre um indivíduo, um povo, um conjunto de saberes. Inescapavelmente, contudo, o enquadramento produz relação e se produz em uma relação. Enquadra-se o mundo que, no entanto, age no interior do enquadramento para, quem sabe, transformá-lo por dentro.

Topawa produz enquadramentos precisos, ciosos como os gestos de tecer que ele dá a ver. Aos poucos, o que é um quadro vai se abrindo e se mostrando um tecido de gestos, narrativas, cantos e percursos pelos rios e pelas matas. Como se do interior do quadro, uma rede fosse sendo tecida, em ato, transformando por dentro seus limites, suas bordas: fios se multiplicam e se expandem e o que seria uma técnica – aquela de fazer a rede com a fibra do tucum – distribui-se por linhas que constituem a vida das mulheres parakanã, em sua relação tão discreta quanto forte com uma multiplicidade de outras vidas.

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Tecer redes de tucum é tecer redes entre redes. Redes que não se deixam filmar sem que nosso olhar seja por elas enredado, armadilhado: desfiar a fibra, fiar o fio de tucum; rememorar e desfiar o fio de história, enquanto se enrola a linha na perna; mas antes, viajar pelo rio, que serpenteia pela floresta, ele mesmo uma linha a se desfiar em afluentes e igarapés; o próprio barco, uma rede flutuante que abriga anciãs, jovens e crianças;  o barco que voa, enquanto a voz narra, dando outra velocidade ao plano: “trabalhar com tucum não é rápido. Vamos muito longe para tirar ele do mato”.

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Que o filme se inicie pelo paciente fiar da planta, acompanhado do canto entoado por uma das mulheres, talvez seja para mostrar que, por entre esses eventos mínimos, descontínuos, o canto será fio de voz e memória ao qual outros se alinhavam. Fio que se canta no começo do filme, que desaparece, como a submergir na terra, até ser retomado, mais ao final, pela jovem, a pedido da anciã.

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Antes de se tornar rede, as linhas são cordas, nas quais as mãos tocam o silêncio, enquanto a jovem canta.

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Em Topawa, montar as imagens e as cenas (eventos curtos, incompletos, entrecortados) é menos estabelecer uma ordem, uma cronologia para uma prática – como se fosse possível organizá-la em uma sucessão de etapas – do que mostrar como essa prática é distribuída pelos gestos, pelas palavras e pelos cantos; como ela se distribui pelos espaços, do entorno da casa às excursões na mata; e pelos tempos, entrelaçando o presente ao passado, embalando o futuro com as linhas de outrora.

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No filme, o percurso pela mata para colher o broto de tucum atualiza o encontro entre os Parakanã (autodenominados awaeté) e os brancos, no caso deste grupo, datando do início dos anos 1980. Com ele, chegaram as redes de algodão, junto aos facões, às espingardas, às doenças, à dependência dos remédios e da assistência médica. “Não sabemos como o branco chegou até nós. Nós estávamos longe”, diz a anciã. Depois do contato, se aprofundaram as invasões de madeireiros, garimpeiros, fazendeiros e colonos. Quando da demarcação da Terra Indígena Apyterewa, as grandes empresas exportadoras de mogno abriram suas estradas para agricultores e fazendeiros pecuaristas. Hoje, quando, na sinistra reunião ministerial, Ricardo Salles defende deixar “passar a boiada”, fazendo da pandemia, oportunidade (bem ao gosto dos necropolíticos e necroeconomistas ultraliberais), os Parakanã se vêem diante de uma série de “coincidências”. Como contam Carlos Fausto e Paulo Bull, a fala de Salles dá-se um mês depois da demissão do diretor de Proteção Ambiental do Ibama, órgão que encampara uma megaoperação de retirada de garimpeiros e madeireiros ilegais de terras indígenas no sul do Pará. Uma delas, a T.I Apiterewa. Um pouco antes, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, havia determinado uma tentativa de conciliação entre invasores da T.I. e os indígenas, no caso, os Parakanã, proposta injustificável, já que a terra está demarcada, homologada e registrada, não sendo assim objeto de “negociação”⁴.

Passados tantos anos, com suas terras rasgadas por garimpos, pastagens e estradas ilegais, os Parakanã procuram hoje garantir o usufruto de seu território, sem no entanto ter sequer o direito de percorrê-lo sem receio, em virtude da presença de invasores. A sucessão infindável de embaraços jurídicos que se arrasta desde a década de 1990 exigiria uma prestação jurisdicional eficaz e imediata visando à proteção dos Parakanã e de seu modo de vida tradicional, conforme garante a Constituição da República. (FAUSTO; BULL, 2020).

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As redes sociais na internet vêm sendo, em alguma medida, ocupadas, “indigenizadas”, “aquilombadas”.  Por elas, durante a pandemia, nos chegam as vozes e imagens de lideranças, artistas e pensadores indígenas, quilombolas, sujeitos e coletivos negros e negras. Com seus saberes, suas ciências, ocupam as chamadas lives e, mesmo sendo os mais afetados pelo desamparo e pelos ataques aos direitos pelo atual (des)governo, são os que mais oferecem alternativas de reinvenção e reencantamento da política.

As redes me trouxeram, recentemente, imagens da escultura-instalação Entidades, que Jaider Esbell realizou durante o Cura – Circuito de Arte Urbana 2020⁵. Imagens que me fizeram abandonar momentaneamente a exaustão da quarentena diante do computador e caminhar até o viaduto Santa Teresa para ver as jiboias – sua pele a abrigar todos os desenhos – se enlaçando, como fios vivos e encantados, aos arcos de concreto. As jiboias que, nas narrativas de muitos povos, foram as que ensinaram as mulheres a tecer.

Pelas redes, pude ouvir também o trovão que atravessou a fala de Juliana Fausto, em um encontro de saberes com Wellington Cançado e Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, durante o 22º FestCurtasBH. Vindo de longe (ou de outrora), o trovão ecoou enquanto ela comentava Artes de viver em um mundo danificado⁶:

Os colonizadores olharam direto pra frente, enquanto destruíam povos nativos e ecologias. O terreno construído por esse futuro está abarrotado de fantasmas. Os cavalos precisam de antolhos físicos, dispositivos que empobrecem sua percepção e os falcões são encapuzados, para que, privados temporariamente de um sentido pra eles fundamental, agora na mão de outrem, tornem-se dóceis. Para esta humanidade, que se reivindica mestra destes animais, entretanto, bastou o feitiço do futuro único pra que todo o planeta se transformasse em coisa.

Sobre esse surpreendente encontro – entre o trovão e as palavras – Nêgo Bispo comentou adiante:

Quando os africanos foram trazidos para cá, através das outras coisas, se comunicaram com os indígenas. Através do vento, através das plantas, das pedras, através do cosmos, houve essa comunicação, e por isso a nossa existência e a nossa confluência. Eu fiquei muito feliz, Juliana, quando você falou ‘feitiço’, teve um grande trovão aí na sua casa. No momento que eu estou falando, é bem provável que vocês tenham ouvido o vento, porque aqui, de vez em quando, passa uma brisa. É dizer da gratidão de participar desse momento em que o trovão veio participar da nossa mesa⁷.

Eu mesmo vivi um desses momentos de beleza inesperada: mediando um encontro com Edgar Corrêa Kanaykõ promovido pelo forumdoc.bh, enquanto eu lia um trecho de sua dissertação de mestrado, o fotógrafo virou a câmera do celular para nos oferecer o entardecer do cerrado, em sua aldeia, na Terra Indígena Xakriabá. Gesto simples, que nos lembrou do espaço vital – cósmico – que existe e insiste fora das redes digitais, mas que vez ou outra irrompe, lampeja em seu interior.

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Imaginemos, por fim, como, de dentro de Topawa, nos olham e nos pensam os Parakanã: a rede ameríndia é também mirante, observatório, de onde os indígenas nos lançam seu olhar, nos indagam e se indagam onde queremos chegar com tudo isso.

Currículo

André Brasil

Professor do curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. Integrante do Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência e do comitê pedagógico da Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG.

Como citar este artigo

BRASIL, André. Sonhar (n)as redes. In: forumdoc.bh.2020: 24º Festival do filme documentário e etnográfico – fórum de antropologia e cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2020. p. 174-181 (Impresso); p. 176-183 (On-line).

Referências

CRARY, Jonathan. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu Ed., 2016.