“Todos esses pedaços de vida” – uma entrevista com Tetê Moraes 

Preparando-se para uma viagem ao Rio Grande do Sul, onde iria participar, filmando, das comemorações dos 40 anos de ocupação da Fazenda Annoni (primeiro grande acampamento do MST), Tetê Moraes encontrou, generosamente, tempo para uma entrevista, que realizamos online, no dia 7 de outubro de 2025. À transcrição dessa conversa, adicionamos o material de outra gravação com Tetê, realizada em julho de 2021, com foco na chamada “trilogia da terra” da cineasta (Terra para Rose, O sonho de Rose e Fruto da Terra). Na edição final, apresentada abaixo, Tetê Moraes discorre sobre a militância como jornalista no Brasil da ditadura; as experiências no exílio, durante a década de 1970, incluindo o encontro com o feminismo (praticado nas reuniões e trocas entre mulheres exiladas) e com a possibilidade de fazer cinema em Portugal pós-Revolução dos Cravos; o difícil retorno ao Brasil, com a anistia; o aprendizado prático do documentário, produzindo para televisões estrangeiras, e a experiência definidora de seu trabalho como documentarista: a realização de Terra para Rose (1987), registro pioneiro da luta no acampamento do MST na Fazenda Annoni, Rio Grande do Sul. “Um filme feito atrás da história, junto com a história” – como define a cineasta –, “e sempre na ótica das mulheres”.

Pensando em sua trajetória, do jornalismo ao cinema, gostaríamos de saber como se deu sua militância como jornalista durante a ditadura. 

Eu participei um pouco do movimento de jornalistas que havia na época. Muitos jornalistas estavam sendo perseguidos, não é? Vários já estavam presos. Eu trabalhei em vários lugares, mas, quando piorou a repressão, estava no Correio da Manhã, que já era um jornal muito visado, um jornal mais crítico. Naquele momento, tinha sido preso o Arthur Poerner, que era um jornalista importante do Correio. Pouco depois do Poerner, eu fui presa também. Mas, antes, já existia o movimento dos jornalistas, a gente fazia um jornalzinho, um panfleto, que era distribuído com notícias que não podiam ser publicadas, e havia algumas reuniões para combinar coisas, ver o que a gente podia fazer para denunciar o que estava acontecendo. Eu me lembro de que o Gabeira participou muito desse movimento. Uma vez, eu estava indo com o Gabeira, no meu carro, para uma reunião na casa da Rosiska Darcy de Oliveira, que hoje está na Academia Brasileira de Letras. Ela morava perto do Alto da Boa Vista. A gente estava subindo a Avenida Niemeyer quando o carro da frente deu uma freada brusca e pá... eu bati um pouquinho. O dono do carro era um coronel; obviamente, eu fiquei apavorada, mas o Gabeira queria discutir com o coronel, dizendo que a culpa não era minha, era dele, que tinha freado de repente. Aí eu falava: “Gabeira, peraí, tá tudo bem, vamos embora!” (risos). Olha, eu fiquei tão aflita, porque o porta-malas do meu carro estava cheio daqueles jornalzinhos; íamos levar na reunião para distribuir entre as pessoas. Mas era isso que a gente fazia: um jornalzinho, algumas reuniões, espalhar notícias, denunciar a censura, denunciar que os jornalistas estavam sendo presos e torturados. 

Vocês denunciavam a ditadura fora do Brasil? 

O movimento dos jornalistas denunciava no Brasil. Essa história de fazer denúncia fora do país foi uma produção independente (risos). Porque, nessa época, eu trabalhava no Ministério das Relações Exteriores também. Eu era oficial de chancelaria concursada. Quando eu voltei do exílio, fui reintegrada; ainda trabalhei alguns anos até me aposentar. Porque eu realmente precisava daquele recurso; você sabe que viver de cinema independente é difícil, documentário então... Mas, voltando, éramos um grupo de amigos, de pessoas que tinham sido colegas de faculdade; não éramos uma organização política clandestina. A gente se reunia para conversar e entender melhor o que podíamos fazer. Como participar, de alguma maneira, da resistência ao que estava acontecendo. Nesse momento, duas pessoas, um casal que estava nesse grupo, foram presas e torturadas; e acabaram falando sobre nossa atuação. A gente estava enviando algumas notícias para o exterior sobre prisões, tortura, tudo isso. Não era uma organização, sou bem desorganizada, inclusive (risos). Só fui militante registrada do Partido Socialista do Chile. Até porque, quando estava exilada no Chile, tive a sorte de trabalhar na Editora Nacional Quimantú. Tinha um bom salário e muito trabalho também. Organizei e dirigi o Departamento de Documentação e de Pesquisa. E, de repente, me dei conta de que eles confiaram em mim, uma brasileira exilada, e que eu tinha que estar, de alguma maneira, mais ligada ao projeto de governo... então, me registrei como militante do Partido Socialista. Fiz um corte no assunto! 

Tudo bem! E sobre a sua prisão?

Duas pessoas foram presas e torturadas; foram obrigadas a falar de nosso grupo. Então, todo mundo foi procurado. Nessa época, eu estava no Correio da Manhã e fui presa na casa dos meus pais. Fui sequestrada, na verdade: eu estava chegando do cinema, com meu carro, à noite. Quando entrei, eles bloquearam a garagem, e me levaram no meu próprio carro, me obrigando a dirigir, apavorada, com um revólver apontado para a cabeça. Não sei como eu consegui dirigir! 

Você ficou presa durante quanto tempo? 

Fiquei presa durante uns quatro meses. Primeiro, lá na Barão de Mesquita, no DOI-CODI da Polícia Militar, que era o centro de tortura. E, depois, fui transferida para um quartel da Polícia Militar no Leblon. Foi aberto um inquérito, pois havia pessoas do Itamaraty envolvidas. Então, eu fui transferida, acho que foi o que me salvou, para que eu pudesse ser interrogada pela Comissão de Inquérito do Itamaraty, pois não ficava bem o embaixador ir até o DOI-CODI. Aliás, ele era um fascista, o Câmara Canto, que dirigiu a Comissão. Depois, ele se tornou embaixador do Brasil no Chile e, na época do golpe, entregou muita gente. 

Gostaríamos de te perguntar, Tetê, sobre sua experiência no jornal O Sol, tema de um dos filmes que compõem a retrospectiva. 

Tudo isso foi antes de eu ser presa. Porque, depois de presa, fui demitida do Itamaraty, e parti para o exílio, em 1970. O Sol circulou entre setembro de 1967 e janeiro de 1968. Eu era do grupo de diagramação, de planejamento gráfico do jornal. Trabalhava diretamente com Reynaldo Jardim, que me ensinou, e ao grupo todo – éramos seis. Ele dizia que só queria trabalhar com moças bonitas (risos). Quando pensei em fazer um filme sobre a experiência do jornal, fui procurar Marta Alencar, que era editora de cultura. E ela participou intensamente da pesquisa para o filme. Fomos nos meter lá no arquivo do Jornal dos Sports, onde havia toda a coleção do jornal. Era uma coleção encadernada, e o arquivo era horrível, poeirento, calorento. E a gente foi para lá, pesquisar, fotografar... E uma outra colega que tinha sido de O Sol, Vera Castro, que conhecia todo mundo, nos ajudou a achar as pessoas. Porque eu resolvi fazer, foi uma ideia minha, “vamos juntar todo mundo numa festa, para filmar as pessoas”. Depois, as histórias poderiam ter outros desenvolvimentos individuais, mas eu queria, primeiro, botar todo mundo junto, como era na redação. Então, produzimos uma festa-filmagem, alugamos um terraço muito bonito, em um edifício perto do Outeiro da Glória, com uma vista linda para o Rio de Janeiro. E fizemos essa primeira filmagem, foi muito divertido. Eram duas equipes filmando. Eu ficava com uma equipe, a Marta Alencar com outra. Muita gente apareceu, e quem não foi, depois a gente foi procurar individualmente: o Ziraldo, o Gabeira, o Coni... Coni era editor de polícia do Sol, imagina! 

 

Que importância você acha que teve O Sol no jornalismo independente de resistência, durante a ditadura? 

Ele teve uma influência relativa, porque durou pouco tempo. Mas, pelo tempo que durou, foi marcante. Mas O Sol, sobretudo, ensinou muito para todas as pessoas que estavam lá, era uma equipe grande. E, depois que o jornal acabou, essas pessoas foram cobiçadas pela grande imprensa, porque era todo mundo jovem, todo mundo já formado em alguma coisa. Eu, por exemplo, tinha me formado em Direito e estava trabalhando no Itamaraty, nem todo mundo era de jornalismo ou de Letras. Tinha até médico na equipe. Eram pessoas de vários setores interessadas naquela experiência de fazer um jornal jovem, experimental, como o Reynaldo falava. Tanto que, quando acabou O Sol, nós ainda fizemos, durante algum tempo, um semanário chamado Poder Jovem. Alguns de nós foram também fazer um programa, na TV Continental, em que Reynaldo Jardim trabalhava. A gente fazia dois programas louquíssimos. Um se chamava Poder Jovem e tratava do que acontecia com a juventude. E outro se chamava Blow Up, era sobre notícias internacionais. 

E como se deu seu primeiro contato com a produção de cinema? 

Eu acompanhava como jornalista, antes de ir para o exílio. Depois de O Sol, eu trabalhei na revista Visão, que na época era uma revista importante. Era “a revista do homem de negócios”, mas tinha uma parte cultural interessante. Eu trabalhava na editoria de cultura com Cláudio Bueno Rocha, um editor muito bacana, que já faleceu há muito tempo. Então, certa vez, estive na “feijoada do gigante”, na filmagem da cena de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade. A Visão acabou fechando a redação do Rio; foram muito pressionados. Cláudio Bueno Rocha, o Aloysio Biondi como editor de economia, o Zuenir Ventura era editor-chefe, e o Washington Novais era diretor. Era um núcleo cultural escondido, no Rio, nessa revista empresarial. Com o fechamento da redação, fui trabalhar para a rádio JB, fiquei um tempo fazendo jornalismo de rua, foi bem interessante. Eu estava na rádio na época do sequestro do embaixador americano, o Gabeira já estava na clandestinidade. Antes, ele dirigia o departamento de pesquisa do JB. Depois da rádio JB, eu fui para o Correio da Manhã. 

E o cinema você reencontrou no exílio? 

No Brasil, eu cobria cinema, mas não pensava em fazer cinema. No Chile, a mesma coisa... eu acompanhava um pouco, através de Affonso Beato, que é meu amigo, um grande diretor de fotografia, ele foi para o Chile fazer um documentário lindo, Cuando despierta el pueblo (1973). Através dele, conheci outras pessoas de cinema no Chile. Mas ainda não fazia filmes. Quando estive exilada nos Estados Unidos, depois do Chile, foi a época do vídeo; aí eu resolvi aprender. Fui fazer um curso, eu estava em Washington, D.C., em um Community Video Center. Comecei a aprender e a sair para a rua com eles, para fazer reportagens. E lá conheci Helena Solberg, que morava em Washington fazia muito tempo. E comecei a ajudá-la na pesquisa para dois documentários que ela fez depois, sobre mulheres na América Latina, Simplesmente Jenny e Dupla Jornada. Fiquei mais ligada a essa questão do documentário através da Helena. Mas, logo depois, eu me mudei para Paris e, depois, para Lisboa. Em Paris, meu companheiro de muitos anos, que eu tinha conhecido no Chile, Maurice Bazin, me deu de presente uma câmera Super-8. Comecei a mexer e, já em Portugal, logo depois da Revolução dos Cravos, trabalhei em um projeto chamado Animação Cultural, que correspondia ao apoio do Estado a grupos de base que desenvolviam atividades interessantes pelo país: associações de moradores, escolas, projetos culturais... eu e uma amiga portuguesa, Aida Ferreira, soubemos que tinha uma história interessante acontecendo numa pequena cidade, um vilarejo no Alentejo, que – por incrível que pareça – se chamava Cuba. Lá, havia uma escola secundária, e os professores, junto com os alunos, tinham ocupado uma quinta, uma grande propriedade, perto da escola, para darem aulas práticas de ciências e outras disciplinas. Foi o momento de um primeiro impulso, digamos, fervoroso e socialista do 25 de Abril, que depois foi arrefecendo rapidamente. A sociedade portuguesa não aguentava tanta transformação. Mas a gente foi lá, conversamos com os professores, eles já tinham ocupado a quinta e eles mesmos tinham gravado em Super-8, com câmeras bem pequenas, a ocupação. Aí, com minha câmera, começamos a fazer entrevistas, que narravam todo o processo. Depois, resolvi editar aquele material, com uma montadora portuguesa. E assim aconteceu Aulas e Azeitonas, que é apenas um registro daquela experiência, e acabou sendo meu primeiro filme, assinado junto com Aida. Há pouco tempo, o CTAv (Centro Técnico Audiovisual) me consultou, se eu autorizava a digitalização de Aulas e Azeitonas. Eu acho o CTAv, que pertence ao Ministério da Cultura, uma organização importantíssima para o cinema brasileiro.

Para quem conheceu seu trabalho através de Terra para Rose, foi muito interessante descobrir que seu primeiro filme trata da ocupação de uma finca... 

Ah, é muito engraçado isso. Eu também fico surpreendida, porque nada foi planejado! Aconteceu por acaso. Foi realmente um acaso eu ter parado em Cuba do Alentejo. Eu trabalhava no Ministério dos Assuntos Sociais, em Portugal, acho que se chamava assim... E, dentro do ministério, tinha esse setor de Animação Cultural. E Aida e eu acompanhávamos e registrávamos algumas experiências pelo país. A de Cuba do Alentejo acabou registrada nesse filme, que agora pude mandar de volta para Portugal. Mais uma memória do pós-25 de Abril. 

Aulas e Azeitonas foi feito em pleno contexto pós-25 de Abril, depois da Revolução dos Cravos. Você acha que sua produção no Brasil, nos anos subsequentes, teve influência dessa sua experiência com a revolução em Portugal?

Acho que sim, mas tudo influenciou... A experiência no Chile, a experiência nos Estados Unidos, a Revolução dos Cravos, minha experiência na França e em Portugal, com os movimentos de mulheres... Todos esses pedaços de vida, não é?

 

Tetê, você falou sobre o encontro com os movimentos de mulheres no exílio. Como se deu essa aproximação ao feminismo? Você participou, inclusive, da organização de um livro, Memórias das mulheres do exílio, lançado pela Paz e Terra em 1980. 

Eu estava em Portugal quando fiz esse livro. Mas já tinha estado algum tempo na França. Era casada com Maurice Bazin, um físico francês, ficamos juntos por 14, 15 anos, ele veio comigo quando voltei para o Brasil. Nos separamos depois de alguns anos aqui, mas continuamos sempre amigos. Foi graças a ele que consegui chegar à Europa. Eu fui para o exílio sem passaporte brasileiro. Minha saída para o Chile foi completamente subterrânea. Fui presa e processada por ter contribuído para a divulgação de “notícias falsas” sobre tortura no Brasil, ferindo, portanto, a imagem do país no exterior. Depois de solta, tive prisão preventiva decretada. Então me exilei, em 1970. No Chile, consegui um status muito bom, de residente. Claro que eu era exilada, mas eles me deram residência, tive uma vida legal, profissionalmente boa... Pouco antes do golpe de Estado, eu saí do Chile voluntariamente, para fazer mestrado nos Estados Unidos. Quando cheguei lá, houve o golpe, então me tornei duplamente exilada: não podia voltar para o Brasil nem para o Chile. Eu tinha um documento de viagem chileno. Mas esse documento expirou, e o Chile de Pinochet não iria renovar. Fiz um esforço enorme em Washington, com apoio de várias pessoas, para conseguir um passaporte brasileiro. Consegui um passaporte, mas carimbado em todas as páginas que só era válido para os Estados Unidos. Eu não podia viajar. O Bazin conseguiu então um salvo-conduto francês para que eu, como companheira dele, viajasse para a França. Lá, eu consegui o status de exilada, e um documento da Convenção de Genebra, uma espécie de passaporte para quem não tinha passaporte de sua nacionalidade. E assim eu pude viajar, fomos para Portugal. Essa história do passaporte foi um drama na vida de todo mundo no exílio... Para mim, foi um problema muito grande, porque eu gostava de me mexer e não podia. 

E você teve contato com o feminismo no exílio? 

Sim, desde a época em que morei no Chile. Começou a se discutir muito a questão feminista nesse período. Foi mais forte para mim nos EUA, quando me integrei ao coletivo International Women Film Project, participando da pesquisa para os filmes dirigidos por Helena Solberg. Foi muita informação, muita discussão... Na Europa, me mantive em contato com a questão feminista – grupos, leituras, debates. Li Our Bodies, Ourselves, livro que foi importante para o movimento feminista nos EUA. Li muita coisa da Éditions des Femmes, editora francesa. Em Portugal, cheguei a fazer o projeto de um documentário sobre mulheres. 

Foi quando você fez o livro com as mulheres brasileiras exiladas?

Exatamente. Havia muitos brasileiros exilados, e tivemos um grupo de companheiras, amigas que se reuniam para conversar, se apoiar, conversar sobre as nossas questões. Então surgiu a ideia de gravar depoimentos com várias mulheres exiladas. Na verdade, já tinha sido feito um outro livro antes, por alguns companheiros homens, Memórias do Exílio. Eles criaram esse projeto e conseguiram recursos de uma igreja progressista americana. Só que, nesse livro, praticamente não havia depoimentos de mulheres. Elas apareciam em função dos companheiros. Então a gente propôs fazer o Memórias das Mulheres do Exílio. Só com depoimentos de mulheres. Éramos quatro organizadoras. E nos reuníamos em um grupo maior, geralmente na casa da Marie Moreira Alves, que era casada com o Márcio Moreira Alves. Entrevistamos umas 20, 30 mulheres brasileiras, exiladas em vários países, em diferentes condições. Quando eu vim para o Brasil, em 1979, o livro estava pronto e eu trouxe os originais. Eu tinha a incumbência de arranjar uma editora para publicar, porque fui a primeira desse grupo a voltar para o Brasil. Falando com uns e outros, cheguei à Paz e Terra, ao Fernando Gasparian. 

É um livro impressionante. São muitos testemunhos contundentes, uma variedade de experiências... 

Sim, eu gosto muito. Algumas mulheres aparecem com nomes falsos, com pseudônimos, já que ainda havia repressão, não é? E muitas não queriam se identificar. Eu tinha prisão preventiva decretada desde aquela época da minha prisão, em 1970. Mas, a essa altura, a preventiva já tinha caído, estávamos no processo de abertura. 

Como foi sua experiência de retorno ao Brasil? Inclusive do ponto de vista da reinserção profissional, agora como cineasta. 

Foi difícil, porque eu não conhecia mais nada nem ninguém. Foi muito difícil, realmente. Minha mãe já tinha morrido, meu pai estava morrendo... Eu não estava mais integrada no Brasil. Mas, depois, eu fui me acostumando, descobrindo caminhos.

E a partir desse retorno, como foi o processo de realização de Lages? Foi seu primeiro filme no Brasil, não é?

Não, o primeiro foi Quando a rua vira casa, um curta. Depois de Aulas e Azeitonas, eu tinha aquela ideia de fazer cinema, de fazer documentários. Eu tinha até tentado construir um projeto, com outras amigas, de um documentário sobre mulheres em Portugal. Mas a cooperativa onde estava nosso projeto pegou o dinheiro todo e ficamos sem verba. Foi mais um motivo para eu querer voltar para o Brasil. Aqui, comecei a fazer umas coisinhas, uns artigos aqui e ali, para o Pasquim. Mas tinha essa ideia de fazer documentários. E um amigo meu, que era um grande arquiteto e urbanista, Carlos Nelson Ferreira, ele trabalhava no IBAM, Instituto Brasileiro de Administração. Ele tinha feito uma pesquisa com uma equipe grande no bairro do Catumbi, e queria transformar aquilo em filme. E, inclusive, já tinha uma experiência com outro cineasta, mais experiente, o Sérgio Péo. Mas eles se desentenderam, e o Carlos Nelson me procurou, dizendo que precisava de um filme que representasse a pesquisa feita no Catumbi. Achei interessante e topei. Como eu não tinha muita experiência, chamei o Fernando Duarte, que é um grande fotógrafo, e era meu conhecido do jornal O Sol. O Carlos Nelson participou como roteirista. Na verdade, é um filme encomendado, mas foi uma experiência incrível. Foi uma escola de produção, trabalhei com uma equipe muito boa, Fernando Duarte na fotografia, Walter Goulart no som. Em seguida, Márcio Moreira Alves, que era meu amigo desde Lisboa, falou de Lages, ele tinha escrito um livro, Lages, a força do povo. Ele tinha uma coluna no O Globo aos sábados, “Sábados Azuis”, na qual escrevia sobre experiências de base brasileiras que tinham dado certo. E assim ele chegou à prefeitura de Lages, na época com um prefeito jovem, combativo, dinâmico, que depois se tornou deputado, senador e tal, mas acabou abandonando a política completamente. Aí eu me organizei para fazer o filme, consegui um recurso. Foi o primeiro recurso que consegui para um filme. Algumas pessoas ficavam com o pé atrás, porque eu era jornalista, e queria fazer cinema. Outras abriam portas... E assim eu fui entrando nesse mundo. Fiz o Lages, um longa, com recurso da Embrafilme. 

O Lages chegou a ser exibido no cinema? 

No cinema grande, não, porque era 16 mm. Mas foi exibido em várias situações, cineclubes, debates pelo país. Ele era distribuído, inclusive, pelo próprio CTAv. E, nesse meio tempo, até Terra para Rose, eu tive uma outra escola importante que foi a produção para televisões estrangeiras. Juntando meu conhecimento de jornalista, com o novo conhecimento de cineasta, de produtora, tive a oportunidade de pegar um projeto gigantesco para a BBC, a série Brazil, Brazil, com quatro documentários de uma hora cada sobre o país. Foi quando montei a Vemver Brasil, pois eles precisavam ter uma empresa brasileira na produção. Fiz várias coisas para TVs estrangeiras. Acompanhei equipes e aprendi muito com a produção de documentários. Para a televisão sueca, da Noruega, do Canadá... produtores independentes da França, dos EUA. Eu diria que foi aí que aprendi realmente a fazer cinema. 

Foi quando surgiu o projeto de Terra para Rose

Nessas viagens com a BBC, eu vi muito problema de terra, sobretudo no Nordeste, onde a gente filmou muito, no Ceará, em Pernambuco. E sempre muito forte a presença das mulheres, em pequenos núcleos rurais, muita violência, dificuldade e luta. Isso foi em 1984. Quando acabou esse trabalho, eu planejei fazer um documentário sobre a questão da terra, especificamente sobre as mulheres. O título provisório era “Elas na luta pela terra prometida”, e assim entrei com o projeto de um média na Embrafilme. Tinha sido aprovado, estava me preparando, decidindo para onde ir no Nordeste, etc. Foi quando começaram a ser divulgadas, na imprensa, fotos dos acampamentos com barracos de lona preta, no Rio Grande do Sul. Já tinham sido realizados acampamentos de beira de estrada naquela região, mas as fotografias que vi, no Jornal do Brasil, eram do acampamento da Fazenda Annoni, que já estava estabelecido quando eu filmei. Já havia uma cidade enorme, organizada, com 1.500 famílias, grupos de limpeza, saúde, coordenações locais e tudo mais. 


E como foi a aproximação ao acampamento?

Em primeiro lugar, decidi que tinha de ir lá ver aquilo de perto. Eram imagens novas no Brasil. Ainda não tinha saído o dinheiro da Embrafilme, mas tive a oportunidade de fazer um trabalho como jornalista e produtora para um jornalista da National Geographic que estava preparando uma matéria grande sobre o Brasil – uma matéria de capa –, e ele me contratou para fazer uma assessoria. Aí consegui convencê-lo a ir para o Rio Grande do Sul ver como era aquilo. Eu nunca tinha ido. Fiz contatos através do Ibase, do Betinho, que me deu o contato de uma ONG em Porto Alegre. O repórter estava meio assustado, “será que eles vão estar armados? Será que não é perigoso?”. Eu consegui convencê-lo. Chegando, fomos bem recebidos, fizemos um passeio pelo acampamento, fiquei muito impressionada com a organização, e comecei a perceber como a presença das mulheres era importante: elas estavam se mexendo, dando um suporte imenso ao funcionamento da vida ali dentro, comida, crianças, bichos e tudo mais. Conversei com as pessoas e fiquei praticamente convencida de que era melhor fazer o filme ali. Propus a ideia à coordenação do acampamento, eles concordaram. “Tá bom, então eu vou me organizar. Estou esperando sair o recurso para poder fazer o filme e tal. E aí, quando eu tiver condições, eu aviso para vocês”. Mas, de repente, começa a marcha dos acampados para Porto Alegre. Aquela grande marcha. Nunca tinha acontecido uma marcha assim: atravessando o estado do Rio Grande do Sul, do Noroeste até Porto Alegre, é muito longe. A pé, imagina. E eram homens, mulheres, crianças, muita gente. E tinha a Rose com o bebê. Acho que as crianças menores ficaram no acampamento. Mas lá estava Rose com Marcos Tiaraju no colo, junto com os outros dois filhos e o marido. Vendo aquilo, falei: “Bom, temos que filmar”. Não tem dinheiro? Não podia perder isso, porque a marcha avançava, e eu queria filmá-la antes de chegar a Porto Alegre. Aí peguei dinheiro daqui e dali, faturei filme na Kodak – era tudo 16 mm. Consegui algum equipamento emprestado, com o setor da Embrafilme que dava apoio ao documentário. E aí falei com Walter Carvalho: “Vamos embora? Vamos”. Montamos uma equipe pequena, mas maravilhosa: Walter Carvalho na fotografia, ainda jovem e com muita garra; Walter Goulart, um técnico de som extraordinário, muito experiente. Eu tive muita sorte, porque eu não tinha experiência, mas só trabalhei com gente boa. Aprendi muito!  

O fato de você ser mulher colocou algum tipo de dificuldade nesse processo? 

Não, acho que não. Sinceramente, eu não posso dizer que houve dificuldade com a equipe, eu me dava muito bem com esses colegas. Nunca me inferiorizaram. Jamais. Muita solidariedade, muito companheirismo, muito apoio, e todos ficaram muito tomados pela novidade, pela importância daquilo que a gente estava filmando. Chegando em Porto Alegre, alugamos uma Kombi, contratamos um rapaz de produção local. Era uma equipe mínima: câmera, som, um assistente de produção e eu. Pegamos a marcha já no caminho, na altura de São Leopoldo. Não sei se você se lembra de uma cena de Terra para Rose – eu a usei na apresentação dos letreiros –, os acampados atravessando aquela ponte, perto do pôr do sol, aquela luz maravilhosa. Era a primeira filmagem, a gente muito desengonçado. O Walter, desesperado: “Não deu! Tem que atravessar a ponte de novo”. E eu: “Você tá louco!”. Mas lá fui eu, conversei com as lideranças. Eu estava chegando de paraquedas, mas falei: “Será que dá para atravessar essa ponte de novo? A gente não conseguiu filmar, e está tão bonito, é importante mostrar vocês…”. E eles: “Tá legal”. Atravessaram aquela ponte umas três vezes! Fizemos imagens maravilhosas. Eles cantando, com as bandeiras; agradeci muito, e disse: “A partir de agora, a gente vai seguir vocês. Vamos com nossa Kombi junto, vamos filmando”. E acompanhamos o resto da marcha, parando nas horas de alimentação e para dormir. E eu pude observar como era a vida ali… Quando eles paravam, eu podia circular entre eles, olhar, começar a escolher personagens. Tinha o coletivo, mas era preciso focar em algumas pessoas. Claro, logo me chamou atenção a Rose com o bebê. E outras mulheres, muitas delas com crianças. Aquilo era muito penoso. Mas eles eram muito apoiados, quando chegavam aos lugares, sabiam onde almoçar, havia apoios locais, igrejas, escolas, sindicatos. E, no caminho, fui detectando algumas personagens. Vi que realmente havia mulheres muito interessantes, bonitas, fortes, ativas, que mobilizavam. Fui conversando com elas, sentindo o clima. Mas essa não foi a única filmagem. Porque, na caminhada, na marcha, era tudo muito rápido, a gente estava sempre andando. Eu pude me aprofundar mais no cotidiano delas depois que chegamos a Porto Alegre. Aí passou a haver três acampamentos, na verdade: um na Fazenda Annoni, outro dentro da Assembleia Legislativa de Porto Alegre e um terceiro que já estava no estacionamento do Incra. Lá, também encontramos personagens. 

Sim, no Incra você encontra Serli e Luci, as cunhadas, que são personagens tão importantes no filme.  

Pois é. Eu achei aquelas mulheres fundamentais. Era uma família: tinha o marido da Serli, irmão de Luci, o filho deles… Fiquei um pouco em torno daquele grupo. Fui criando núcleos de personagens; alguns foram eliminados na montagem. E sempre as mulheres. 

Quando você decidiu fazer o filme no Sul, e não no Nordeste, você preservou, desde a chegada à Fazenda Annoni, a intenção de filmar o acampamento da perspectiva das mulheres? Esse propósito se manteve? 

Sim, claro. Tanto que eu tinha esse olhar, e percebi que as mulheres eram fundamentais nas ações no acampamento. Muitas participavam de discussões políticas, coordenações de núcleos, inclusive. Filmei nessa ótica. Fui escolhendo dentro daquela variedade de possibilidades. Depois que a gente filmou os acampamentos em Porto Alegre, pensei que era importante voltar à Fazenda Annoni para mostrar o acampamento, de onde saíram. Fomos para lá, a mesma equipe, e começamos a filmar o cotidiano do acampamento. Com outras pessoas. Pois Rose ficou acampada na Assembleia, Luci e Serli no Incra, em Porto Alegre. Na Fazenda, me voltei para mulheres que não tinham acompanhado a marcha. Caso de Dona Ema, por exemplo. No acampamento, eu pude perceber direitinho como funcionavam os grupos de trabalho, de higiene, de educação, de alimentação. As mulheres estavam sempre lá. Depois dessa primeira filmagem, eu voltei com o material. Consegui o recurso da Embrafilme, mas o projeto que estava desenvolvendo era o anterior, o média-metragem no Nordeste. Como é que eu vou lidar com isso? Fiquei desesperada. Aí comecei a contactar pessoas, buscar mais dinheiro, aqui, acolá. Porque a história continuava. Foi um filme feito assim… atrás da história, junto com a história. 

Acompanhando a história em seu curso. Isso é muito forte no filme. Bem diferente de O sonho de Rose, por exemplo, que reencontra as personagens assentadas, dez anos depois, e se volta para experiências já vividas. 

É diferente. Eles já estavam assentados quando eu retorno. Mas Terra para Rose, não, tudo estava acontecendo. “Bom, tenho que voltar, explorar esses personagens, filmar os cotidianos”. Aí fizemos uma segunda viagem: voltamos para a Fazenda Annoni, filmamos os acampamentos em Porto Alegre, filmamos as pessoas, os cotidianos, fizemos entrevistas. “Bom, então agora eu acho que eu já tenho um filme”. Essa foi a segunda filmagem. Eu já tinha um relacionamento pessoal com várias lideranças. Daqui a pouco alguém me telefona avisando: “Estão cercando a Fazenda Annoni. A Brigada Militar está aqui e vai invadir a fazenda, você tem que filmar”. Aí foi uma loucura, não tinha mais dinheiro, fatura daqui, fatura dali, pega emprestado, Walter Carvalho e Walter Goulart se juntam de novo. A filmagem do cotidiano foi feita com Fernando Duarte. Voltamos pela terceira vez e filmamos aquela pequena guerra, a batalha do acampamento cercado. “Agora temos o filme”. Voltamos. Paralelamente, eu começo a limpar o material, sincronizar, organizar tudo para a montagem, que durou meses. Acho que passaram quatro editores diferentes pelo filme, foi quase um ano acompanhando a montagem. E durante esse processo, eu soube do atropelamento, do caminhão que se jogou contra a manifestação, e que Rose tinha sido morta. Eu não estava lá, mas consegui aquelas imagens terríveis, em VHS, de um apoiador que gravou os corpos. Aí mudamos a edição, para incorporar o doloroso fato. Quando eles conseguiram a terra, finalmente, eu voltei para lá, filmei com uma equipe local. Fui para Brasília também, filmei a Assembleia Constituinte, alguns políticos. Aí edita, edita, edita, o filme fica pronto no final de 1987. Saiu do forno, em 16 mm, foi para Gramado e depois para Havana, onde recebemos muitos prêmios. 

Com relação às mulheres que se tornaram, no filme, protagonistas. Como foi a aproximação a elas? Havia abertura delas para a filmagem, para sua presença?

Sim. Foi tranquilo. Acho que dá para sentir isso no filme. Acho que elas sentiram em mim alguém em quem podiam confiar, já que eu vinha seguindo aquela história desde a ponte em São Leopoldo… Houve uma convivência, foram quatro viagens. Não senti muita dificuldade, não. Mas a gente tem que saber a hora de falar, de propor, de filmar, não é? 

São bonitas as cenas de reencontro em O sonho de Rose. A gente percebe que elas estão felizes em te ver. 

Sim, houve afeto! Fiquei muito amiga de várias pessoas. Anos depois, de vez em quando, me convidavam para algum churrasco nos assentamentos, aniversário da ocupação da Fazenda Annoni… E, ao longo do lançamento do filme, houve encontros também. Fizemos uma pré-estreia na Assembleia Legislativa, em Porto Alegre, sempre tentando envolvê-los. Quando O Sonho de Rose foi para o Festival de Gramado, foram dois ônibus com assentados, inclusive os filhos e o viúvo de Rose. Até hoje, inclusive, tenho uma relação com Marcos Tiaraju, o filho caçula de Rose.