Desaparecimento e reaparecimento dos povos e das imagens 

(35 anos de Vídeo nas Aldeias e 25 anos de forumdoc.bh)

1987 (35 anos atrás) – Vamos estabelecer por convenção que esta é a data de criação do projeto Vídeo nas Aldeias (VNA). É quando se divulga o filme A festa da moça, que descreve a cerimônia para celebrar o fim da reclusão de menarca de uma jovem nambiquara. Pouco antes disso, em 1985, o indigenista da Funai Marcelo Santos denunciava um massacre de índios em Rondônia. Ninguém queria ver ou acreditar no genocídio indígena, e Marcelo convida Vincent para registrar os vestígios, meio de lutar contra o esquecimento e de provar o massacre na esfera judicial. Os índios sobreviventes, de um modo geral, eram invisíveis para a sociedade brasileira, interessada em negar sua realidade em benefício da liberação de terras para o agronegócio. Vincent, então, começa a filmar, mais como indigenista, menos como cineasta: o que se buscava era uma aliança com os indígenas por meio do audiovisual – forma, por um lado, de fortalecer seu modo de vida (devolvendo e tornando as imagens acessíveis aos povos filmados); e, por outro, de tornar visível para o lado de cá (o mundo “civilizado”) tanto a força e a vitalidade do mundo indígena quanto a brutalidade da civilização colonial.

    Somente duas décadas depois, os registros fílmicos a partir do encontro com os sobreviventes daquele massacre, e com outros indígenas isolados naquela região de Rondônia e invisíveis até então (os Akuntsu, os Kanoê e o índio do buraco), foram montados: é quando nasce o magistral Corumbiara (2009). Trata-se de um filme em primeira pessoa, no qual Vincent Carelli retoma e narra em retrospecto sua trajetória de cineasta-indigenista (não de antropólogo ou acadêmico, como gosta de frisar em suas entrevistas), a começar pela experiência junto aos Nambiquara. A abertura do filme Corumbiara (2009) é justamente uma citação do filme A festa da moça (1987), a partir da sequência que registra uma dança e um efusivo canto, a que a montagem soma o comentário em voz over:

Meu nome é Vincent, sou indigenista, e comecei a fazer documentários em 1986. Nesse ano eu estava justamente realizando a primeira experiência do Vídeo nas Aldeias, que naquela época consistia em filmar os índios e mostrar imediatamente. Esse jogo de espelhos ia gerando um entusiasmo e, com a possibilidade de se ver na telinha, os Nambiquara começam a delirar, a gente com eles. E, de repente, sob a liderança do capitão Pedro Mamaindé, eles furaram o lábio de 30 jovens, numa cerimônia que eles tinham abandonado há 20 anos. Dessa experiência marcante nasceu A festa da moça, que foi o meu primeiro documentário no norte do Mato Grosso.

E prossegue, introduzindo o tema do filme Corumbiara

Foi então que o Marcelo Santos, indigenista da Funai, me pediu para registrar os vestígios de um massacre de índios isolados na gleba Corumbiara, no sul de Rondônia. Eu estava começando e, para mim, a possibilidade de dar ao vídeo uma função de militância mesmo era o que importava...

    1997 (10 anos de Vídeo nas Aldeias) – Nascia o forumdoc.bh (Festival do filme documentário e etnográfico de Belo Horizonte) com a presença de corpo e alma do cineasta-indigenista Vincent Carelli e da etnóloga Dominique Gallois. Durante as sessões fílmicas comentadas e os debates, os dois nos apresentavam o método do projeto VNA, a perspectiva colaborativa, a proposta do cinema como instrumento para reflexão dos povos indígenas sobre sua própria cultura e identidade (e sobre aquelas de outros povos indígenas), sobre as transformações no seu modo de vida frente ao contato com o mundo moderno, as ameaças vindas de fora (sobretudo no plano da perda territorial) e as estratégias de enfrentamento à violência da colonização.

    Nesta primeira edição do forumdoc.bh, exibimos a maior parte dos títulos da primeira fase do VNA, voltada prioritariamente para o registro, a devolutiva e o intercâmbio das imagens entre povos indígenas: A festa da moça (1987); Pemp (1988); Vídeo nas aldeias (1989); O espírito da TV (1990); A arca do Zo’é (1993); Eu já fui seu irmão (1993); Antropofagia visual (1995); Yãkwa: o banquete dos espíritos (1995); Jane Moraita (1995); Moraingaiva: o desenho das coisas (1997). De lá para cá, cada vez que saía um filme novo do VNA, o forumdoc.bh o incluía em sua programação. Em 24 edições, foram sessões emocionantes, em que as singularidades de povos tantas vezes invisibilizados apareceram nas imagens projetadas nas telas do Cine Humberto Mauro e do Campus Pampulha/UFMG, sessões seguidas de vivos debates, com realizadores indígenas, com Vincent Carelli e colaboradores... A história do forumdoc.bh está inteiramente atravessada e marcada pelo percurso do VNA.  

Toda essa fabulosa e incontornável experiência de cinema com os povos indígenas no país já foi matéria de artigos, teses e ensaios (muitos deles, inclusive, escritos para os catálogos do festival). Citemos uma passagem de um texto quase inaugural no qual Carelli e Gallois (1995, p. 67) explicitam os objetivos do projeto:

Construir, através da mídia audiovisual, informações para o público leigo ou para o círculo restrito dos especialistas, representa certamente uma experiência valiosa para a reflexão antropológica. Mais interessante ainda é construí-las com e para os sujeitos da pesquisa: as comunidades indígenas. Retorno, feed-back, antropologia interativa ou compartilhada, como pregava Jean Rouch, são princípios muitas vezes declarados, mas raras vezes concretizados. O que as comunidades estudadas, fotografadas e filmadas esperam da interação que estabelecem com antropólogos não são, apenas, as fotos, os filmes editados ou as teses prontas. Entretanto, é essa forma mecânica de retorno que a maior parte dos etnólogos concebe e pratica. O projeto de vídeo do CTI [Centro de Trabalho Indigenista] se propõe inverter e enriquecer essa relação. Ao invés de simplesmente se apropriar da imagem desses povos para fins de pesquisa ou difusão em larga escala, esse projeto tem por objetivo promover a apropriação e manipulação de sua imagem pelos próprios índios. Essa experiência, essencial para as comunidades que a vivenciam, representa também um campo de pesquisa revelador dos processos de construção de identidades, de transformação e transmissão de conhecimentos, de formas novas de auto-representação.

Ao longo dos últimos anos, acumulamos um arquivo de imagens representativo de uma dezena de povos indígenas. Esse arquivo, que contém valiosos fragmentos da memória desses povos, destina-se às comunidades indígenas. Guardar esse acervo em São Paulo apenas para garantir a imagem diferenciada desses povos no futuro seria simples “arquivismo”: já temos, nas bibliotecas e nos museus, milhares de testemunhos de seu passado que, porém, permanecem-lhes inacessíveis. A preservação de imagens significativas para a memória dos povos indígenas só ganha sentido quando colocada à disposição desses povos, para que eles, enquanto sujeitos de seu futuro, as utilizem no processo de revisão de suas identidades. A manutenção das culturas e o futuro diferenciado desses povos dependem muito mais de sua criatividade nos processos de reconstrução, adaptações e seleções de sua memória do que da continuidade de um passado retratado em imagens de arquivo.

    Em 35 anos de existência e resistência, muita coisa se transformou e foi somada ao projeto VNA, muitas experiências particulares de cinema, próprias a cada povo, foram agregadas ao seu acervo. Além disso, cabe destacar aqui este importante acontecimento: a multiplicação de coletivos de cinema indígena, muitos deles criados de forma autônoma, outros derivados da experiência do VNA e de suas oficinas de formação. A diversidade desta nova e pulsante produção (e forma de comunicação audiovisual) indígena desafia qualquer recorte curatorial. São incontáveis e singulares usos e apropriações das imagens, que exprimem a diversidade dos modos de vida, das experiências cosmológicas e históricas desses povos. 

    2021 (25 anos de forumdoc.bh, 35 anos de Vídeo nas Aldeias) – Nada mais coerente – e, ao mesmo tempo, urgente – do que celebrar os 25 anos do forumdoc.bh com uma homenagem ao VNA e ao cinema indígena. Em momento de perigo, sob o governo genocida e destruidor de Jair Bolsonaro (particularmente nocivo e letal para os povos indígenas), propomos fazê-lo refletindo sobre o tema do desaparecimento e do reaparecimento dos povos e das imagens – por meio da constituição, da conservação e da devolução dos acervos e dos registros audiovisuais durante as quase quatro décadas dessa incisiva ação cinematográfica (chamemos, na falta de melhor termo, de “cinema expandido”) no coração do Brasil e da sua população originária. Em contexto tão adverso, nos inquieta e nos move a indagação de Didi-Huberman: “Como fazer para que os povos se exponham a si próprios e não ao seu desaparecimento? Para que os povos apareçam e tomem figura?” (2012, p.11).

    O forumdoc.bh inclui então em sua programação uma forma de acesso inaugural a imagens desse vasto Acervo, por meio de uma video-instalação pensada por Vincent Carelli, que estará presencialmente entre nós, para dois momentos de encontro, durante o período do festival. São seis sequências inéditas, com imagens de alguns dos povos com quem Vincent filmou durante o período inicial do projeto VNA – Kaiowá, Krahô, Gavião, Xavante, Yanomami, Akuntsu, Kanoê e Wajãpi –, não montadas na íntegra nos filmes já finalizados. Elas serão compartilhadas para instigar o debate – primeiramente, em torno do acervo extremamente relevante do VNA (milhares de horas de cerca de 62 povos indígenas), e da potência política de que os agenciamentos de memórias e imagens podem se fazer portadores; mas também para se pensar a relação entre o filme finalizado (e divulgado para os indígenas e não-indígenas) e aqueles registros que, por uma ou várias razões, não foram incorporados numa obra final.

    Desde Godard, pelo menos, em Histórias do cinema (histórias no plural), de 1988, sabemos que não só o que foi montado e exibido deve ser levado em consideração quando se quer pensar o cinema, no tempo: arte do cortar, esconder, esfumaçar, enquadrar, desenquadrar, sublinhar ou focar... Partes consideráveis das cópias ou dos filmes originais, depois de exibidos, foram ou são queimados (por razões mercadológicas ou pela natureza perecível da matéria fílmica, tão mais frágil quando mal conservada). As partes que sobrevivem são guardadas em acervos ou museus. Tempos depois, se bem cuidados, tais acervos podem ser revisitados, novos filmes podem ser montados ou remontados a partir dos fragmentos conservados. Com quais recursos, por quem, onde armazenar as imagens? Pergunta que se torna mais candente se levarmos em conta que, no Brasil, o poder público tem abandonado a memória audiovisual, negligenciando a guarda de filmes e documentos, como vimos com os recentes incêndios do Museu Nacional (RJ) e da Cinemateca Brasileira (SP) (ver texto de Patrícia Machado neste catálogo). E, no caso do Acervo VNA, além da premência de se garantir as condições objetivas para conservação de todo o material armazenado, outra questão decisiva se coloca: como devolver as imagens para os mais interessados e que deveriam deter, em última instância, o direito sobre elas, quais sejam, os próprios povos e comunidades indígenas? 

    A devolutiva está na origem do VNA e o atravessa: o projeto teria começado, como insiste Vincent Carelli, não para “fazer filmes”, mas para produzir, devolver e tornar as imagens acessíveis aos povos indígenas. Nos “jogos de espelhos” que provocou desde a sua criação, o projeto estimulou, como disse certa vez Amaranta César, “a atuação política das imagens” em inúmeros “processos de resistência e de sobrevivência cultural” em comunidades indígenas² (ver texto de André Brasil neste catálogo). A começar pelo caso pioneiro e paradigmático dos Nambiquara, passando pelos intercâmbios entre povos via imagem (registrados em filmes como A arca dos Zoé e Eu já fui seu irmão), e pelas tantas oficinas de formação de realizadores, nas quais o feedback do material filmado é parte constitutiva do método, promovendo debates que envolvem, muitas vezes, toda a coletividade.    

    Nesses processos, não basta copiar o conjunto de registros num HD e “devolvê-lo” ao povo concernente. A devolução exige uma mediação entre os coordenadores do projeto e guardiões das imagens (do ponto de vista tecnológico e político) e as comunidades que irão receber os fragmentos, cópias ou até os originais deste material. Como pode ser lido na entrevista de Vincent Carelli publicada neste catálogo, muitos indígenas não querem que o acervo original seja desmontado, ao contrário: querem que ele seja melhor disponibilizado (conservado, catalogado, transposto em digital quando for o caso...) de forma a ser “devolvido” na medida, dimensão e da forma como for demandada pela comunidade em questão.

    Se, historicamente, o VNA produziu imagens prioritariamente a serviço da luta política e da memória dos povos indígenas, o que fazer com aquilo “que não virou filme”? Trata-se sim de uma questão técnica, de conservação (mais ainda na contemporaneidade, quando há uma multiplicação quase infinita das gravações, a partir do digital), mas também de uma questão política da maior relevância – em especial para o caso indígena. 

    Tomemos como exemplo paradigmático o cinema xavante sob a batuta de Divino Tserewahu: no processo de filmagem há um diálogo intenso ente o cineasta indígena e os velhos (xamãs e lideranças políticas) sobre o que filmar e o que não filmar, sobre o que montar e o que não montar. Mais do que isso, há uma discussão muito intensa sobre o que montar e mostrar para o próprio povo e o que mostrar para os brancos ou os não-indígenas³. Estes não devem ver tudo – seja porque certas imagens guardam segredos, seja porque os brancos não compreenderiam (e veriam com preconceito e distorção) o que aparece na cena filmada, por fazer parte de um universo (linguístico, cosmológico) intransponível ao espectador externo.

    No processo de preparação do festival, os organizadores da mostra Desaparecimento e reaparecimento dos povos e das imagens discutimos, com Vincent Carelli, a pertinência e a eficácia de exibir as sequências “brutas”, previstas inicialmente para a video-instalação, também na programação online do festival. Embora reconhecendo a importância da divulgação do material (não montado), exatamente com a finalidade de dar a conhecer a um público maior a relevância e a grandeza do acervo VNA, alguns entre nós se mostravam reticentes – pois a ampla divulgação não apenas não alcançaria a experiência sensorial da instalação, como poderia provocar uma “leitura” equivocada (e preconceituosa) acerca do mundo indígena, por não dispor de uma intervenção por meio da montagem (por exemplo, com o uso da legendagem ou do comentário over explicativos).

    As sequências do VNA apresentadas na instalação, denominada Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial, guardam porções muito sensíveis da experiência humana e indígena, que talvez mereçam alguma preparação para imersão em seu mundo: da guerra (como é o caso da sequência yanomami) ou das experiências do transe xamânico (como é o caso da sequência dos Akuntsu-Kanoê). Uma questão importante se impôs em nossa conversa: como exibir em plataforma digital registros de um povo (caso da sequência dos Yanomami) que não foi diretamente consultado a respeito do uso e divulgação de suas imagens? Este ponto, como se vê, é crucial na discussão sobre a devolução do acervo audiovisual para os povos indígenas: a necessidade de haver sempre uma mediação e conexão entre os registros de um tempo passado e os seus usos no tempo presente e futuro, de modo a garantir autonomia e autodeterminação para as pessoas filmadas, as verdadeiras donas de suas imagens.⁴

    Depois desta discussão política, ética e conceitual (em parte reportada na entrevista publicada neste catálogo), decidimos, junto com Vincent Carelli, fazer circular no ambiente virtual três das sequências “brutas” (minimamente editadas) previstas para a instalação, por não conterem cenas “perigosas”: as imagens dos Kaiowá, dos Krahô-Gavião e dos Xavante. Para aqueles que quiserem passar por uma intensa experiência sensorial, assistindo às outras três sequências – dos Yanomami, dos Akuntsu-Kanoê e dos Wajãpi (esta última excluída da programação virtual por uma questão institucional) –, será preciso visitar a instalação no Palácio das Artes, durante o festival. 

    Conta-se que Darcy Ribeiro dizia que o “civilizado” não suporta a beleza, tanta, dos povos indígenas: o seu cuidado e tempo dedicados à ornamentação do corpo; à preparação de bebidas, festas, danças e cantos; à comunicação entabulada com os seres da natureza. Esta afirmação nos vem à cabeça quando vemos as sequências inéditas que Vincent Carelli selecionou para exibição no forumdoc.bh.2021: uma sessão de xamanismo com o uso de pó de angico entre os Akuntsu-Kanoê de Rondônia (sem saber o que iria acontecer, Vincent se sentou na beira da clareira e filmou durante duas horas consecutivas, sem sair do lugar, um acontecimento inigualável na história do cinema); uma cerimônia de dança e iniciação masculina/feminina entre os Krahô no Tocantins, quando estes recebem a visita dos “parentes” Gavião (dando continuidade a um intercâmbio estimulado pelo Vídeo nas Aldeias); um cerimonial raro de iniciação e nominação de mulheres na aldeia Xavante de Sangradouro (Mato Grosso); a intensidade da vida cerimonial Wajãpi, marcada pela recuperação da grande preparação das máscaras e danças dos peixes Pacu-Açu, numa aldeia no Amapá; a iniciação dos jovens, chamada de Kunumi Pepy, numa estonteante performance de dança e canto, na aldeia Kaiowa de Panambizinho, perto de Dourados, no Mato Grosso do Sul; por fim, debaixo de uma tempestade de raios e trovoadas, na região do Alalaú, em Roraima, a caminhada na floresta de uma comunidade Yanomami, quando uma guerra espreita. 

    Cada uma das sequências é uma peça de descrição etnográfica insubstituível! Junto a isso, são todas esteticamente primorosas, na articulação entre a entrega e extrema habilidade do cinegrafista e o intrínseco bailar dos corpos indígenas nas suas festas-cerimônias, nos seus passos e cantos, nas suas artes em geral.

    Estas seis sequências, de uma hora aproximadamente cada uma, compõem a video-instalação de 25 anos do forumdoc.bh, Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial: uma efusiva composição de sons (de diferentes cantos e línguas: Jê, Tupi-Guarani, Yanomami) que demonstram a beleza, a diversidade e a complexidade das sociedades indígenas no país. Todas filmadas na década de 1990, elas remontam à primeira fase do VNA, redescobertas e revistas por Vincent no tempo presente, quando o material de arquivo do projeto começou a ser digitalizado. Parece que todo “um mundo”, aos olhos de quem vê tais sequências, tinha ficado de fora dos filmes montados. Tudo pede agora para ser visto e revisto, pelos estudiosos da etnologia, pelos indígenas e não-indígenas. Estas seis horas de material inédito são ofertadas ao público que visitar a instalação do forumdoc.bh.2021, na forma de sequências quase brutas, sem edição, na língua indígena e sem tradução, cada uma acrescida apenas de uma cartela, no início, que contextualiza brevemente o registro. É um material que nos engaja, antes de tudo, pela experiência sensorial, sem demandar mais explicações sobre seu conteúdo: a quem se submete à imersão nas imagens, é como se tudo, de repente, fizesse sentido, e o material passa de inédito a inevitável!

    À exceção do material Yanomami, as seis sequências da instalação guardam relações com filmes que foram editados, e que fazem parte da história de 35 anos do VNA (e, por extensão e afinidade, de 25 anos do forumdoc.bh). Alguns deles serão reexibidos em 2021, presencial ou virtualmente, para, entre outros aspectos, suscitar a reflexão sobre aquilo que foi montado e dado a ver, e aquilo que, por uma razão ou outra, foi cortado e sobrevive oculto nos acervos (até que possa ser revisitado por pesquisadores indígenas e não-indígenas): caso de Eu já fui seu irmão (1993), Pi'õnhitsi – mulheres xavante sem nome (2009), Corumbiara (2009) e Martírio (2016). 

    Mesmo sem relação direta com as sequências da instalação, outros filmes compõem as sessões da mostra por serem exemplares da atuação política e performativa das imagens, em diferentes ocasiões, no âmbito do VNA. Caso de A festa da moça (1987) e A arca do Zo’é (1993), que marcam a história do projeto, expondo potentes processos de devolução, feedback, encontro e intercâmbio – via imagens – entre os povos filmados. Ou de Tava – a casa de pedra (2012), com os Mbya Guarani, exemplo de um tipo de cinema engajado que faz da participação e colaboração indígenas a essência de seu método; e, ainda, do relacionamento duradouro de colaboração com um povo indígena, no caso, os Enawenê-Nawê, registrado no tempo, entre Yãkwa: o banquete dos espíritos (1995) e Yaõkwa, imagem e memória (2020) – que inscreve a devolução das imagens aos Enawenê-Nawê, cerca de três décadas depois das primeiras gravações.   

    Como já mencionamos, os registros audiovisuais que deram nascimento ao filme Corumbiara (2009) foram feitos a partir do esforço para denunciar um massacre e para tornar visíveis povos em situação de isolamento voluntário diante da sociedade nacional – por sua autonomia e sobrevivência (ver texto de Clarisse Alvarenga neste catálogo). Paradoxalmente, para sua proteção, os indigenistas e cineastas precisavam provar a existência dos isolados por meio de imagens ou de vestígios – é assim que se alcança a interdição de seu território (e a proteção de suas vidas pelo Estado brasileiro), consentida a conta-gotas a cada dois anos. Já no caso de Martírio (2016), como defende Spensy Pimentel (ver artigo neste catálogo), descortina-se um outro tipo de invisibilidade: a dos índios Guarani-Kaiowá acampados nas beiras das estradas, nos fundos das fazendas, em reduzidas faixas de terra em meio às grandes plantações de soja ou cana de açúcar do agronegócio, índios dos quais se retira o direito à terra por serem arremessados na conta de nem índios, por serem demasiado aparentes ou aculturados. 

    A mostra Desaparecimento e reaparecimento dos povos e das imagens quer se somar ao gigantesco esforço do VNA – e marcadamente de Vincent Carelli, nessa aliança de uma vida inteira – para fazer circular, por meio das imagens e da formação de coletivos de cinema indígenas, um outro país possível: este que sobrevive e resiste, mesmo sendo apagado sistematicamente pela colonização. A mostra se completa com dois outros filmes, não produzidos pelo Vídeo nas Aldeias: Serras da desordem (2006), de Andrea Tonacci, e Piripkura (2017), de Renata Terra, Bruno Jorge e Mariana Oliva. 

    Tendo assistido a esses filmes, digamos que o “civilizado” talvez não suporte ver, além da beleza do mundo indígena, a ausência de autoridade coercitiva, a liberdade e a alegria de viver na floresta (na dependência quase que só de um tição de fogo), sem tirar o metal debaixo da terra, sem luz elétrica, capazes de seguir o caminho pelas estrelas que brilham no céu ou se aquecendo com a luz do sol. O “civilizado” segue destruindo a floresta e, junto com ela, estes dois homens piripkura, sob constante ameaça, protegidos apenas por um velho indigenista – que, por circunstâncias inexplicáveis, vive para garantir a vida dos dois sobreviventes (de quantos massacres?). Talvez o mesmo homem branco não suporte ver tanta alegria e tamanha doçura, justamente em um homem, Karapiru (Serras da desordem), que viveu tanta violência contra si e seu povo: sua comunidade foi massacrada por invasores não-indígenas, ele foi obrigado a fugir, percorrendo cerca de dois mil quilômetros, vendo-se abrigado por uma comunidade de trabalhadores rurais, até ser resgatado e devolvido à sua comunidade indígena de origem por Sydney Possuelo, indigenista da Funai, muitos anos depois. 

    Karapiru morreu este ano, 2021, vítima da Covid-19, na aldeia Tiracambu (no estado do Maranhão), junto ao seu povo, os Awá-Guajá (ver texto de Renata Otto neste catálogo). Agora Karapiru vive nas estrelas e no filme de Andrea Tonacci. O forumdoc.bh.2021 é dedicado a ele, ao indigenista Rieli Franciscato e a todos os indígenas vitimados pela violência da colonização ou pela omissão do Estado brasileiro. Àqueles que sobrevivem, que insistem em viver livremente, “isolados” como os Piripkura. Eles são, para nós, como vagalumes, cujo brilho intermitente nos guia nas trevas políticas de nosso tempo (atiçando-nos a crença de que um outro mundo é possível), inversamente aos “projetores ferozes” e às luzes cegantes do progresso capitalista, como escreveu Didi-Huberman (2011).  

    Por meio dos debates que promove, esta mostra se propõe também como ocasião para reflexão e ação, politicamente situadas, contra o recrudescimento e a ampliação das políticas anti-indígenas. As alianças entre governo e mineradoras, corporações do agronegócio, o desmantelamento de políticas ambientais e indigenistas, e sobretudo o risco de aprovação da inconstitucional tese do Marco temporal, contra a qual se insurge bravamente o movimento indígena, serão objeto de nosso pensamento crítico, numa aliança, por meio das imagens, com indigenistas, lideranças indígenas, cineastas – para que somemos às ações de vigília contra a eliminação dos direitos fundamentais dos povos. Nos insurgimos também contra o desaparecimento das imagens, propondo como atividade de abertura do festival o debate em torno da grave situação dos arquivos no país. 

Enfim, depois de um forumdoc.bh inteiramente virtual, em função da pandemia, decidimos voltar em 2021 com parte da programação presencial. Ela gira em torno da video-instalação dedicada a imagens do Acervo VNA. No contexto mortífero em que vivemos, os planos de Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial são como aparelhos para fazer durar a vida. Que seja um retorno simbólico e político com o cinema, uma maneira de marcar nossos compromissos e alianças, com o VNA e com os povos indígenas, que não são figuras condenadas ao passado – ao contrário, estão anos luz à nossa frente, eis um projeto de futuro!

Notas

¹ Com a colaboração de Júnia Torres, que integra conosco a curadoria, composta também por Luisa Lanna.
² Sobreviver com as imagens: cinema, resistência e retomadas. Palestra realizada no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG (2015). 
³ Em geral, os indígenas gostam mesmo é de ver o material bruto na íntegra, sem montagem, mas há partes do filmado que não podem ser vistas por segmentos do próprio povo.
⁴ Na verdade, não há novidade nesta ética envolta na realização e circulação de imagens dos povos. Em 1954, ocorreu uma polêmica que fez tinta no meio antropológico e cinematográfico, em torno do filme Les maîtres fous, de Jean Rouch, sobre um culto religioso denominado Hauka. Quando o filme foi exibido para alguns africanos e pesquisadores franceses no Museu do Homem (Paris), a recepção foi, no geral, muito negativa, pois aquelas imagens de transe afrontavam a dignidade humana (aos olhos ocidentais), apresentando os nativos como selvagens. Um dos espectadores, Marcel Griaule, etnólogo e mestre de Jean Rouch, teria dito que aquelas imagens jamais poderiam ser vistas por não-iniciados; seria melhor destruí-las, pois eram muito perigosas. Mais tarde o filme foi tirado de circulação, e muitos anos se passaram até que sua recepção por africanos e ocidentais fosse aceita. Ver o artigo de Renato Sztutman (2005), “Imagens perigosas: a possessão e a gênese do cinema de Jean Rouch”. 

Referências

CARELLI, Vincent, GALLOIS, Dominique. “Vídeo e diálogo cultural – experiência do projeto Vídeo nas Aldeias”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 1, n. 2, p. 61-72, jul-set 1995.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. 
____________. Peuples exposés, peuples figurants. Paris: Les Éditions de Minuit, 2012.
SZTUTMAN, Renato. “Imagens perigosas: a possessão e a gênese do cinema de Jean Rouch”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 13, n. 13, 2005.